domingo, 26 de novembro de 2017

Não se forma um artista através do ser humano, mas é através da arte que se chega ao homem. Boas maneiras não pintam um quadro. Beethoven foi o homem que foi porque compôs a nona sinfonia, não compôs a nona sinfonia porque era um homem com qualidades éticas e morais que lhe outorgavam o direito a compor a obra. Arte é um obstáculo, não uma consequência de quem é o artista na sua esfera íntima. Somos bons atores e atrizes não porque somos bons atores e boas atrizes. Somos bons atores e boas atrizes porque as personagens que fazemos são boas. É a coisa bem feita o que nos torna bons, nunca nós, que somos primeiramente bons, que tornamos a coisa boa. Antes da pessoa vem algo a ser feito. É esse algo, a maneira de realizá-lo, o que a define. Inverter essa equação é afrouxar a expressão, é render a potência de um gesto à flacidez do companheirismo, do bairrismo, daquilo que nasce e morre imediatamente sem qualquer energia para além do autor que a produziu. Por uma necessidade de sobrevivência matamos as nossas ações. Ao contrário, se morrêssemos primeiramente o produto de nosso esforço seria duradouro, e justamente porque a atenção já não está mais em nós, mas em algo mais essencial e urgente, algo que exige a atividade concreta de ser feito.


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domingo, 19 de novembro de 2017

Esse 'interpretar' deveria ser proibido no dicionário. Sugere coisa interna, circunscrita a um perímetro. Esse inter do interpretar é de um desserviço. Lembro da escola, dos campeonatos de intercalasses, um punhado de times condenados a competir entre si. Quem foi que inventou esse verbo para resumir o trabalho do ator? Deveria ser exonerado do cargo de conselheiro gramatical imediatamente - vinde a nós, oh Camões, socorrei-nos! Ator não é da praia do inter, não internaliza nada, ao contrário, ator é do time do exo, do fora, do para além de... Ao invés de interpretar, deveria ser catapultar, expelir, arremessar para longe. Personagem não se resolve na instância íntima. É - isso sim -, território do espectador. Ele que se vire com a personagem. O ator tem como função jogar a personagem para longe do palco, despejá-la no colo da audiência. Ela, a audiência, que resolva o que fazer, como traduzir, de que maneira interpretar o que lhe chega através do esforço do ator.
Não interpretamos nada. Esse tal de interpretar que fique com o povo da televisão, com os atores de estúdios, com os diretores que dirigem sussurros, gemidos, piscadelas para que a câmera possa registrar esse conjunto sem sal de espasmos dramáticos. Ator - e ator só é ator porque é ator no teatro - faz outra coisa completamente diferente.



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quinta-feira, 16 de novembro de 2017

Duas possíveis razões para justificar o gosto saboroso que tenho ao fazer o que faço: 1 - é coisa que pertence ao instante / 2 - não carrego comigo os bônus e os ônus do sucesso ou do fracasso.... Aliás, pensando bem, as duas etapas acima são complementares, talvez um único e mesmo movimento: o que é efêmero não deixa traços ou vestígios. Digo e repito, não é modéstia fingida de quem falsamente rejeita os possíveis confetes ou advoga um lugar especial dentro de um mundo onde todos desejam a eternidade, os aplausos eternos, os autógrafos e assédios infinitos que façam cumprimentar o esforço realizado e aprovar o talento exibido. É, ao contrário, uma vaidade espetacular o que me move. Perseguir o esquecimento é um negócio de liberdade profunda, de prazeres indiscretos e indescritíveis. Quem diabos opta pelas amarras de uma reputação, de uma imagem, de um som de voz gravado direto na lapela? Tudo isso conspirando - o que é ainda mais irônico - para a formatação de uma persona quase sempre irreal, montada nas expectativas da aceitação e recusa alheias? Eu não... Quero sempre a violência da liberdade profunda, os riscos do precipício: melhor se atirar lá de cima por livre e espontânea vontade do que ser empurrado.

Gosto do teatro por uma vocação ética e política, mas também por uma memória infantil de quando eu não tinha outras responsabilidades senão entregar-me ao sabor de viver. É exatamente isso: teatro é um jeito bastante concreto de evitar tornar-se um sujeito canastra e manipulável pela simples razão de que no teatro o que é essencial é o acesso aos desejos mais primitivos, lúdicos, infantis, nada determinados pelo mercado, mídia, pela mais nova maquiagem lançada na vitrine, pelas taras reprimidas de séquitos histéricos e maluquices afins...

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domingo, 12 de novembro de 2017

Ser ator é o exercício mais absolutamente político que pode existir... Tomar para si discursos que não são seus, inventar posturas que jamais seriam espontaneamente experimentadas pelo seu corpo, e tudo isso com prazo de validade curtíssimo, condenado que somos a voltar a uma normalidade desetemperada dos exageros propositalmente forçados. Mas a beleza da coisa está justamente aí: o lado político do ofício do ator está para além da consciência de que se é um fingidor no ato mesmo do fingir. As consequências são posteriores. Já não se pode mais considerar a normalidade como algo normal ou natural. A personagem funciona como esse espelho invertido que faz amplificar aquilo que antes soava como atributo pessoal e íntimo, escondido do foco de atenção alheio. Curiosamente, o ator, em alguma medida, desenvolve uma inevitável esquizofrenia que poderia ser resumida assim: quanto maior for o seu tempo sendo outros, mais chances haverá dele reconhecer que a única personagem possível e viável é aquela que atravessa a rua despreocupadamente, sem intenção alguma de angariar palmas ou ter medo das vaias. O esquisito da ficção passa a ser o natural. A vida recebe o título de enredo dramático. Ao ator, enfim, cabe essa dialética, que é um caminho pavimentado para a manutenção de um certo ceticismo privilegiado: se o mundo é um grande palco, melhor divertir-se com seus absurdos, rir das suas comédias, chorar como choramos ao assistir a um filme dramático debulhado em lágrimas. Consertar o que quer que seja já não é mais uma opção, tão patético quanto advertir Hamlet de que há veneno na ponta da espada.

Nada mais político do que ser ator.

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quinta-feira, 9 de novembro de 2017

A personagem já existiu. Se existe novamente é por motivo de uma atualização da sua já declarada não-existência. Raskolnikóv já matou a velha usurária quando Crime e Castigo começa, Hamlet já disse ser ou não ser eis a questão quando o fantasma aparece pela primeira vez aos guardas de Elsinore. Tudo já foi dito, escrito e revivido. Outros atores já representaram o mesmo papel que o ator de hoje representa. O teatro é essa espécie de templo religioso, mágico - ou fantasmagórico - que evoca o passado no presente. Nada é aqui e agora, tudo é lá atrás, no era uma vez. O tempo do teatro é o da narrativa épica. Primeiro é preciso ter morrido para depois celebrar a vida. Brás Cubas é o melhor ator que a prosa literária brasileira deu conta de produzir, e justamente porque Brás Cubas encarna a função primordial do ator: Brás Cubas já não é mais Brás Cubas no instante em que ele se apresenta a nós. Brás Cubas só pode ser Brás Cubas porque Brás Cubas já deixou de ser Brás Cubas. Memórias Póstumas de Brás Cubas é a melhor peça dramática que um autor nosso soube escrever. O ator presentifica não o que é, mas o que já foi. Essa ideia é importante justamente para reforçar o papel do ator diante da personagem, para reforçar a sua evidente reverência a algo que não pode ser ele próprio em ação, mas ele próprio no exercício de revelar algo para além do que ele é, ou pode ser, com o seu esforço. Nada mais frustrante do que um ator que aparece para o espectador ocupado com a inútil tarefa de SER ou VIVER a personagem que representa. Personagem nenhuma se presta a isso. A personagem é uma máscara que deve ser revelada pelo veículo que é o ator. Ele a estampa diante da plateia. A humildade do ator cabe nesse entendimento: a de que ele é simplesmente - e meramente - um arauto fúnebre daquilo que já se foi. O tempo presente da encenação teatral é um tempo coagulado. Aí está a sua força de persuasão e de convencimento - precisamos da fábula para misturar-nos a essa espécie de magia eterna que falta a nossa curta existência.


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domingo, 5 de novembro de 2017

Está rolando um stand-up comedy no mesmo palco de um suposto teatro dentro de um shopping, o mesmo palco em que daqui a instantes entraremos em cena para fazer o nosso Nelson Rodrigues... Parece que o astro é um YouTuber, desses que ganham a vida influenciando os hábitos de um público que nunca deve ter avançado do capítulo dois de um livro sem figurinhas estampadas. A plateia ri histérica feito um bando de hienas esquizofrênicas - impossível não lembrar do próprio Nelsão dizendo que teatro feito para rir é coisa tão abjeta quanto uma missa cômica com o padre a fazer malabarismos com laranjas. O sujeito que empunha o microfone dá tudo de si nesse evento de emendar uma piada pronta noutro palavrão que suscita os hormônios daqueles que curiosamente cumpriram a 5a série do primeiro grau a despeito da barba que desponta do queixo e dos pelos que avolumam no sovaco. Será uma experiência no mínimo antropológica subir ao palco logo em seguida a esse ritual de macumba do fast-food contemporâneo. Não peço a proteção de Dionísio porque se Dionísio aqui houver ele deve estar mastigando uma pipoca no Cinemark assistindo ao filme do Danilo Gentilli, última super produção do cinema nacional.

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Gosto de todo tipo de formalidades. Antes ser alguém adepto de protocolos do que de intimidades declaradas. Me revelo no esconderijo das mesuras, dos gestos ensaiados, da etiqueta fingida. Tenho pavor e dificuldades extremas em tudo aquilo que envolve essa qualidade do ser-espontâneo. Sou ator por isso: é mais fácil mentir sobre quem eu sou do que imaginar ser eu mesmo sendo quem sou. A minha liberdade é poder mentir sem sentir remorsos.

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