sábado, 26 de dezembro de 2015

Acho os nossos atores maravilhosos. Digo os nossos atores de teatro. Sem um pingo de ironia. Acho os atores de meu país uns dos melhores atores do mundo. A miséria misturada ao calor nos dá uma tamanha dose de descompromisso com tudo que o que sobra é uma audácia despudorada, irresponsavelmente corajosa. Somos quase a reprodução de uma trupe de molambentos medievais, comediantes desesperados em busca de um lugar para montar nosso palquinho mequetrefe. Mambembes atrás de um bendito prato de comida que justifique o suor despendido. Empurram-nos para a corda bamba e desde cedo aprendemos na marra a sambar para não cair de vez. E quando caímos é só para voltar lá no alto de onde despencamos. Indo assim, aos trancos e barrancos. Essa ausência de tudo é o que nos torna espertos, talentosos e humildes na medida do aceitável. Acho esses atores gelados da civilização polar um porre. Principalmente esses atores da seita stanislavskiana do tal do MÉTODO. E é quase uma seita universal por aqui. São quase sempre atores afrescalhados, cheios de não-me-toques, quase possível inalar um perfume de diva afetada que brota de seus cangotes instruídos. Carregam agentes a tiracolo que os agenciam feito donzelas necessitadas de um lencinho de seda bordada arremessado ao chão para que atravessem a poça suja... Ah não! Gosto dos meus atores. Atores que são uns dos melhores atores do mundo... (Com a devida exceção feita aos atores ingleses, esses sim os filhos legítimos dos mais brilhantes tablados de ontem, hoje, e sempre).



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sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

Não acho que ser artista tenha a ver com habitar uma sensibilidade aflorada. Ao menos essa sensibilidade de que tanto advogamos como sinônimo de aptidão para sentir e, desse modo, transmitir a humanidade que há no sentimento. Se os outros sentem é porque é natural da vida sentir. Mas tenho convicção de que o artista, não sendo como os outros demais, tem o dever de não sentir nada. Ou, então, sentir que nada sente. E pensar. Pensar sim, evidentemente, deve ser primordial ao artista. A qualquer artista. O pesar e o amor do artista devem ser fruto do ato de pensar, nunca do de sentir. Porque é o pensamento que comunica. E é função do artista comunicar. O sofrimento, o sentimento, é coisa individual, afeita ao claustro, nada adequada ao estar diante de outros para lhes dizer algo. E o artista é sempre esse: o que está diante de alguém pronto para dizer algo. O não poder sentir, e o habitar a capacidade - ou a infelicidade - de nada sentir, aí está a habilidade - e o fardo - do verdadeiro artista. O resto, parece-me, é exercício gratuito de vaidade, de quem sente só para dizer a si próprio que está sentindo.

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'(...) Eu não sei se o mundo é triste ou mau nem isso me importa, porque o que os outros sofrem me é aborrecido e indiferente. Logo que não chorem ou gemam, o que me irrita e incomoda, nem um encolher de ombros tenho - tão fundo me pesa o meu desdém por eles - para o seu sofrimento. Mas eu quero crer que a vida seja meio luz meio sombras. Eu não sou pessimista. Não me queixo do horror da vida. Queixo-me do horror da minha. O único fato importante para mim é o fato de eu existir e de eu sofrer e de não poder sequer sonhar-me de todo para fora de me sentir sofrendo. Sonhadores felizes são os pessimistas. Formam o mundo à sua imagem e assim sempre conseguem estar em casa. A mim o que me dói mais é a diferença entre o ruído e a alegria do mundo e a minha tristeza e o meu silêncio aborrecido (...) Nem mesmo posso sentir o meu sofrimento como sinal de grandeza . Não sei se o é. Mas eu sofro em coisas tão reles, ferem-me coisas tão banais que não ouso insultar com essa hipótese a hipótese de que eu possa ter gênio. (...)'

F. Pessoa



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quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Atores não deveriam aparecer nos cartazes e anúncios de seus próprios espetáculos. Atores não deveriam dar entrevistas sobre seus próprios espetáculos. Atores não deveriam poder sair por aí dizendo aos quatro ventos que são atores a trabalhar em determinado espetáculo. A desculpa de que é por esses meios que se divulga um espetáculo para que o público nele compareça é frágil frente ao preço que se paga. Eleva-se o ego do ator aos patamares rarefeitos de uma individualidade burra, cegando-o quase na totalidade das vezes para aquilo que de fato representa o seu sagrado ofício: a obra estética. Resguardemos o ego do exibicionismo declarado para quando o ator subir ao palco! Aí sim ele pode ser exibido, histérico, altissonante. Porque aí o que está em evidência - e é dever do ofício do ator agir assim - é a defesa estética de uma obra de arte. Nada mais importa do que o esforço para erguer as bases poéticas de uma obra. Ocorre que o ator, convocado sempre a ser ator fora de cena, torna-se mais evidente fora do que dentro de cena, e é ele encarregado das funções mais variadas que nada competem para a defesa de uma obra estética. O ator, então, carrega um manto de agente político a serviço de uma demanda política que justifique a existência da obra poética fora dos domínios próprios da obra poética. E, na verdade, nada, absolutamente nada, deve legendar o sentido de existência de uma obra poética senão o seu valor poético. Se a poesia é ruim é porque a poesia é ruim, não porque as implicações ideológicas fizeram dela uma coisa ruim. E, por outro lado, nada é urgente demais para ser visto e encenado porque fora da cena a conjuntura do mundo pede que algo seja visto e encenado. Desde que o assunto seja o homem - o que engloba todas as obras - tudo e qualquer coisa é urgente e necessário. Jogar luz nessa razão é, mais uma vez, fazer de tudo para justificar uma coisa que não tem justificativa senão o seu próprio direito de existir: a obra de arte por ela própria, e só por ela própria. Então, continuando, o ator vira uma peça de propaganda das demandas sociais, das lacunas educacionais, da emergência do que precisa ser dito porque algo não anda bem no meio público. Ou, então, convencido de que ele é importante - ou mesmo inconsciente desse fato ainda que continue agindo da mesma forma -, o ator mostra-se inteiramente em seu charme vaidoso na expectativa de que os outros o admirem em seu ato de ousadia e coragem para levar ao palco aquilo que exige coragem para ser encenado. E mesmo que o resultado poético da cena seja um desastre não é isso o que importa. Muitas vezes o desastre não é matéria de reconhecimento de parte nenhuma. Importa o ator, um bravo guerreiro que enfrenta a tudo e a todos para exibir-se em seu ato de ousadia e coragem. A obra de arte é um mero pretexto para qualquer coisa que justifique a sua existência, exceto ela própria. E o público comporta-se da mesma maneira burra: aplaudindo o que é ruim sem saber identificar o que é ruim já que acostumou-se a não olhar para a obra de arte. É o entorno que passa a contar, as fronteiras daquilo que não diz respeito a obra de arte. Nosso tempo é esse tempo: um tempo de periferias. Como se o que fizesse os jogadores entrar em campo não fosse talento algum para o jogo senão a habilidade empresarial para o marketing. E os torcedores também, afeitos por coisa nenhuma, engolem felizes a falta de habilidade dos que desfilam em campo.

Sendo toda e qualquer arte matéria do inútil, é preciso mais intransigência e menos generosidade para se lidar com as coisas que são inúteis. É preciso muito mais rigor para saber identificar o que é uma obra de arte de valor. É preciso sumir com os atores. Implodir seu império. Em favor da obra de arte.

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'(...) Pois então, ó Augusto, eu sei que o homem deve cultivar a modéstia, e espero ter logrado manter-me humilde. Mas, com relação à Arte, sou presunçoso, se assim queres chamá-lo. Reconheço que o homem deve arcar com quaisquer deveres, pois só ele é portador de deveres, mas sei que dever algum pode ser imposto à Arte, nem deveres úteis aos Estado nem outros; do contrário, apenas a converteríamos em antiarte, e se os deveres do homem, como ocorre atualmente, estão em outro lugar que não na Arte, somente lhe resta a alternativa de abandonar a Arte, até por respeito a ela... Justamente essa época exige do indivíduo a mais intensa modéstia, e na mais intensa modéstia, e ainda mais, com apagamento do próprio nome, deve ele servir, como um dos anônimos servidores do Estado, como soldado ou de outro modo, não, porém, com obras poéticas sem consistência, que são apenas arrogante antiarte, enquanto pretenderem servir o bem do Estado através da sua supérflua existência individual... (...)'. Hermann Broch. A Morte de Virgílio.



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terça-feira, 22 de dezembro de 2015

É preciso criar um estilo, sumir atrás de um estilo, engessar-se, deixar de ser natural, eclético e maleável. Uma máscara! Dei ao meu rosto o molde para uma máscara. Uma que cabe no rosto que tenho, só no meu e no de mais ninguém. Virei personagem de mim mesmo. Sou eu. Mas já não sou mais. Diante disso, posso tudo! Assumo as consequências de haver me esquecido, daquela época quando eu era tudo e todos ao mesmo tempo. Agora sou só um. Duro. Inquebrantável. E é por isso que sou infinito.


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sábado, 19 de dezembro de 2015

Uma das maiores bênçãos do teatro é o mistério de não ver o ator nem antes nem depois do espetáculo. Nunca entendi quem se dispõe a fazer plantão na porta do teatro para flagrar o ator que chega, ou aguardar o ator que vai embora depois de haver concluído o seu trabalho. Como espectador de teatro, acho a coisa mais decepcionante do mundo testemunhar o ator em seu estado natural de ator. Atores de teatro são, em via de regra, desinteressantíssimos em seu traje à paisana. Como ator, acho a coisa mais constrangedora do mundo encontrar quem queira conversar sobre qualquer coisa depois de encerrada a peça. Nunca entendi os atores que tratam o hall do teatro com tanto ou mais afã do que o instante em que estão debaixo dos refletores. Nunca entendi essa legião de fãs anônimos que fazem fila para barrar o ator na saída do teatro.

Nos teatros, deveria existir uma saída de emergência por trás do prédio que evitasse qualquer espécie de assédio, ou qualquer espécie de voluntarismo forjado e mentiroso do ator. Ator e espectador nunca deveriam se encontrar após o término de qualquer espetáculo. Cada qual que suma um da vista do outro.


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quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Um bom texto de teatro se mastiga. É exatamente isso! O bom texto de teatro é feito para ser mastigado. Sua força é uma força que está na mandíbula do ator. O bom texto de teatro não permite trabalhos ulteriores fora lidar com a forma mastigável de suas palavras. Só o texto ruim de teatro imagina um antes ou um depois da palavra escrita. Um passado que justifique a palavra no instante em que ela existe para ser dita. O bom ator deve necessariamente ter mandíbulas adequadas ao mastigar da boa palavra contida no bom texto de teatro. Toda sorte de psicologias, abstrações, estudos de estados internos afundam diante da palavra que não é outra coisa senão matéria mastigável. Basta mastigá-la. Basta cuidar bastante bem da sua dentadura. A arcada dentária é infinitamente mais valiosa que todas as suas revoluções íntimas e sentimentais...



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segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Deveriam dar importância às personagens, não aos atores. Mas o grande acontecimento do século é o reinado dos atores sobre as personagens. O hall do teatro é mais importante do que o palco. Quando as luzes se apagam é que elas se acendem de fato! Um depoimento de um ator é disputado a tapa, ainda que não haja nada o que dizer, ainda que o ator seja o exemplar do que há de mais sentimentaloide e tapado nesse mundo de lágrimas e verbos vazios. Ainda que o ator advogue o contrário - há sempre um discurso emocionado de entrega à personagem - as personagens são, de fato, acessórios, quando muito um atributo de exponenciação do charme do ator. A boa personagem, nesses dias, é aquela que não recusa o que o ator já tem, que não o contraria em seu jeito bastante pessoal de ser ator. Ela, a personagem, é que é moldada ao ator, e não o inverso. É quase uma etiqueta de grife, um terninho chique cortado e costurado na medida do modelo. Esse discurso tão em voga de 'entrega à personagem' é a mais pura balela sentimental para justificar o protagonismo do ator. Estratégia para jogar atenção nessa grande alma que se propôs a 'mergulhar no abismo da poesia'. Quase um exercício de auto-emulação para que a plateia renda-se em admiração a quem se permitiu sofrer por coisa alguma. As palmas são para o ator, nunca para o seu ofício, quase sempre ele capenga de força poética. O ator deveria ser essa entidade flutuante de identidade misteriosa, invisível. Deveria evaporar da atenção alheia e concentrar em aparições programadas. Mas aí já seria demais. Seria pedir que todo um império do ego e da vaidade desmoronasse feito castelo de cartas ao vento.


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domingo, 13 de dezembro de 2015

Senhores? Serei franco! Nunca entendi esses atores que fazem teatro tanto quanto vão ao teatro para assistir a outras peças de teatro. Quando eu faço teatro, ou logo após terminar uma temporada de teatro, prefiro chupar uma carambola azeda dentro dum quarto escuro a sair de casa - santo Deus! - para ir ao teatro.





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O bom ator é sempre elegante e circunspecto... Essa coisa histérica de espírito boêmio e amalucado combina mais com passista de escola de samba.



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É preciso ter um outro corpo e uma outra voz. É um crime inafiançável carregar para diante dos outros o mesmo timbre simpático que é o seu timbre habitual. Nada pode ser meramente simpático e habitual diante de uma plateia. Tudo deve ser rigorosamente falso e construído. E para isso há que se ter força, controle do tônus muscular, fôlego. Não dá para 'ser' quem se é no palco. É urgente que sejamos um outro que saibamos manipular, e que saibamos também sermos manipulados. Um 'ser' que deixa de ser esse corriqueiro 'eu' mas que também nada tem a ver com a personagem, que, a rigor, nunca existiu ou há de existir. É um 'eu' especial, consciente a cada segundo da construção de que é agente e alvo. Ser ator é exatamente igual ao que ocorre com um manipulador de marionetes. Não somos nem a marionete nem o próprio manipulador. Somos os fios que juntam os dois extremos.



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sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Tenho a benção de ser filho de uma família em que nenhum de meus parentes tem a mesma ocupação que eu tenho. Há um intervalo gigantesco e desabitado entre o que eu faço e o que eu sou, entre a minha intimidade e o meu ofício, entre a minha hereditariedade e aquele que eu inauguro ser. Sou sempre dois que nunca se misturam. Solitários em seus extremos. Seria um completo inferno se as duas metades se juntassem e eu fosse obrigado a partilhar do mesmo nome, das mesmas ideias, das mesmas fronteiras. Quero distância da minha origem para poder retornar a ela quando for necessário.


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quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Há esse texto de teatro cuja autoria é minha e que é um grande libelo contra os musicais contemporâneos. Porque não há nada mais insuportável do que ser um virtuose num mundo abarrotado de trecos que incitam ao virtuosismo. O texto é seco. As personagens são ocas. As cenas não carregam purpurinas. E a apoteose é absolutamente sem graça nenhuma.

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Acho a coisa mais estranha do mundo quando dizem-me 'gostei do seu trabalho'. É quase uma ofensa distraída de simpatia. Sou ator. Nunca na minha santa vida ocorreu-me desperdiçar tempo trabalhando.


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O mau ator sempre tenta chorar, repare! O péssimo ator consegue.


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domingo, 6 de dezembro de 2015

O ator contemporâneo, parece-me, é o emblema supremo do vazio ao qual chegamos. Símbolo oco de uma era do marketing e da propaganda, é ele, o ator contemporâneo, o protagonista de tudo. Convocado a aparecer, a opinar, a servir de exemplo para campanhas humanitárias, a dar bom dia quando é bom dia - e boa noite quando é boa noite -, é ele, o ator contemporâneo, uma espécie bem lapidada de bom moço de dentes brancos e cabeleira penteada. E revela-se o tempo inteiro. O ator contemporâneo, assim como o cidadão ideal que atravessa as nossas ruas de hoje, é alguém cuja intimidade é devassada em praça pública porque é obrigação verter lágrimas e sentimentos ao mundo. E é admirável quando o ator contemporâneo sente, diz a verdade, abre-se em suas entranhas em plena praça pública. É lei convocar o outro para testemunha daquilo que eu sou, sinto e penso. O ator, que antes escondia-se porque era tímido, retraído, avesso à luz, agora não abre mão de um refletor que o siga até quando decide ir comprar pão na padaria da esquina. A máscara que o escondia porque era função do ator esconder-se para dar passagem à personagem, hoje é quase apetrecho de decoração. A personagem virou consequência, não matéria prima da mentira da qual a poesia é forjada. Aliás, qual poesia que se sustenta hoje? Quem são aqueles que desejam encantar-se? Há encanto que sobreviva a tanta megalomania do ego dilatado?
Triste do ator que aparece e não reconhece o poder maravilhoso da sombra, do silêncio, do anonimato.


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sábado, 5 de dezembro de 2015

Saímos sempre de cena. Sumir para um ator de teatro é a coisa mais natural do mundo. A rigor, existimos só para isso: para sumir. Os entreatos de aparições são sentenças programadas de sumiços iminentes. Para nós, atores de teatro, a morte é experimentada a todo instante, a cada palavra perdida no espaço, a cada troca de luz, a cada movimento da cortina. O eterno para nós, atores de teatro, é a exata medida dos esquecimentos que deixamos impressos em cada palmo dos palcos onde pisamos. Nosso legado é a memória de que um dia existimos, sem desejos outros de impérios permanentes, sem registros fora da lembrança, sem legados infinitos. Temos a sorte de ver a vida sendo vivida dentro de um ofício que não deixa enganar a real essência da natureza humana. É tudo de mentira! Nossa única transcendência possível é talhada na matéria concreta. Nosso evangelho é impresso nas folhas da imaginação e lido com os lábios zombeteiros da criança que compreende a insignificância de tudo quanto é tido como sério, grave e urgente. Somos todos nós, atores e não atores, ridículos e maravilhosos ao mesmo tempo. Crápulas e santos. Sábios e mentecaptos. Cínicos e ingênuos. Ser ator de teatro é conviver com o desespero de se saber minúsculo frente ao tamanho do mundo. Personagem dentro de um palco maior que estabelece qual máscara é a mais adequada para determinada ocasião. E é por essa consciência, a certeza de nossa espetacular impotência, que uma grandeza de encher os olhos faz-se brotar dentro de cada um de nós. Que sorte a minha essa a de ser ator.  

Marília Pêra, uma das maiores do nosso teatro.



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quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Eu faço o papel, eu não sei o que é o papel. E pouco me interessa sabê-lo. Tivesse eu a consciência do papel a ponto de dizer ao mundo o que ele é, não seria ator. Os acadêmicos são peritos em explicar coisas a si mesmos e aos outros. Os atores não explicam nada, nem a si próprios, tampouco aos outros. Os atores só fazem. E é necessário desenvolver uma certa ignorância voluntária - ou uma inteligência nada conceitual - para simplesmente fazer o que se precisa fazer sem precisar saber o que se faz.

É sempre uma idiotice sem tamanho entrevistar um ator. O pipoqueiro da esquina do teatro seria mais hábil em dar uma entrevista sobre qual assunto seja.



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terça-feira, 1 de dezembro de 2015

O bom ator faz uma única coisa: bota a história para andar. O bom ator torna-se bom porque sabe perfeitamente que a história o precede. E é só ela que importa. E se não houver um boa história para contar, o ator, ainda que seja um bom ator, junta-se à história, e ambos, história e ator, tornam-se inseparavelmente péssimos.


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segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Ah o palco italiano! O palco dos palcos! Onde o truque vale ouro! Que beleza é o palco italiano!



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Senhores? Sejamos francos! Não há necessidade alguma de ensinar o sujeito a ser ator. Primeiro porque não há grandes necessidades de haverem atores por aí. Necessidade nenhuma, aliás. Segundo, ensinar alguém a ser ator é ensinar errado. O fulano que se forma ator e insiste em ser ator sabe perfeitamente que a formação que o fez ator evitava por todos os meios que ele se convencesse de que era ator. No fundo é isso mesmo: só se é ator quando é impossível ser ator. E aí já vira uma condenação, nunca uma escolha.

Quem quiser ser ator que não o seja, pelo amor de Deus pai! De elenco de apoio o mundo já está mais do que saturado...



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quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Ainda algum dia alguém haverá de investigar a razão que explica os poetas serem cabeludos ao passo que os atores, com o desperdiçar dos verbos, perderem junto as madeixas tão fartas aos primeiros.



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Teatro, senhores, é de mentira! Partamos desse fundamental princípio para que toda a verdade possível não seja outra coisa senão o fruto do suor daquele seu músculo invisível e atrofiado que outrora ganhava o nome de imaginação...



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Assistindo a uma entrevista de um desses grandes atores das antigas, e a certeza que fica é uma só:

- Ser um jovem ator nos dias que seguem é uma retumbante e magnífica falta de sorte.



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Razões que fazem do teatro a melhor das ocupações:

- Não eterniza nenhum pobre diabo.
- O sucesso e o fracasso são faces da mesma moeda, que some ligeira pelo ralo do tempo.
- É como a alcachofra e o palmito: não faz parte de nenhuma dieta oficial.
- Ideal de coisa alguma substitui a materialidade de se estar ali, debaixo de um foco de luz, pronto para experimentar a inutilidade das verdades abstratas e universais.
- Começa e termina sem que haja justificativas ou cerimônias para simplesmente começar quando é preciso começar, e terminar quando já é dada a hora de terminar.
- Emagrece mais que suco de clorofila verde batido com beterraba orgânica.
- Anta nenhuma consegue disfarçar-se de capivara. Anta que sobe ao palco revela o que de fato é: uma anta legítima.
- É o reino realizado de toda capivara hipócrita, que só é hipócrita porque é capivara genuína, e sendo genuína e capivara, não haveria de ser outra coisa senão hipócrita.
- Não sobra sequer um único violino de fundo para lhe salvar da enrascada de se sentir ridículo, que é, por si só, a mais sagrada das bênçãos.



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Um bom curso de interpretação ensina ao ator a ficar quietinho, não a cantar. Um bom curso de interpretação ensina ao ator a ficar paradinho, não a sambar no ritmo da música. E quando houver música, o bom curso de interpretação ensina ao ator a ser ele o maestro e o compositor da música, ao invés de torná-lo uma ovelha obediente e saltitante no meio do naipe das ovelhas obedientes e saltitantes...


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sábado, 21 de novembro de 2015

Adoro a pergunta 'se é arte, ou não é arte'. Que é da mesma dimensão do 'quem sou eu, de onde vim, para onde vou'. Adoro todas elas. E vivo para respondê-las. Todas elas. E desenvolvo teorias universais, estatutos oficiais, postulados paradigmáticos, pílulas esclarecedoras, emplastros de consciência, parágrafos únicos que separam o isso é, do isso não é não! E também pulo de um lado para o outro, a depender do meu estado de ânimo. Sou desses catedráticos autoproclamados e de bigodes longos que vestem toga de veludo e classificam tudo, tim tim por tim tim. E ai de quem desconfiar de mim! Há que se lançar argumentos poderosíssimos para destronar-me do púlpito onde finquei raízes! Porque, sejamos francos, no saldo das misérias terrenas e conceituais, é mais interessante sair por aí apontando a lupa para tudo quanto é possível ver e conhecer, do que, ao contrário, flanar feito uma anta eclética que contenta-se em achar que o mundo é mundo e ponto final. E se nenhuma capivara chega a lugar nenhum ao embrenhar-se nesse eterno e circular exercício da conjectura inútil, é justamente por chegar a lugar nenhum que o tal exercício vale a pena. O significado de qualquer coisa não importa patavinas nenhuma. O que vale é a busca alucinada por compreender o que diabos aquilo significa. Que é o mesmo que tentar compreender o porquê de raios eu ser esse quem sou.

Senhores ecléticos, fazei-me um precioso favor? Ides todos pastar, sim?


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Shakespeare não é para ser entendido. Shakespeare é para ser ouvido. E se for devidamente ouvido, Shakespeare é também visto. Shakespeare é igualzinho a um contador de histórias diante de uma fogueira. Há mais mistério aí do que entendimento.


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Uma foto já é o espetáculo. E se uma foto boa pode às vezes mentir sobre o espetáculo, prometendo o que não cumpre, um foto péssima, por seu termo, nunca engana - o espetáculo é ruim mesmo. O ator deveria saber fotografar-se a cada instante da cena, e a sua cena deveria ser uma sequência ininterrupta de fotogramas que ele, o ator, registra conscientemente para si próprio. Um bater de flashes de fora que lhe permitisse posar sempre, tomando a devida atenção para nunca denunciar essa tal máquina de fotografias invisível.  Porque a péssima foto sempre denúncia o péssimo ator quando é o ator que aparece na foto, com o seu jeito de ator, sua postura de ator, seu charme de ator. A boa foto que anuncia o bom espetáculo nunca é uma foto do ator. Ao contrário. É uma foto em que o ator não aparece, todo ele sumido numa postura antinatural, apagado pela máscara de sua face que não é aquela sua face que é lavada no espelho logo ao acordar na intimidade de sua casa. O bom ator que sabe posar para uma boa foto e que é o arauto de um bom espetáculo vive nessa exata contradição: faz força extrema para aparecer para então sumir. O exagero lhe confere a invisibilidade necessária para que a sua pose denote o que há de mais importante: a personagem. A péssima foto e o péssimo ator combinam-se na vaidade de vender um espetáculo cujo teatro está somente nas mãos da necessidade de fazer do ator o protagonista de tudo.


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quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Faço teatro porque é tudo de mentirinha. Somente por isso... Já imaginou que inferno seria um padre acreditar que a hóstia é de fato o corpitcho do Redentor? 

É tudo fake, meu povo! Acostumem-se com a regra que rege a humanidade desde os imemoriais tempos: Quem souber enganar melhor, que engane!

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Gosto do ator-blasé. Esse tipo de ator que antes de pisar no palco e mostrar-se à plateia tem para consigo um átimo de consciência que o faz soltar um indistinto suspiro revelador: 'o que raios estou eu fazendo aqui?'. Gosto desse ator que é praticamente empurrado ao palco por alguma força misteriosa, ou mesmo por algum dever de contrato. Gosto do ator-blasé. Que sabe que mentir descaradamente demanda um esforço hercúleo, quase despropositado. Mas que mente mesmo assim. Mentindo sempre. Gosto desse ator que se desloca ao teatro com dificuldade extrema, acometido por um desânimo que lhe corrói as vísceras, quase como quem dirige-se ao patíbulo da forca para um sacrifício sem volta. Tenho ojeriza daquele outro tipo de ator: o ator intenso. Aquele que já na coxia é uma alma vibrante, histérica, totalmente embutido em si mesmo, pronto para dar tudo de si sem desconfiar do absurdo que é aparecer diante de outras pessoas ávidas por vê-lo desfilar na corda bamba. Tenho pavor desse tipo de ator. O ator intenso, genuíno. O ator do 'EU' íntimo. O ator dito 'verdadeiro', 'emotivo'. Esse tipo de ator que, enfim, perde o essencial do que o teatro tem a oferecer: a maravilhosa e igualmente dolorosa consciência do truque.

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sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Senhores? Serei franco! Uma das abominações dessa nossa cena de misérias contemporâneas em que virou praxe ser mais burro do que uma fechadura de porta enferrujada - ou tão mimado quanto um ursinho Teddy Bear com medo do escuro -, aparece encarnada na figura batizada pelo lindo nome de 'preparador de atores'. Senhores? Serei franco! Sou ator e já vim ao mundo prontinho da silva, com cabeça, tronco e membros, uns grudados aos outros e em pleno vigor de funcionamento. Por um talento inato, sei apontar com o dedo para a esquerda e andar com minhas pernas para a esquerda (repito a mesma habilidade intrínseca quando o sentido muda da esquerda para a direita). E para completar - PASMEM! - minha massa encefálica ainda não sofreu danos o suficiente para que seja ela treinada feito poodle em número de circo. E caso queiram que eu chore - porque todo ator bom nos dias de hoje é esse ator que sabe derramar lágrimas tanto quanto sabe engasgar feito uma mula disléxica ao arriscar-se a ler uma única frase de um texto qualquer -, não é necessário que haja alguém para evocar minhas dores internas, aplicar regressões patafísicas até alcançar os fundilhos do raso de minha alma condenada, fazer laboratórios da ameba esquizofrênica a título de brotar o genuíno sentimento que só quando éramos amebas sabíamos expressar, ou, enfim, recorrer aos métodos de tortura avançada à la Fátima Toledo. Não! Sou deveras talentoso, senhores! Talentoso e gelado feito iceberg à deriva para tudo quanto é gente que confunde personagem com um subterrâneo íntimo de emoções a ser cavoucado (#stanislavskyNÃOmeREPRESENTA). Saco logo uma cebola do bolso e viro a Maria do Bairro num único estalo de dedos. Senhores? Serei franco! Vão terceirizar o MEU trabalho lá na casa da Mãe Joana e deixem-me entronado na minha santa paz. E caso queiram preparar alguma coisa, que preparem logo um strogonoff de frango com bastante creme de leite, que é o meu prato preferido.

Obs: ide todos pastar!


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Shakespeare é simplérrimo, é só reunir coragem para fincar os pés no chão e dizer o texto. Aí perguntam-me: mas e a complexidade da personagem? E eu devolvo: essa é a complexidade: não existe complexidade nenhuma, tampouco existe personagem. E não havendo personagem para ser complexa, não há jeito de haver complexidade alguma. Essa coisa de 'personagem' é fruto dessa bendita geração da psicologia-mimada do século XX-XXI, filha-herdeira dos tempos de glória do realismo-naturalista, prima-irmã do cinema americano, sobrinha-neta dos novelões cotidianos da Rede dos Marinho. Essa coisa de 'personagem' conferiu ao ator uma importância que ele não tem e nunca teve no teatro dito popular, o teatro que de fato levava (e ainda leva?) o teatro ao povo - digo, a urgência de revolver o âmago e de lá fazer brotar uma lágrima legitimadora de seja lá qual sentimento íntimo. Shakespeare é outra coisa. Shakespeare é popular, é teatro puro, teatro que não mente ser teatro. Shakespeare é 'de mentirinha', não é psicológico, tampouco realista-naturalista, quiçá adepto das frescuras sentimentais do cinema americano. Shakespeare é dificílimo de se dar conta porque há nele uma simplicidade retumbante. Não há em Shakespeare personagem alguma, há vetores de força, linhas de potência. E para dar conta disso são  necessárias algumas poucas coisas básicas: corpo e fôlego. É necessário também que o ator desenvolva um certo altruísmo voluntário que permita ao espectador completar com sua imaginação aquilo que é dito sobre as tábuas. O ator que encara Shakespeare é antes de tudo um atleta, um dançarino, um músico. Tudo isso, exceto um ator embrenhado em qualquer complexidade abstrata ou impalpável. É tudo tão simples! Basta acalmar o ego, isentá-lo de afetações lacrimosas, subir ao palco, respirar fundo, e enfrentar os leões. É isso! Shakespeare é mais parecido com uma arena de leões ávidos por abocanhá-lo do que com algum consultório médico em que há um divã preparado para você ruminar suas lamúrias e as lamúrias da existência humana.

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Senhores? Sejamos francos! A personagem não sente
A personagem É!
Querer que a personagem SINTA antes que ela SEJA é satisfazer ao ator - é dotá-lo de uma estatura que ele não tem
E achatar todo o resto

O mal do teatro é satisfazer ao ator
E matar todo o resto

Teatro é bom quando a importância do ator é alçada através de sua completa desimportância


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Teatro tem que ser difícil, quase impossível.
Porque tudo o que é misterioso é intrincado, dificílimo.
E se não há mistério não há teatro. O bom teatro, ao menos.
A criança já nasce gostando do impossível.
O princípio das brincadeiras da criança parte daquilo que é inimaginável.
De difícil apreensão. O jogo é sempre difícil. O bom jogo, ao menos.
Nós, adultos, é que nos tornamos idiotas ao querer compreender tudo.
Ao querer facilitar tudo para que tudo seja compreendido.
Teatro tem pouquíssimo a ver com a intelecção do que quer que seja.
Os grandes poetas dramáticos são antes magos que comunicadores.
Teatro nenhum deveria preocupar-se em fazer com que a plateia entenda coisa alguma.
Deveria, ao contrário, convidá-la a perder-se na dificuldade do mistério.
As palavras que sobem ao palco deveriam ser dificílimas de se pronunciar.
Os gestos todos deveriam ser antinaturais.
Cada passo um tremendo esforço para se cumprir.
E se, ao cabo de tudo, ninguém entender patavinas nenhuma.
Ponto para o teatro.
Que cumpriu com o seu sagrado dever.
O bom teatro, ao menos.



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sábado, 24 de outubro de 2015

Um violino e um arco bons e é tudo o que é preciso para ser um bom músico. O papel do bom músico é não atrapalhar o violino e o arco bons. E é essa a grande jornada a ser empreendida: NÃO ATRAPALHAR O QUE JÁ EXISTE, deixar passar através de si o instrumento. Não há bom músico sem que haja bom instrumento. E o péssimo músico é sempre aquele dedicado a aparecer para dar a sua voz ao violino. Nem com um Stradivarius na mão o péssimo músico daria conta de se tornar um bom músico. E o mesmo procede com o bom músico caso ele tenha em sua posse um péssimo violino. É necessário que o mundo já exista para que seja possível existir nele em toda a potência que nos cabe existir. O mesmíssimo ocorre com os atores, mas dessa vez com um prejuízo latente: o ator não tem à sua disposição um objeto como é o violino para o músico. Então, a equação ganha contornos ainda mais delicados porque o ator, na maioria das vezes não tendo no que se apoiar senão em si mesmo, é quase sempre compelido a MERGULHAR DENTRO DE SI, a SER ALGUÉM, a CRIAR PERSONALIDADES, a PRODUZIR SENTIMENTOS e FORJAR INTIMIDADES QUE O PERMITAM EXISTIR, que deem conta de uma psicologia abstrata, longe do mundo que o cerca. Esse ator afetado pelo sensível das suas entranhas é exatamente a reprodução do péssimo músico: QUER APARECER, faz FORÇA PARA APARECER, e esquece do mundo, dos outros, daquilo que o toca materialmente e concretamente. O bom ator é como o bom músico: delegam ambos ao universo (um universo já constituído em bases sólidas) a razão e motivo de suas forças criativas. O bom músico e o bom ator são, ambos, fantasmas conscientes: somem de si próprios para poderem vibrar no espaço. E é o que basta!

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segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Por que o teatro é inevitavelmente uma aula prática de ética...?

Há uma ideia de trupe. Uma ideia de que eu sou parte integrante de algo maior. E que eu não sou responsável por tudo. Só por uma parte do todo. Há essa sensação de não precisar interferir naquilo que não compete a mim interferir. E delegar ao outro a confiança que eu tenho para comigo quando sou eu o responsável por agir. E é como se eu fosse o outro e o outro fosse eu. Mesmo quando eu não estou eu estou. E quando sou eu o foco da atenção não sou só eu quem está em destaque. Só posso ser quando não é exigido de mim que eu seja. E a própria nulidade da minha identidade íntima já sou eu em potência máxima. Nesse intervalo de identidades em que ninguém é ninguém por inteiro senão coletivamente é que se forma a ideia de trupe. É como se fôssemos todos trapezistas. O trapézio balança sobre o vazio. E haverá sempre quem arrisque-se a lançar-se no vazio porque na outra extremidade já há quem esteja preparado para socorrer-nos... E é como se, no saldo final de todos os esforços, o que permanecesse não fosse nenhum de nós senão o próprio trapézio. Sempre balançando. Sempre sobre o vazio. E só...




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Ensaiar é produzir uma tonelada de coisas para se jogar fora até que sobre um mínimo ínfimo que presta.


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quarta-feira, 14 de outubro de 2015

O que A Tempestade ensina-me?

Sou devedor e grato aos trajes que uso - o manto definitivamente me faz monge!
Especialmente agradecido ao espaço que me ensina a habitá-lo - e sem o qual não haveria chance de haver espaço algum habitado dentro de mim
A direção que tomo é conduzida pelo chão que beija meus pés - não ando, sou andado
Pouco ou quase nada sou - só deixo-me ser quando é permitido que eu seja... LUZ!
A melodia das palavras que saem da minha boca já foram compostas  - sou o seu autor principal somente na medida em que sei que não posso ser eu o autor de nada
Sinto o efeito do vinho sem que dele tenha sorvido uma única gota - danço e canto numa espécie de espiral de tempo ébrio que sempre existiu antes de mim, que sempre fez com que houvesse quem o cantasse, e quem o dançasse.
Sou sustentado por essas estruturas formais e rígidas, e que de tão rígidas e formais - e só por isso! - concedem-se duas preciosas asas de penas falsas
para...
VOAR!

Sou ator quando não sou ator!
Existo quando não existo...
Vejo-me na invisível imagem não refletida de mim.



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Às vezes tenho a sensação de que fazer teatro é uma delícia completa só pelo cerimonial que há muito antes do teatro acontecer. Quando chega-se antes ao teatro para tomar um café no café do teatro. Quando ainda não há público, técnicos nem atores. E teatro nenhum também. Quando é só você e o café. E mais nada nem ninguém... Eu poderia perfeitamente terminar esse café que neste instante está na sua metade e rumar feliz para casa, que o teatro, mesmo sem haver acontecido, já teria valido a pena.

Viva o teatro! Que é legal até mesmo quando não acontece nada de teatro...



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Há cantos escuros no teatro. Não importa o quanto se repita um espetáculo, há, ainda assim, a permanência de instantes de profunda dúvida sobre o que é aquilo que está sendo dito diante dos espectadores. Às vezes, a dúvida aumenta na exata proporção das continuadas vezes em que o espetáculo é apresentado. Nessas ocasiões, é quase como se acostumássemos a não precisar entender mais nada para deixar-se conviver com a ideia de que não há como ter controle sobre nada. É como uma pedra que rola a ribanceira. Podemos dar o peteleco inicial, mas o restante é com a pedra, e a ribanceira. Às vezes, é essa a experiência mais profunda do teatro: um tingir de branco os desejos de tudo conhecer, agir e conduzir. E que é também, acredito eu, a experiência mais rica que a vida ela própria, longe das tábuas do teatro, também pode fazer-nos habitar. Ontem terminou uma temporada extensa de um espetáculo. E não é demagogia alguma dizer que a peça sempre me assombrou porque dela tinha (e ainda tenho) poucos recursos que me permitem qualquer ideia de segurança e domínio. O teatro é dessas coisas que duram pouco. E é bom que seja assim. Ninguém, imagino eu, daria conta de permanecer na corda bamba por longos intervalos sem sofrer uma baita queda. Um entupir-se de vida concentrada é sempre um prejuízo para a própria vida.



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domingo, 11 de outubro de 2015

Essa coisa de fazer girar o sentido de qualquer expressão artística ao redor de uma mensagem ideológica é tão estúpido quanto apreciar uma paisagem com legenda... Uma cachoeira é mais cachoeira quando resolve-se entrar debaixo das águas da cachoeira do que quando uma placa fincada ao lado da cachoeira anuncia: 'cachoeira'...



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Quando é preciso olhar para quem somos reproduzindo exatamente quem somos, incapazes de esquecermos desse que somos para poder sonhar infinitos 'eus' impossíveis  a nós, é porque ainda estamos engatinhando no terreno da poesia, seja ela afinada a qual plataforma de expressão for. E o mais interessante: esse espelho denunciatório é quase sempre capenga, não revela nada a mais do que já se sabia. Alguém haverá de lembrar uma coisa importantíssima no que se refere à prática de se contar histórias: se não houver um temperinho que seja de faz-de-conta, um voluminho aumentado  para além da moldura cru dos dias, enfim, esquecer completamente do famoso 'era uma vez' é solapar até a morte aquilo que mais deveríamos dar conta de preservar: a imaginação. A crítica social é matéria de interesse dos tabloides. Fazer sonhar, isso sim, é matéria nossa.



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Eu tenho uma tese! A personagem existe porque o ator em 100% das ocasiões é de uma falta abissal de talento para ser minimamente interessante. Porque é de praxe sermos absolutamente desinteressantes na vida, quer sejamos atores ou não atores. Mas, ao ator - mais do que a qualquer outra pessoa - é concedida a preciosa dádiva de, pelo intermédio da graça da personagem, sumir, escafeder. Pó de pirlim-pim-pim para os atores! Saída à francesa para os atores! Sejamos francos! Ser quem somos já é de um desperdício de existência monumental, afinal, quantos de nós não são quem são imaginando que esse quem somos é único, divertido, sagaz, inteligente e especial, quando, na mais crua das verdades, somos tantos quantos os outros já o são e o foram, areia do mesmíssimo saco dos tempos imemoriais, marionetes enferrujados do mesmo artesão exaurido por tanto duplicar os mesmos moldes? Então, que maravilha de benção carrega consigo o ator! Ao ator cabe esse miraculoso milagre de livrar-se momentaneamente da sua insignificância ao dar chance a um sumiço salvador. Por isso que é duplamente escatológico quando justamente o ator, esse mesmo que tem a rara chance de compreender o teor da essência de que somos feitos, faz uso do seu ofício para ele próprio reforçar a sua condição de ator, ocupado com os seus vícios de ator, seu charme insuportável de ator, dono daquela simpatia de ator que só os atores, por serem desinibidos - ou exibidos - conseguem ter, e tudo feito e programado para que os outros, cobaias exemplares dos atores, o aplaudam em sua vaidade de ator; enfim, essa coisa-ator que quando existe para ser o protagonista da atenção alheia naufraga toda e qualquer possibilidade de redenção da poesia, e também do homem nela envolvida...
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sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Entende-se o que é interpretar a personagem quando finalmente se descobre que não há personagem alguma para ser interpretada. E que também não é um simples colocar-se como pessoa física a serviço de nada. É um eterno paradoxo que se resume desta maneira: o ator que 'interpreta' a personagem não faz mostrar senão a si próprio, enquanto o ator que mostra-se o tempo inteiro só faz revelar uma personagem capenga daquilo que imagina fugir. A coisa está no entre, no intervalo entre ser e não ser. No final das contas, o trabalho do ator tem menos a ver com construir personagens do que em botar abaixo o seu ego íntimo e inflamado. Eis o mistério.



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quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Antes, ia-se do teatro para a televisão, porque o ator era ator no teatro, para depois ser ator na televisão. A televisão era um destino do ator, não sua origem. Parecia impensável imaginar que um ator poderia formar-se longe do teatro, que sempre foi onde os atores formavam-se atores. E o público sabia disso. E o público ia ao teatro não para ver o ator de teatro, mas para ver o trabalho do ator de teatro no teatro. Hoje, parte-se do princípio oposto. O ator forma-se ou quer formar-se na televisão, ou na imagem, e faz do teatro um destino possível e nada obrigatório. É verdade que esse novo ator formado na imagem vez ou outra aporta no teatro dizendo que é no teatro onde realmente o ator pode testar-se e crescer, ou que o teatro tem uma função social nobilíssima a ser mantida e sempre colocada em funcionamento. Mas esse mesmo ator só é ator no teatro em raríssimas exceções, dedicando a maior parte de seu tempo em sustentar a imagem daquilo que construiu sendo um ator de imagem prioritariamente. Não se pode reverenciar o teatro, parece-me, com uma ideia do que seja o valor do teatro. É preciso tratar o teatro como um ofício, e menos como um retiro espiritual de engrandecimento da alma. Hoje, soa inimaginável encontrar um ator ou um aspirante a ator que não tenha como perspectiva a divulgação de sua imagem por qualquer dispositivo eletrônico que seja. O ator desses tempos contemporâneos quer ver a sua imagem e quer que a sua imagem seja vista. A atividade de ser ator que nasceu na artesania do teatro agora é quase uma abstração. É mesmo uma abstração. Porque pouco se trabalha. E muito se especula. O trabalho com a imagem é essencialmente um trabalho especulativo e pouquíssimo devotado ao suor do corpo. E o trabalho do ator, desde sempre, bastante se assemelhou ao trabalho de quem põe efetivamente o corpo para funcionar. E mesmo os atores de teatro pouco afeitos à indústria dos atores de imagem quase nada trabalham com teatro. Porque o teatro só é interessante - ao menos para o grande público e para os grandes patrocinadores - quando um ator de imagem, que raramente tem tempo para o teatro, resolve querer fazer teatro. E o público sabe disso. E o público acostumou-se a esperar para ir ao teatro quando o ator de imagem resolve chamá-lo para ir ao teatro vê-lo fazendo teatro.

Assim caminha o nosso tempo.



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domingo, 4 de outubro de 2015

A maior das complicações que há em interpretar uma personagem de Shakespeare é também a mais deliciosa das facilidades: não há personagem nenhuma. É o ator entregue à sua condição de ator, obrigado a encarar um punhado exaustivo de linhas de força, vetores que cortam o espaço, timbres que ferem a voz. Não há método introspectivo que dê conta de formular a interioridade de uma única personagem sequer em Shakespeare. Como se Shakespeare trabalhasse para constituir individualidades, dessas individualidades que a febre das personagens realistas adora fazer latejar lá no fundo da alma. Nada disso! Só há corpo em Shakespeare. Fiscalidade e tensões. E o corpo é coletivo, pertence a todos sem exceção. E nisso não há qualquer movimento de menosprezo ao tamanho do universo iluminado por Shakespeare. Muito ao contrário! O corpo, a pele, a voz, aquilo que é tocado, que toca e que pode fazer tocar, é justamente o receptáculo do que há de mais espiritual. O paradoxo é esse mesmo: o raso já contém tudo o que de profundo é necessário acessar. Shakespeare é periférico, enxerga o perto de longe, mergulha no abismo ao raspar as extremidades. E só porque considera as extremidades é que consegue ultrapassá-la para além dela. Seria mais justo eliminar esse termo 'personagem' nas peças de Shakespeare. São, antes, figuras, marionetes. O que resume perfeitamente aquilo que é o próprio ator: um instrumento de expressividade a serviço da comunicação. E só. E já é muito! Muitíssimo!




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quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Uma peça de teatro é só uma peça de teatro. Se fosse uma ponte, deveria precaver-se de não ruir. Se fosse um prédio, que fosse sólida o suficiente para não desmoronar. Um veículo de transporte? Então haveria de sustentar as engrenagens e assim evitar enguiçamentos. Uma peça de teatro não é nada disso. Não responde a urgências ou utilidades concretas. Uma peça de teatro não responde a utilidade alguma. É só e tão somente uma peça de teatro. Não carrega expectativas prévias, não promete soluções futuras, não traz consigo manual algum de funcionamento. Uma peça de teatro é só uma peça de teatro que começa, dura, e acaba. É nessa transitoriedade efêmera onde finca o seu direito de existência. Não é preciso conferir outro grau de necessidade e importância a uma peça de teatro do que aquele materializado num sopro que se dissolve no ar. E caso imaginamos que um sopro que se dissolve no ar é pouco para uma peça de teatro é porque ainda não entendemos o que é um sopro, tampouco entendemos o que é uma peça de teatro. A rigor, tudo isso tem a ver com uma certa consciência do que é a vida. Uma peça de teatro é uma pequena caixinha de música que recupera concretamente a insignificância da nossa importância. O sopro é dessa qualidade. Não somos solistas de orquestra alguma. Não somos protagonistas de nada. Não temos direito a reivindicar monólogos ou plateias que nos aplaudam. Uma peça de teatro é só uma peça de teatro. E a sua relevância está justamente em provar que é apenas um sopro que se desmancha no ar. O ator é feito dessa matéria de consciência da sua inutilidade, de ser ele, o ator, mais uma minúscula haste metálica no meio de uma igualmente minúscula caixinha de música.



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segunda-feira, 28 de setembro de 2015

No fim da tarde, há pouco, ligam-me de uma agência publicitária cujo nome ao certo não me recordo mas que parecia, certeza absoluta!, invocar a marca de algum chiclete tutti-frutti com cheirinho gostoso, perguntando se eu aceitaria fazer um teste para emprestar a minha voz para o cliente do produto X do ramo das necessidades contemporâneas Y (porque, veja bem, é preciso encontrar a voz certa para o produto X do ramo das necessidades contemporâneas Y). Como descobriram o meu contato eu não faço ideia. Recusei. Insistiram na ideia ao revelar o quanto eu ganharia de cachê caso fosse aprovado (porque, veja bem, não basta fazer o teste para o produto X do ramo das necessidades contemporâneas Y, é preciso ser aprovado!). Recusei uma segunda vez. Lembraram, então, que havia um cachê teste de 100 reais (porque, veja bem, há quem empreste a voz, ainda que a voz não seja aprovada no teste para o produto X do ramo das necessidades contemporâneas Y, pensando somente em abocanhar os 100 reais do cachê teste). Recusei pela terceira e última vez. Agora, aqui no shopping onde estou para assistir a um filme, e cujo mesmo prédio abriga uma conhecida escola de formação para atores (porque, veja bem, fazer compras e pensar em arte são coisas que devem caber perfeitamente na mesma sacola) vejo, então, um anúncio de 2 atores - desses atores de rosto hidratado, símbolos perfeitos da saúde folhetinesca das telas de TV - estampados em fotos enormes e trajados cada qual com uma camiseta em que a seguinte inscrição aparece em letras garrafais: 'Escola X, EU FIZ'. Ao lado do referido anúncio, um outro anúncio faz propaganda do que está atualmente em cartaz no teatro que habita a mesma instituição de ensino (que habita o mesmo prédio que o shopping, ou que é o próprio shopping): uma peça escrita pelo dramaturgo Gabriel Chalita.
Neste instante, aqui onde estou, sorvendo um café antes de entrar na sala de exibições para assistir ao filme, penso cá comigo se eu não deveria fazer um workshop com algum boneco de posto de gasolina (daqueles infláveis que se erguem pela base através da ventoinha poderosa de ventiladores gigantes) para aprimorar, enfim, as minhas parcas habilidades de intérprete dramático.

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Olha, faz tempo que aprendi a desconfiar de tudo quanto é conceito. Adoro filosofia. E adoro filosofia justamente porque a filosofia é um balaio de gatos danado, um criando um conceito diferente do outro, e salve-se quem puder. Uma eterna nuvem de abstração tormentosa entre Palmeiras versus Corinthians. Mas, por alguma razão, os filósofos são os primeiros a desconfiar de que o conceito que defendem consegue, de fato, resumir uma mínima possibilidade de alcançar a verdade. E lá se vão eles em busca de novos conceitos, contrariando, às vezes, até mesmo a si próprios, aos conceitos que criaram como ponto de partida no início de suas empreitadas. Os filósofos são essas máquinas invejáveis de criar conceitos e de destruir conceitos. Vivem, os filósofos, sempre nesse intervalo de desconfiança eterna, arquitetos do edifício que eles mesmos dão conta de por abaixo. Por isso que a filosofia é bastante irmã de outro terreno não menos barulhento e insolúvel: a arte. Ambas, arte e filosofia, são laboratórios de consciência. Produzem conceitos e universos que se desmancham no ar tão logo aparecem. E nada interferem na vida. E é por essa razão que arte e filosofia são departamentos que me enchem os olhos. Porque ambas sabem, a arte e a filosofia, que a vida corre o seu fluxo natural, e que tentar domá-la, doutriná-la com conceitos forjados pela imaginação, razão ou ignorância, que reorientar o curso natural da vida, dos desejos e pulsões imanentes à vida, é, enfim, de uma estupidez espantosa. E quando vejo um tantão de gente preocupada com a legitimidade de um conceito enquanto espelho de determinado ideal concreto de comportamento, seja ele o conceito de família ou do raio-que-o-parta, ocorre-me uma vontade maluca de oferecer aos donos dessa contenda inútil um pirulito de tutti-frutti para lamber. Porque, no frigir dos ovos, a idade da creche ainda não foi superada. Idos anos em que sujar a fralda, parece-me, não serviu de exemplo algum para que o cérebro de hoje soubesse aguçar os sentidos e saber separar aquilo que é fedorento daquilo que não é.



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A boa personagem obriga o ator a dançar...


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sábado, 26 de setembro de 2015

Ser ator tem infinitamente mais a ver com arquitetura do que com o talento para escarafunchar a alma humana. Quem faz esse papel é o dramaturgo, os poetas, os filósofos. Nós, atores, somos no máximo peões de obra. O que já é de uma beleza sublime.



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Senhores? Serei franco. Tenho desejos inconfessos de pendurar de cabeça para baixo e servir para os abutres almoçarem quem usa o termo 'nasceu' na ocasião de uma estreia de peça de teatro. Senhores? Convenhamos! Uma peça de teatro não nasce, só estreia mesmo. E quando acaba, não morre não, só vira purpurina. Porque essa coisa de 'nascer' remete imediatamente a rebentos remelentos, que choramingam e sujam as fraldas minuto sim minuto não. Senhores? Querendo procriar, que procriem! Mas deixem o teatro longe da maternidade das vossas querências. Ou melhor! Não procriem não! O que não falta nesse palco da existência são bípedes falantes iguaizinhos a vós que estais aí a matar o tempo ao ler essa nota de profunda relevância. E, lembrem-se: ao subir ao palco, não nasçam! Pelo amor de Deus Pai!



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Sentado aqui onde estou, numa cadeira vazia dentre tantas outras cadeiras vazias da plateia do teatro onde em breve as luzes se acenderão para mais uma sessão da peça em que participo como ator... O palco também está vazio. Tudo silencioso e sem vida. Somente eu e mais ninguém. E penso cá comigo quantos outros tantos atores como eu já pisaram nessas mesmas tábuas. E quantos outros tantos hão de me suceder nesse simples ato de pisar nessas mesmas tábuas. E para quantos outros personagens servirão de intérpretes como eu o faço agora. Talvez, quem sabe, o mesmo personagem que hoje cabe a mim representar e que lá atrás já foi vestido por outros. A grandeza do teatro, parece-me, não está tanto nesses instantes em que algo acontece - a encenação propriamente dita -, mas nessas fissuras ocas de tempo, feito sincopas, nas fronteiras de um antes e um depois, quando a espera de que algo aconteça, ou o luto de escuridão que sucede o acontecido, inaugura uma consciência especial: a de que somos igualmente minúsculos e poderosíssimos, parte ínfima e integrante de um todo eterno e a própria materialização dessa força de potência eterna. Aí está o vínculo espiritual do teatro. É preciso que haja um templo para que se perceba isso. E o templo já é o teatro na sua arquitetura de teatro. Só o teatro, e basta. Quando Shakespeare diz que o mundo é um palco, reiterando que somos nós personagens de um enredo cuja vida atualiza toda vez em que o sol desponta no horizonte, deveria ele ter completado a sentença invertendo os termos, assim: o palco já é o mundo. Porque toda a infinita grandeza da natureza humana está condicionada à certeza de que somos marionetes articulados por sabem-se lá quais fios invisíveis. Se o grande está contido no pequeno (o mundo é um palco), o pequeno (o palco) é o responsável por engendrar o que em nós não pode caber no interior de qualquer dimensão concreta.


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quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Uns fingem que são atores
Outros são atores porque fingem
Os primeiros vem em baciada
Os últimos, a granel


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quarta-feira, 23 de setembro de 2015

Às vezes a personagem sou eu. Às vezes sou eu quem sou a personagem. Às vezes somos dois, eu e a personagem, e o que me resta habitar é o intervalo entre ambos. Um abismo inteiro de silêncio e vazio.


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segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Ser ator é de uma maravilha sem tamanho porque devolve-me em dobro o desejo que recorrentemente guardo comigo de virar monge, de galgar o cume rarefeito do Tibete e por lá ficar, sereno, para todo o sempre. Ser ator é conviver com essa paradoxal equação: quanto mais se gasta o verbo, mais vontade há de silenciá-lo.


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domingo, 20 de setembro de 2015

Todas as vezes em que alguém elogia um ator dizendo que ele 'se entregou ao personagem' e que 'a coisa veio lá de dentro' eu imediatamente tenho uma vontade doida de largar tudo e me candidatar a caixa de supermercado...



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Senhores? Sejamos francos... Não há essa história de personagem real. E se a personagem é real é porque é uma péssima personagem. E se o ator é suficientemente talentoso para tornar a personagem real é porque ele, o ator, e a personagem, são, ambos - além de super reais -, igualmente {e ao quadrado}, super ruins, desse tipo de ruindade de dar dó na alma.



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Ficaremos na história como a espetacular era dos atores-sem-graça, patéticos, mimados ao extremo e em constante busca por atenção. Somos igualmente representantes dessa era composta por aplaudidores-de-atores-sem-graça, plateia imensa e polvilhada de fãs histéricos, barulhentos e de inteligência equiparável à soma das ervilhas duma lata de conservas. Somos dessa era do naufrágio completo das personagens, das grandes máscaras míticas, dos textos de alcance cosmológico. Somos pertencentes a esse tempo mixuruca, adepto do valor supremo ao ego inflamado de intérpretes todos talhados pela mesmíssima moldura da afetação televisiva. É como se estivéssemos todos, agora e nesse exato instante, chupando os dedões, enfiados em fraldas com cheirinho tutti-frutti, habitantes de uma gigantesca creche lotada de adultos barbudos e retardados.


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quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Sabe por que ser ator (de teatro) é a melhor profissão do mundo? Porque não há empresa que financie o suor que pinga da sua testa quando os refletores são acesos. Pode haver um milhão de patrocinadores envolvidos para que a empreitada aconteça, mas no instante em que a coisa de fato acontece, não há jeito de atar o rabo do ator com nenhum empresário, nenhuma ideia prévia, nenhum contrato carimbado ou desviado por debaixo do tapete. Ou o ator é um náufrago, um doido solitário em sua solidão por encontrar um interlocutor, ou não é ator, ou não é teatro. Em tempos de discussão sobre financiamento de políticos, sou eu um eterno privilegiado, desde sempre livre, longe de qualquer compadre ou comadre que me queira bem...



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segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Não há nada mais indigno do que um ator fazer uso de seu ofício para revelar o que sente na sua intimidade. Não há verdade alguma em torcer as entranhas atrás da legitimidade de uma emoção. Isso chama-se corrupção. Um ator que revela a si próprio é sempre um ator corrupto. Não há nada mais indigno do que um ator fazer da sua prática uma vitrine daquilo que ele é...

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Lidar com as banalidades imediatas. Com os pequenos gestos. Prestar atenção numa única respiração. Ajustar um passo, ou no máximo dois. Recolher ao invés de estender. Olhar para lá quando só se olhava para cá. Existir em pequenas dimensões concretas. Essa é dimensão infinita do trabalho do ator. E já é muito, muitíssimo! Trabalho para uma vida inteira! As grandes filosofias, a enxurrada de emoções, a epopeia de um pensamento formulado. Todas essas margens abstratas são como o oceano. Navega-se nele sem precisar pensar que se navega. O necessário é ficar atento ao leme, aos ventos, ao menor sinal de terra à vista. Somos nós, atores, muito mais marujos do que filósofos, poetas, demagogos, ou o que quer que o valha.


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domingo, 13 de setembro de 2015

Evidente que o único cenário possível de Elsinore é um teatro. Evidente que Hamlet é um ator. Não há exercício metalinguístico algum na peça dentro da peça. Tudo é peça desde o início. Tudo é teatral do princípio ao fim. Explicitamente teatral. A única diferença entre Hamlet e as outras personagens da peça é que Hamlet sabe que é um ator. As outras personagens, ainda que sejam igualmente fingidoras tal qual Hamlet mostra-se ser, ignoram que o são. Acham que Elsinore é Elsinore e não uma Elsinore cenográfica. O mundo como um palco só faz sentido para Hamlet. E é precisamente essa consciência, a do mundo como um enorme teatro, que forçosamente torna Hamlet um condenado. Fora Hamlet, as demais personagens creem ser quem são, ou acham que são quem são. São como esses atores fajutos formados pelos métodos Fátima-Toledo da vida. Passam uma eternidade tentando virar a personagem, ou acreditando que são quem acham que são, e pouquíssimo ou quase nada enxergam a si próprios. Pouco ou nada desconfiam de que a única coisa certa da profissão de ator é a dor e a impossibilidade de virar coisa alguma, de ser coisa alguma senão um renomado fingidor. Hamlet só é o principal personagem da história da dramaturgia porque Hamlet é um ator. Um ator que sabe que é um ator. E é essa, tão somente essa, a sua fatal condenação.



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sábado, 12 de setembro de 2015

O bom personagem sempre diz ao ator: 'cale o bico! Não emita opiniões! Seus sentimentos são indiferentes! O que viveu antes não importa em nada! Nosso trato é o seguinte: macaqueie! Mas macaqueie somente o suficiente - sem exageros!, faça vibrar essas benditas cordas vocais, e, por fim, caso sinta uma vontade insuportável de espirrar, espirre oras!... O restante é todo comigo.'

- Os bons personagens sempre assassinam os atores. Esses são os bons personagens. Os excelentes atores, por sua vez, são vítimas exemplares. Os péssimos personagens e os péssimos atores dão-se sempre as mãos. São ambos, os péssimos personagens e os péssimos atores, enamorados eternos.


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sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Como o vento. 
Shakespeare é uma enorme árvore cujas palavras pairam penduradas em cada um de seus galhos. Nós, atores, somos o vento. Como se fôssemos o vento, percutimos as extremidades dessa enorme árvore, fazendo, então, uma enxurrada de verbos, adjetivos, substantivos, conjunções mil, interjeições infinitas, rimas e sentenças, enfim, vibrarem na mesma potência com que o vento, invisível, fere o cume dos eucaliptos em dias de ventania. Nós, atores, somos como o vento, invisíveis em sua forma habitual, sem identidade própria, escondidos por detrás da proteção da máscara. Se aparecemos, é para repetir a força do vento, para fazer a folhagem farfalhar, para dar passagem ao turbilhão de textos dessa frondosa e espetacular árvore shakespeariana...


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quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Estou num cartório. Num desses cartórios onde as pessoas entram para carimbar papéis e provarem que são de fato quem dizem que são. Entrei no cartório sem motivo algum. Sou quem sou e não tenho papel nenhum para carimbar e provar que sou esse, de fato, quem escreve essas linhas imprestáveis. Ao menos até quando me provarem o contrário, sou esse mesmo. Continuo sendo esse mesmo. Quando sinto que sou um miserável, que não valho um vintém furado de latão enferrujado, eu costumo fazer exatamente isso: levar as minhas pernas até o cartório mais próximo, sentar numa cadeira, e deitar os olhos nessas pessoas que carimbam papéis para outras pessoas que como eu precisam provar que são quem de fato são. Hoje eu não preciso provar patavinas nenhuma. A única certeza é a de que eu não sou tão miserável quanto pensava que era. Isso eu consigo provar. Mas só agora. Só depois de ter levado as minhas pernas a esse digníssimo estabelecimento onde as pessoas carimbam papéis para darem aos outros o nobre direito de existir com a legitimidade que toda alma nobre merece...



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O violino está para a personagem assim como o arco está para o ator. E assim como o arco já é o próprio violino, o ator já é a própria personagem. O erro é querer tocar o violino. O erro é querer interpretar a personagem. O arco e o ator, é aí que é preciso investir atenção. O violino e a personagem já estão, desde o princípio, prontos.




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sábado, 5 de setembro de 2015

O ator se salva pela repetição. O ator repete-se sempre. É através da repetição que o sentido maior do seu ofício se realiza. É ele, o ator, uma máquina de incansáveis repetições. Hoje as luzem apagam-se para o mesmo espetáculo repetido ontem. O mesmo espetáculo que amanhã irá repetir-se uma vez mais. E terminada a semana, uma repetição da semana anterior, a semana seguinte promete seguir repetindo o mesmíssimo espetáculo, e assim sucessivamente, e até que o conjunto dos meses formem um apanhado geral de repetições. Uma temporada de espetáculos para o ator é uma coleção repetida de repetições. É evidente que há quem diga que tudo isso é falso, que não há repetição alguma, que cada noite é uma noite, que o ator nunca carrega o mesmo de si para todas as sessões. E é evidente que isso é verdadeiro. Mas só é verdadeiro porque há uma moldura única onde encaixa-se um mundo completo de contornos imutáveis. O ofício do ator compreende precisamente esse esforço de recuperar e manter uma estrutura prévia, bem acabada e ensaiada. Naufraga, evidentemente. E naufraga porque sua tarefa é sempre impossível, uma vez que é impossível engendrar uma repetição perfeita daquilo que se imagina um espetáculo ideal. Mas o ofício é justamente esse: o de permitir-se naufragar recorrentemente pela recuperação das fundações de um ideal inalcançável. É por isso que a repetição para o ator tem peso igual ao de um mantra espiritual. É na repetição que o ator se agarra. É sempre um desejo de tornar-se o que era, ou o que foi. O tempo do ator não é o tempo do presente ou do futuro. É um tempo de passado, mítico, de lembrança pura, sem contaminações com as intercorrências do instante em que aparece ao vivo aos olhos do espectador. E é evidente que aqui ele naufraga mais uma vez. Porque é imperioso que o ator saiba lidar com aquilo que lhe apresenta o instante. E é nesse intervalo entre o que era e o que é preciso ser que o ator desequilibra-se... Mas desequilibra-se como o faz qualquer um na vida. A repetição dos dias nada mais é do que uma metáfora maior daquilo que se repete dentro do teatro. O ator se salva porque experimenta na segurança do campo simbólico aquilo que o cenário dos dias muitas vezes cega aos olhos do cidadão comum. A repetição feito ladainha, reza sistemática, cenas sucessivas, é uma espécie de revelação do nosso real tamanho - dentro e fora da cena -, sempre menores frente àquilo que previamente sobrevive a nós... Repare nas carpideiras! A grandeza das carpideiras não está em chorar por defunto algum, mas em repetir sistematicamente as mesmas lamentações. É a métrica que salva a alma! 

Ser ator é sobretudo um exercício ético e filosófico. A estética é consequência.

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quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Foi me dado o talento, ou o azar, de emocionar-me com as coisas que não existem. Um movimento de uma sinfonia, as cores impressas na paisagem pintada de um quadro, o parágrafo de um livro, a tristeza de um palhaço, um movimento de dança... Tudo isso me é fulminante. Sinto dor no coração com tudo aquilo que me convida a afastar-me da vida. As minhas lágrimas são fruto de metáforas. O meu riso igualmente é medido por contornos que não interferem em nada no fluxo ordinário dos dias. Eu mesmo escolhi como ofício a prática daquilo que nos convida a esquecer das fronteiras miseráveis de nossa existência. Tornei-me ator. E tenho absoluta certeza de que sou ator não por haver escolhido tornar-me ator, mas por falta completa de escolha. É um fardo ser ator. Mas um fardo maravilhoso. Ter o direito inalienável de gozar das intermitências daquilo que já veio a nós como contrato assinado é coisa que não cabe em valores financeiros. Crise econômica nenhuma abala um ator. Nossa vida é outra vida. A vida, essa primeira vida conhecida por todos, incluindo nós, atores, ela própria, a vida que somos obrigados a viver, sempre me pareceu um equívoco bastante suficiente para que eu pudesse importar-me com as suas recorrentes tragédias. Mas, e quando as pontas dos dois extremos aproximam-se de tal maneira coincidente que a dureza da realidade ameaça a mais pura das belezas de não conseguir alçar voo? Amanhã volto ao teatro para mais uma semana de Tempestade, o último e incrível texto escrito por Shakespeare. A história de um mago demiurgo que provoca um naufrágio de mentira. Próspero arma um teatro em busca da sua redenção através do perdão daqueles que no passado o fizeram mal. O mundo é um palco. Os ponteiros acertam-se na brincadeira de fingir um desastre. O mundo fora dos eixos de Hamlet é equacionado pela força da paz e pelo perdão. Shakespeare despede-se do teatro dando um voto de confiança e amor ao homem. O mesmo homem que por tantas peças o inspirou a derramar sangue na pele de personagens tirânicos. Mas tudo, enfim, parece correr para um destino comum. A vida é um sopro soprado pela boca de um idiota e sem sentido algum. Ou talvez sejamos todos feitos da mesma matéria efêmera e etérea dos sonhos, desmanchando-nos no curto período que dura um estalar de dedos. Nesse dia de hoje, impossível não lembrar-me de Adorno quando o filósofo pergunta-se sobre as chances da poesia sobreviver à Auschwitz. Impossível não lembrar-me do menino sírio de apenas três anos afogado na praia. Afogado de verdade. Impossível não pensar em mim, que tenho por dever inventar afogamentos diários. O que sou eu? Um canastrão distante dos acontecimentos que deveriam arrebatar-me? Ou já sou eu, sem o saber, um arrebatado desde o princípio? Quem domina quem? A vida a mim, ou eu à vida?

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Suassuna e Shakespeare são irmãos. O sertão do primeiro é 'o mundo é um palco' do segundo. Ambos são artistas da materialidade do teatro, da poesia forjada na mentira das tábuas do palco. O medievalismo de Suassuna repete-se nas fábulas sempre circulares e fantásticas do Bardo inglês. Há um microcosmo mítico latejando em ambos os autores, acompanhado por personagens arquetípicos que transcendem qualquer psicologismo ou tentativa de aproximar a vida da arte. A arte vence em ambos. E só vence porque alcança a vida, senão a particularidade imediata dela, a sua essência interior, imutável. Suassuna e Shakespeare são dois monumentos teatrais. São, ambos, teatro puro. E deveriam, ambos, ser exercício obrigatório para artistas dessa nossa geração tomada pela baboseira da intimidade, do eu-afetado, do preenchimento de uma individualidade que é sempre ínfima e desimportante frente a qualquer máscara poética.


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terça-feira, 1 de setembro de 2015

Há uma ética fundamental no distanciamento, nessa prática de não identificar-se, de estar à margem para ver e sentir o que há do lado oposto à margem onde se está. É como o ator que entende a sua personagem como um monumento artificial, estrangeiro a si próprio. Esse intervalo entre um e outro, como a distância entre uma margem e outra, é o que permite o verdadeiro conhecimento, aquele que usa o coração não para tudo deglutir e apropriar, mas para reconhecer que só quando há oposição é que é possível saber o que há de comum, aquilo que pertence ao meio. Afinal de contas, o rio não seria um belo rio, sequer um rio qualquer, não houvesse duas margens opostas e contrárias que o emoldurasse e fizesse correr suas águas...



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Meus impérios todos são de carta-de-baralho. Desmoronam fácil... Mas erguem-se tão rápido quanto tombam. Vario entre o Rei de Copas e o Valete de Espadas... Às vezes faço as vezes de Dama de Ouros também, mas só quando o mar está para peixes. O Ás eu sou sempre - seja de qual naipe for! Vivo ou morto, sou uma canastra real.



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Penso naquelas profissões que distribuem tristezas e alegrias em doses homeopáticas até o instante em que o tempo esgote tantas temporadas de risos e prantos. E penso agora no ofício do ator, que a cada santa noite, após o apagar das luzes, faz drenar todas as energias até a última gota de suor. O ator sai de cena desejando aposentar-se imediatamente. Nunca mais existir depois de tanta existência concentrada. E é essa enxurrada de tantos anos em poucas horas, um viver à vista e nunca em prestações, o que precisamente lhe confere uma dignidade única.



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segunda-feira, 31 de agosto de 2015




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Shakespeare é a coisa mais próxima do que se pode imaginar de uma orquestra de vozes, cores, tipos, melodias e formas. Somos todos instrumentos de naipes diferentes de uma mesma e única orquestra. Ninguém rege nada... Somos todos regidos.





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Que Deus me preserve o truque
Que o truque esteja sempre comigo
Que do truque eu possa sempre fazer uso e fazer do truque a minha ferramenta de trabalho
Que ninguém peça-me para ser verdadeiro
Que a vida nunca atravesse a fronteira artificial da arte
Que eu possa sempre mostrar-me artificial dentro dos domínios da arte - Essa é a única verdade que preservo
Que eu sempre - sempre! - seja um truqueiro de carteirinha
Um renomado falastrão
Que Deus me afaste do auto-conhecimento
Quero ver-me por fora, nunca por dentro
Sou oco!
Que eu seja sempre - sempre! - oco
Que o apelo à psicologia do invisível engesse e me alforrie das abstrações da alma
Que o meu corpo seja o meu monumento de sossego
Que minhas lágrimas e meu riso brotem da máscara forjada pelo truque
Que o teatro sempre me proteja dos adeptos do real, dos anunciadores das esquinas, dos pregoeiros da verossimilhança
Que o teatro e o truque sempre - sempre! - me acompanhem
Para todo o sempre...
Amém!



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sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Quando Shakespeare diz que o mundo é um palco, não é figura de linguagem. Para nós, atores, é coisa bastante concreta. É saber que o protagonista de Shakespeare são os arredores, as tábuas enfeitiçadas por sua bruxaria, que é, também, algo concreto e produzido. Portanto, mais importante do que pensar num trabalho de interpretação de atores, parece-me, Shakespeare convoca-nos ao desafio de produzir bruxaria. E quem dela toma parte, parece-me também, tem o dever de deixar-se contaminar por ela. Sempre carrego comigo a mais profunda convicção de que o bom ator que entra em contato com Shakespeare não preocupa-se em nenhum momento em dar conta de interpretar a sua personagem. Antes, ele sabe que é impossível responder à tamanha dimensão humana e poética ao singularizar a personagem dentro das reduzidas dimensões que lhe cabem como artista. O bom ator shakespeareano faz como Shakespeare pede, delega ao palco - e às bruxarias enfeitiçadas pelo palco - o desafio de o levar adiante em sua jornada.


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