terça-feira, 15 de março de 2016

Nossa miséria ética dos atuais tempos é uma miséria da estética. Porque gostamos do espetáculo. E desejamos o espetáculo. E dele, do espetáculo, viramos sorridentes reféns. Quando não há espetáculo há uma completa ausência de pensamento e de imaginação. Pensamento e imaginação que são devidamente suprimidos pelo barulho ensurdecedor do mesmo espetáculo. É como se no espetáculo fôssemos todos plateia, uma massa só, sem rosto, sem contornos próprios, e nunca espectadores individualizados, que, por serem individuais, poderiam contribuir para a formação de uma coletividade verdadeira, de uma audiência participativa. Explico com exemplos. No passado, início dos anos 90, fui ao ginásio do Ibirapuera assistir a final da Copa América de Basquete Feminino entre Brasil e Cuba. Era o auge de Paula e Hortência. O ginásio lotado era um túmulo de silencio que explodia em festa quando o Brasil convertia pontos, e lamentava-se em interjeições variadas quando Cuba contra-atacava. A cada arremesso, quando a bola saía das mãos das jogadoras, o lugar mergulhava num incrível vácuo de expectativa. Era como se cada espectador emprestasse a sua expressão íntima de angústia para empurrar ou interceptar a bola em sua trajetória. Formávamos ali, todos nós, uma verdadeira audiência que pulsava em parceria com as atletas. O jogo era jogado por todos nós, impreterivelmente. Recentemente, estive no Canadá para assistir a uma partida da NBA. Nada poderia ser mais insuportável. Não havia sequer um segundo de paz dentro do ginásio, tanta a necessidade que havia de lotar-nos com danças, imagens, shows, pipocas, purpurinas, concursos, rifas e etc. Todos nós, incluindo os jogadores, éramos coagidos à histeria do espetáculo, algo extremamente forçado que nos impelia a sorrir, a seguir a coreografia da música, a dançar nos mesmos passos dos animadores de plateia que não nos deixavam sossegados um único segundo para que pudéssemos acompanhar o jogo. Mesmo os jogadores mal conseguiam jogar, tantas eram as interrupções preenchidas com distrações que invadiam suas orelhas e olhos. E assim seguíamos todos sorrindo, e cantando e dançando, aparentemente incólumes à esquizofrenia a que éramos submetidos. Mas jogo mesmo, pouco ou quase nada havia. Éramos todos indiferentes a qualquer coisa que pudesse de fato acontecer justamente porque nada acontecia de fato, tantas eram as coisas que aconteciam ao mesmo tempo e a todo tempo. Hoje mesmo, vi uma foto na internet da plateia de um teatro cujo espetáculo musical - desses musicais de franquias internacionais -, é a grande sensação do momento. A plateia, ainda com o pano do palco fechado, parecia um gigantesco parque de diversões, com dragões saltando da moldura da boca de cena, poltronas estilizadas, cores e formas que mergulhavam o espectador numa experiência psicodélica antes mesmo de alguma coisa começar. Não vi o espetáculo, mas garanto que a coisa não deve fugir muito disso: músicas, danças, cenários que sobem e descem, trocas infinitas de figurinos e perucas... Enfim, um espetáculo que age no espectador feito uma tsunami de afetações diversas, fisgando-o para que não fuja um segundo daquilo que lhe é forçado engolir goela abaixo. Ainda em tempo, faço eu uma outra peça de teatro em que tudo o que ocorre no palco é propositalmente escancarado a fim de que a plateia possa reconhecer as estruturas de funcionamento de uma peça de teatro em cima do palco. A barba que grudo no meu queixo é uma barba falsa, e que é falsa propositalmente, e que, em determinado momento não definido, desaba, cai depois de ser descolada pelo suor do meu rosto. O truque que é mostrado de início enguiça suas engrenagens diante da plateia. A tentação de oferecer a perfeição acabada dá passagem ao precário, àquilo que não está inteiramente pronto. Nada do que fazemos é esgotado por nós que o fazemos, como se não nos coubesse comentar nada daquilo que é justo a se fazer, deixando para a plateia um importante espaço para que ela veja e escute o que estamos fazendo. E o teatro ganha em intensidade, porque afastamos a ideia de que é preciso estar a serviço de um espetáculo de sentidos variados. Somos apensas contadores de histórias. E o espectador é um ouvinte daquilo que contamos. Só isso. E isso basta para que haja uma coletividade pulsante, com cada individualidade contribuindo para a formação de algo maior e de pertencimento comum. Nossa miséria ética é porque não suportamos mais o precário, o simples, o silencioso. Queremos sempre o redemoinho de sensações. E mergulhar nesse redemoinho é desencumbir-se de pensar, imaginar, emprestar atenção para algo que exija trabalho e suor. Enfim, nossa miséria ética é uma miséria da preguiça autoproclamada, ou do desejo mimado de sermos sempre entretidos, ou de virarmos astros de algum show de exibição pública. O que é tudo, no fim das contas, a mesmíssima coisa.




...



...

Nenhum comentário:

Postar um comentário