domingo, 27 de março de 2016

Um juiz agir de acordo com suas posições ideológicas é o mesmo caso daquele ator que resolve 'defender' a sua personagem. Ambos são estúpidos. O bom ator sabe que o princípio fundamental do 'ser-ator' ao pisar no palco é o de exercer uma total amoralidade frente aquilo que se diz e faz. É exatamente como se lhe vendassem os olhos, imagem e semelhança da estátua símbolo da justiça. O péssimo juiz age feito um ator mimado (desses que a gente colhe em baciadas pelos melodramas televisivos), e que acha que representar uma personagem é emitir opiniões sobre ela.



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domingo, 20 de março de 2016

Havia pouco mais do que 15 pessoas. Botamos cadeiras no palco e fizemos o espetáculo. Para 15 pessoas. Elas estavam ali, ouvindo uma história. E nós estávamos ali também, diante daquelas pessoas, contando uma história. Todos no palco. Éramos poucos. Pouquíssimos. Não havia pirotecnia alguma preparada para maquiar com purpurinas, efeitos sonoros, apoteoses redentoras a precariedade concreta de ali haver um punhado mínimo de pessoas desejosas por ouvir uma história. E nós, tampouco - os contadores de história -, subimos a voz para compensar a pouca plateia que tínhamos, para convencê-la com nossos timbres graves de que éramos sim atores de grandes audiências, de porte superior, tarimbados pelo sucesso dos aplausos da cidade grande. Mas é justamente porque tudo era pobre, mínimo, sem qualquer recheio de pretensão do ego que fortalecemos na marra um sentido ético da comunicação estética que parece nos faltar nos dias atuais: é grave, gravíssimo chamar a atenção de alguém para defender uma ideia publicamente. E é pela gravidade da circunstância que a ideia defendida deve ser cuidada, pensada, ponderada. Porque uma ideia frouxa é uma ideia perigosa. E uma vez que a poesia é dada a convencimentos, uma frouxidão de uma ideia pode ser perfeitamente absorvida como algo bom, belo, sem consequências imediatas para o que essa mesma ideia capenga pode significar enquanto comportamento fora do teatro. Porque há política no ato de subir ao palco. E se é verdade que o palco tem em sua natureza expressiva a maravilhosa alforria da tarefa de consertar o mundo, é igualmente verdade que ele carrega consigo a maravilhosa capacidade de piorá-lo. Aquelas pessoas de hoje eram poucas, pouquíssimas. E tão assustadoramente próximas de nós. Tudo isso nos dava medo. Medo da responsabilidade de ser ator. Da difícil tarefa que é essa: a de contar uma história.

A maior corrupção que um ator dos dias atuais pode praticar é essa: a distância de sua plateia. E se a nossa principal referência de atuação são as novelas da televisão mediadas pela segurança da tela da televisão, parece-me, então, não ser a toa que nós, atores, sejamos também - e principalmente - a extensão imediata desse vazio de substância intelectual, gente mimada, histérica e vaidosa, razão e motivo da crise ética e política que aí está.



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Se houvesse grampos no teatro eu seria amanhã conduzido coercitivamente até Guantanamo... Basta virar as costas à plateia para que eu comece a avaliar:

- Olha lá a gorda na primeira fileira!
- A velha caquética da cadeira C2 está roncando!
- E quanto aquela dupla de patetas que não para um minuto de rir feito mulas relinchantes?

E por aí vai...



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Acho maravilhoso que a plateia se levante para vaiar, gritar impropérios merecidos, esbravejar, bater o pé firme no chão. Pior do que um ator ruim num espetáculo ruim é um espetáculo ruim com um ator ruim sendo ambas as coisas ruins, ao final, aplaudidas (de pé!).



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O teatro é um negócio tão bacana que às vezes o espetáculo está na plateia, não no palco. Outro dia, em pleno vigor do meu ofício em cima das tábuas, um único sujeito roncou a pulmões largos lá no meio do público. E todos nós percebemos. Meu desejo era de parar tudo, descer do palco e cumprimentá-lo por ser o único elemento sincero no meio daquela farsa toda recheada por tantos farsantes mentirosos. Contive-me, mas só o fiz porque sou medroso!



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Não é só Shakespeare que é bom! É o tempo em que Shakespeare era Shakespeare que faz uma falta danada. Tempo esse em que o espectador era majoritariamente do povão, que entrava no teatro mastigando uma coxa de frango assado, e que se não gostasse do que via em cima do palco - batata! - sobrava para o ator, alvo de toda espécie de artilharia: verbos arremessados, gritos teleguiados, restos de gordura abocanhados, tomate, laranja e etc...

Não é à toa que Shakespeare foi Shakespeare na época em que Shakespeare foi Shakespeare! Talvez justamente porque havia perigo em subir ao palco que esse homem genial deu conta de ser lapidado em sua genialidade!


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quinta-feira, 17 de março de 2016

Parece-me inconcebível que um ator de ofício - eu digo ator de ofício!, não desse tipo de ator do embelezamento da imagem para comércio com fã-clubes e indústrias do estrelato -, não reaja à farsa ocorrida no dia de hoje. Porque o nosso ofício, o do ator de ofício (e eu sou um deles, e com orgulho monumental de ser quem sou), é fazer farsa. Ir ao teatro para subir ao palco é como inocular-se com uma vacina poderosíssima de imunidade aos espetáculos da vida. Porque ser ator é habitar um ceticismo pedagógico que evita patinar nos extremos da euforia, seja quando ela é movida pelo sorriso da alegria ou pela lágrima da tristeza. Ser ator é botar a cabeça para funcionar sem contaminar-se com o jorro de emoção que emburrece a massa da plateia dos nossos dias - porque a plateia é altamente afeita a deixar-se emburrecer, a ser conduzida, a fazer coro com os efeitos espetaculares forjados especialmente para que ela dê risada ou para que ela chore. Como um ator de ofício pode deixar-se levar por uma cena teatral cujos personagens são tão patéticos e mal interpretados? Não digo que haja uma verdade e que sou eu o arauto divulgador dela, Não! Pelo contrário! Não sou oráculo de nada. E estou exatamente no lado oposto: o da mentira. Como fazedor de farsas que sei que sou, entendo eu bastante bem de como produzir uma mentira. É dessa instância que é preciso tratar: se a verdade é inapreensível, a mentira é coisa bastante fácil de tocar com as mãos, de manipular, de se ventilar por aí. E se o mundo é um palco, como Shakespeare diz, é bom que saibamos que a mentira é matéria prima constituinte das tramas das esquinas. Portanto, aplaudir com seriedade aquilo que é tão fajuto quanto o é um figurino mal vestido, parece-me - quando se trata da voz de um ator de ofício -, uma aberração de proporções gigantescas, de mentecapice autoproclamada, de ausência de conhecimento sobre aquilo que se faz quando os refletores se acendem. Sou grato ao meu ofício. Subir ao palco é um tratado diário de ética e política. Porque interpretar uma personagem nunca é viver o que a personagem vive! Nunca! Isso é retórica afetada de quem usa a paciência alheia para afirmar o seu próprio ego dilatado. Interpretar uma personagem é direcionar o olhar para o ser humano e surpreender-se com ele, analisá-lo, pensar com ele, ter dúvidas sobre quem ele é, é assombrar-se dele e apresentá-lo para a apreciação coletiva! Trabalhar com a mentira é saber livrar-se dela, ou rir daquilo que os outros acreditam sem que saibam das estratégias de produção dessa crença, que é - quando interessa a alguém -, uma brilhante manobra de poder. Ser ator é saber ser um estupendo manipulador. Mas aí já é um poder controlado, propositalmente localizado para que tenha um começo, um meio e um fim. Um belo de um castelo de cartas que se constrói à vista de todos, sem desejo algum de sedimentar paredes de concreto.

Que beleza que é ser ator... Mas um ator de ofício!


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terça-feira, 15 de março de 2016

Nossa miséria ética dos atuais tempos é uma miséria da estética. Porque gostamos do espetáculo. E desejamos o espetáculo. E dele, do espetáculo, viramos sorridentes reféns. Quando não há espetáculo há uma completa ausência de pensamento e de imaginação. Pensamento e imaginação que são devidamente suprimidos pelo barulho ensurdecedor do mesmo espetáculo. É como se no espetáculo fôssemos todos plateia, uma massa só, sem rosto, sem contornos próprios, e nunca espectadores individualizados, que, por serem individuais, poderiam contribuir para a formação de uma coletividade verdadeira, de uma audiência participativa. Explico com exemplos. No passado, início dos anos 90, fui ao ginásio do Ibirapuera assistir a final da Copa América de Basquete Feminino entre Brasil e Cuba. Era o auge de Paula e Hortência. O ginásio lotado era um túmulo de silencio que explodia em festa quando o Brasil convertia pontos, e lamentava-se em interjeições variadas quando Cuba contra-atacava. A cada arremesso, quando a bola saía das mãos das jogadoras, o lugar mergulhava num incrível vácuo de expectativa. Era como se cada espectador emprestasse a sua expressão íntima de angústia para empurrar ou interceptar a bola em sua trajetória. Formávamos ali, todos nós, uma verdadeira audiência que pulsava em parceria com as atletas. O jogo era jogado por todos nós, impreterivelmente. Recentemente, estive no Canadá para assistir a uma partida da NBA. Nada poderia ser mais insuportável. Não havia sequer um segundo de paz dentro do ginásio, tanta a necessidade que havia de lotar-nos com danças, imagens, shows, pipocas, purpurinas, concursos, rifas e etc. Todos nós, incluindo os jogadores, éramos coagidos à histeria do espetáculo, algo extremamente forçado que nos impelia a sorrir, a seguir a coreografia da música, a dançar nos mesmos passos dos animadores de plateia que não nos deixavam sossegados um único segundo para que pudéssemos acompanhar o jogo. Mesmo os jogadores mal conseguiam jogar, tantas eram as interrupções preenchidas com distrações que invadiam suas orelhas e olhos. E assim seguíamos todos sorrindo, e cantando e dançando, aparentemente incólumes à esquizofrenia a que éramos submetidos. Mas jogo mesmo, pouco ou quase nada havia. Éramos todos indiferentes a qualquer coisa que pudesse de fato acontecer justamente porque nada acontecia de fato, tantas eram as coisas que aconteciam ao mesmo tempo e a todo tempo. Hoje mesmo, vi uma foto na internet da plateia de um teatro cujo espetáculo musical - desses musicais de franquias internacionais -, é a grande sensação do momento. A plateia, ainda com o pano do palco fechado, parecia um gigantesco parque de diversões, com dragões saltando da moldura da boca de cena, poltronas estilizadas, cores e formas que mergulhavam o espectador numa experiência psicodélica antes mesmo de alguma coisa começar. Não vi o espetáculo, mas garanto que a coisa não deve fugir muito disso: músicas, danças, cenários que sobem e descem, trocas infinitas de figurinos e perucas... Enfim, um espetáculo que age no espectador feito uma tsunami de afetações diversas, fisgando-o para que não fuja um segundo daquilo que lhe é forçado engolir goela abaixo. Ainda em tempo, faço eu uma outra peça de teatro em que tudo o que ocorre no palco é propositalmente escancarado a fim de que a plateia possa reconhecer as estruturas de funcionamento de uma peça de teatro em cima do palco. A barba que grudo no meu queixo é uma barba falsa, e que é falsa propositalmente, e que, em determinado momento não definido, desaba, cai depois de ser descolada pelo suor do meu rosto. O truque que é mostrado de início enguiça suas engrenagens diante da plateia. A tentação de oferecer a perfeição acabada dá passagem ao precário, àquilo que não está inteiramente pronto. Nada do que fazemos é esgotado por nós que o fazemos, como se não nos coubesse comentar nada daquilo que é justo a se fazer, deixando para a plateia um importante espaço para que ela veja e escute o que estamos fazendo. E o teatro ganha em intensidade, porque afastamos a ideia de que é preciso estar a serviço de um espetáculo de sentidos variados. Somos apensas contadores de histórias. E o espectador é um ouvinte daquilo que contamos. Só isso. E isso basta para que haja uma coletividade pulsante, com cada individualidade contribuindo para a formação de algo maior e de pertencimento comum. Nossa miséria ética é porque não suportamos mais o precário, o simples, o silencioso. Queremos sempre o redemoinho de sensações. E mergulhar nesse redemoinho é desencumbir-se de pensar, imaginar, emprestar atenção para algo que exija trabalho e suor. Enfim, nossa miséria ética é uma miséria da preguiça autoproclamada, ou do desejo mimado de sermos sempre entretidos, ou de virarmos astros de algum show de exibição pública. O que é tudo, no fim das contas, a mesmíssima coisa.




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Todo ator deveria ser - antes de ser ator! -, um músico... ou um dançarino... ou um músico-dançarino. Todo ator deveria ser - enquanto fosse ator! - um músico... ou um dançarino... ou um músico-dançarino. Todo ator não deveria ser ator coisa nenhuma. Deveria ser um músico... ou um dançarino... ou um músico-dançarino. Todo ator deveria ser tudo e qualquer coisa, exceto ator.



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A plateia nutre sempre um desejo sádico de ver o ator tropeçar, de perder as estribeiras e ver desmontado o seu edifício ensaiado. E quando há o tropeço o ator também sai ganhando. Porque é um tropeço que reforça a natureza forjada daquilo que ele tanto se empenhou em erguer. Mas há uma ocasião de ainda mais sabor, que é quando o ator finge tropeçar. Nesse caso, é como se ele - o ator -, dobrasse os fingimentos: finge que é a personagem quem diz ser, e finge também perdê-la momentaneamente. É como enganar a plateia duplamente. Ela crendo reconhecer o truque, ele lançando mão do truque de perder falsamente o truque.

Até quando há quedas, propositais ou espontâneas, o teatro continua sendo o mais fantástico terreno de encontro entre ator e espectador.


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Quanto menos teatrais somos, mais sentimentais viramos. Porque 'ser' teatral implica em ser duas vezes: aquele quem se é porque é impossível deixá-lo de ser, e aquele outro que inventamos ser ainda que seja impossível sê-lo. E é nesse intervalo entre os dois extremos que se forma uma consciência especial: um terceiro 'eu' privilegiado, alguém capaz de relativizar as próprias dores e olhar para o outro sem despejar em suas costas as dores íntimas que deveriam caber só a nós. Quanto menos teatrais somos, mais protagonistas desejamos ser, dessa espécie de protagonista de monólogos internos e nada afeitos ao mundo que corre para além dos nossos muros particulares. A bem da verdade, ser ator é habitar esse hiato de consciência, é ser e não ser. Mas cada vez menos somos atores porque abandonamos o silêncio fundamental que exige a formação de ser ator, privilegiando, em contrapartida, a personagem. Somos mais personagens que atores, mais sensíveis que racionais, mais sentimentais que pensadores. E pouco ou nada desconfiamos disso. Somos uma geração que o 'ser-ator' virou moda. Mas quantos desses tornam-se de fato um 'ser-ator'? Quase a totalidade dos aspirantes são personagens de si próprios, restritos à melancolia de si próprios, defensores de uma máscara nada expressiva e que some nas linhas de expressão de um rosto já carimbado por um sorriso formatado. Ainda que não o saibamos! A crise ética da qual padecemos é uma crise estética. Num país dominado pelo melodrama lacrimoso das novelas televisivas - há muito distantes de um registro teatral -, o que nos sobra é uma rua igualmente lotada de espectadores birrentos e mimados, sem consciência alguma de que existe um esforço mais generoso do que aquele despendido quando se chora diante da celebridade do momento, ela própria movida por outra dor que em nada a faz emancipar de seu umbigo de galã de destaque comercial. Nossa crise ética é uma crise estética. Somos pobres de espírito porque somos pouquíssimo teatrais, e quase totalmente preenchidos por suspiros, interjeições mixurucas, à partes melosos, enfim, um contingente inteiro de mimimis só nossos. Nossa crise atual é uma crise de espetáculos de péssima qualidade. E somos nós, sem dúvida alguma, personagens à altura dessa trama de fazer inveja ao universo de uma criança de 5 anos com a chupeta ainda na boca e recém saída das fraldas.


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Um ator que diz que aprende o seu ofício na prática se equipara aquele neurocirugião que opera cérebros para ao final da experiência ganhar o seu diploma de médico. É de um sintoma extremo da nossa mediocridade essa ideia de que o ator é intuitivo, criativo, iluminado (e bonito, claro!), e que suas benesses de profissional vão aflorando na medida em que ele realiza o seu trabalho diante do público. Aliás, um ator dessa estirpe é pior que o tal do neurocirugião charlatão. Porque no caso desse neurocirugião de araque a morte da cobaia pode ser instantânea - o que é uma batia sorte -, enquanto, no caso do dito ator em questão, o prejudicado desse tipo bastante especial de artista-dos-sentidos é uma massa de gente, e cada vez mais contaminada pela apatia de ideias, pela falta absoluta de expressão, de substância. No caso do ator charlatão, a morte é coletiva, e em banho-maria.



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O teatro é aquela espécie de panacéia universal que age na prevenção das doenças de histeria coletiva, que abre a cuca para as contradições humanas, que inocula o vírus da curiosidade, do espanto, do assombroso espanto de sermos quem somos, da vigília aos espetáculos que nos acostumamos a representar sem saber que os representamos. O teatro, sendo uma réplica da vida - que já é farsa -, duplica a farsa da vida - que é e sempre foi teatro -, e nos concede uma importante dose de ceticismo racional contra todas as paixões cegas que tapam nossos olhos para aquilo que existe.


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Tive a chance de pegar em minhas mãos um violino francês que data de 1820, quando ainda estávamos nós aqui batendo tambor acústico e dançando a ciranda-cirandinha diante do Pátio do Colégio... Essa é a diferença entre nós, atores, e os músicos. Enquanto os primeiros padecem de sumiços definitivos e eternos, os segundos - sortudos! -, tem seu legado garantido pela história: se o destino do músico é virar pó tal qual a dignidade carcomida do ator, ao menos o instrumento ganha o passe livre dos tempos. O que já é muito! Imagine se fosse possível dar as mãos ao Lawrence Olivier e ir para o teatro trabalhar?! Ah, que miséria! O que nos cabe é ter a Susana Vieira como ícone do movimento de moralidade do país.

Se eu pudesse nascer de novo, já sairia da barriga de mamãe beliscando uma corda de berimbau... e dane-se o 'ser ou não ser, eis a questão!'



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quinta-feira, 3 de março de 2016

O segredo é tratar os pequenos e imprestáveis temas com a imensidão filosófica que lhes cabe, e dedicar aos grandes assuntos da humanidade um bocejo à altura do que fazem por merecer.



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Parágrafos para desmontar STANISLAVSKI:

Todo esforço para 'ser alguém' é uma corrupção da alma. E também do corpo. Da alma porque é ignorada quem ela seja; e do corpo que já é quem ele precisa ser sem que haja necessidade de esforço algum.



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Uma coisa existe porque eu que a vejo posso vê-la e dizer: veja, tal coisa existe; ou, então, algo existe independente do meu olhar? Não havendo eu, a coisa ainda é uma coisa? Em outros termos, uma árvore só é bela porque eu posso adjetivá-la assim, e, aí, será uma árvore única, só sendo árvore bela porque eu a criei dessa forma. No entanto, a mesma árvore, bela ou não bela, continuará sendo árvore independente de mim. Se eu deixo de existir, a minha árvore bela também deixa de existir, mas a árvore que me inspirou a usar o adjetivo belo, em seu ser-de-árvore, continua sem mim. A essência da árvore - sua verdade - ultrapassa o meu olhar sobre ela e existe para outras pessoas que não eu. Existe para o mundo. Agora, se eu quiser contar para alguém o que é uma árvore, é preferível que eu não use adjetivo algum, uma vez que a minha árvore não pode ser a árvore propriamente dita, tampouco a árvore que o meu interlocutor irá formar em sua mente. É antes imperioso esforçar-me por dar corpo à ideia da árvore sem qualquer tentativa de interpretá-la. E, se esse exercício é impossível - haverá uma descrição pura da árvore a fim de transmitir a sua essência sem filtros pessoais meus? -, é justamente pelo terreno da impossibilidade que devemos dedicar nossa jornada. Porque agindo assim, ao menos, abre-se um espaço maior para que o meu interlocutor forme a sua ideia particular da árvore, e sem que eu tente convencê-lo de que a minha árvore é a árvore verdadeira. O mesmo acontece com o ator. Contar quem é Hamlet não é Interpretar quem é Hamlet, ou, então, seria tentar fazer com que o público convença-se de que o meu Hamlet existe, o que por si só já é mais do que absurdo. Hamlet, para que ele exista como comunicação ao interlocutor, não deve ser interpretado por ator nenhum, mas alcançando em alguma corporeidade concreta, física, que apareça como tentativa de isenção à tendência do ator a decifrar o Hamlet que diz respeito a ele, e, assim, já não não mais podendo ser o Hamlet verdadeiro. O ator deve buscar o ser da coisa, a sua existência material, e não o preenchimento emotivo-sentimental dela. Hamlet existe para além do ator porque ele é matéria forjada pelo teatro que o concebeu. Sendo máscara - que é objeto - Hamlet pode ser comunicado. De outra maneira, quem estará em evidência será sempre o ator, que embora creia estar vivendo Hamlet, só o estará vivendo de si para si, excluído o outro, e excluindo também qualquer chance de comunicação. O ator, então, deve participar de uma morte simbólica e deixar de ser ator para que a sabedoria de seu corpo dedique-se a contar da maneira mais objetiva e racional quem é Hamlet. O bom ator é um suicida, aquele que propositalmente não insere nada de seu íntimo e pessoal em nada. O bom ator mata o seu eu-ator para que a personagem, enquanto essência, possa ter chance de se configurar, e existir para uma futura composição por parte do espectador...



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Estou com Espinosa! Há um sistema que precede, suplanta, e permanece para além daqueles que dele tomam parte. A natureza é esse sistema perfeito. Como o é o teatro para o ator. Quem determina o ator é o teatro. A personagem lhe molda, e não o inverso. A ideia de livre arbítrio é tão falha para o homem na vida quanto para o ator no teatro. São ambos, homem e ator, peças menores frente ao sistema que os engendra. E isso não significa a diminuição da energia de suas ações. Ao contrário, é canal de potencialização de suas forças.




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Fechar um teatro é pior que fechar um hospital. A urgência concreta de um não chega aos pés da inutilidade essencial do outro. Nada a ver com a disputa corpo versus alma. A questão é de importância mesmo. Cancelar uma peça de teatro faz doer tudo, corpo e alma, e ao mesmo tempo.


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Quando eu olho
Sou eu quem olha o mundo
Ou é o mundo quem me olha olhando?
Quem olha quem?
Quem é quem que olha aquele que olha?
Ser olhado já é olhar?
Ou é olhando que se olha?



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