sexta-feira, 28 de abril de 2017

Acho que a profissão de ator é a profissão das profissões. Porque fingi-se o tempo todo e sem qualquer peso na consciência. E porque você também, que não é ator, finge igualmente, mas acredita que não, que diz a verdade e nada mais do que a verdade. E quando você descobre que é uma farsa completa - porque esse dia sempre chega -, você endoidece, começa a tomar antidepressivos e a fazer terapia (outro território absoluto da enganação). Enquanto nós, atores, fingidores declarados e orgulhosos, quando percebemos que não conseguimos fugir da verdade, dizendo só a verdade e nada mais do que a verdade - porque esse dia também chega -, enfiamos viola no saco... e aposentamos... E fim de papo.


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quarta-feira, 26 de abril de 2017

Uma das tantas baboseiras que inventaram sobre o artista é que ele é, quer queira ou não, uma tal de figura pública. E de posse desse figurino de figurão público ele acredita agregar uma série de mesuras cívicas, éticas, ideológicas, tudo convergindo para um certo dever de tornar o mundo melhor, apresentar-se como exemplo a ser seguido, uma espécie de embaixador da boa vizinhança que ganha pontos todas às vezes em que ajuda uma velhinha manca a atravessar a rua no farol vermelho, ou simplesmente um sujeito atento e vigilante às modas do tempo, com medo de se comprometer diante do burburinho coletivo. Ou até mesmo algum hippie esquisitão, que só é esquisitão porque há um mercado alternativo da esquisitice para que haja alguns poucos esquisitos a serem aplaudidos por sua relevante alma esquisita e proclamada. Pois acho tudo o inverso. O artista é quem morre para a vida, e de lá, do além, resolve contar despretensiosamente umas boas verdades. É um Brás Cubas. Um fantasma impertinente. E sem fazer esforço para se tornar um misantropo indesejável, porque senão vira gente Cult, tão besta quanto os figurões públicos, os medrosos covardões ou os hippongas da lojinha do paz-e-amor. O artista é, por princípio, alguém que mandou uma banana para as idiossincrasias desse mundo chato e civilizado (ou nem tanto). Acho infinitamente mais digno conferir ao artista a alcunha de bobo da corte, figura saltitante que vagueia pela periferia mal iluminada do trono. Seu poder esta justamente aí: numa inutilidade completa para o funcionamento do sistema. O poder de fogo do artista está no quanto de invisibilidade ele consegue atribuir a si próprio. O inverso é igualmente verdadeiro: basta torná-lo uma figura de auditório para idiotizá-lo dos pés à cabeça.


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domingo, 23 de abril de 2017

O teatro precede o ator. E não há nisso filosofia nenhuma. O palco é anterior ao ser ou não ser, eis a questão.


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Há uma radical impossibilidade de pensar teatro antes do teatro. E por uma razão bastante óbvia: é preciso estar no teatro para fazer, e, principalmente, pensar teatro. Não há conceito que sobreviva à ação, à coisa física, que é o próprio teatro. Sabendo disso, por que é que nós, atores de teatro, pouco pensamos no teatro? Talvez porque estejamos no teatro fazendo de um tudo, exceto teatro. 

Para se pensar, não?

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quarta-feira, 19 de abril de 2017

Ator tem a sorte de ter como profissão aquilo que todos são sem admitir.

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terça-feira, 11 de abril de 2017

No fundo, escolhemos fazer um monte de personagens unicamente para evitar viver quem somos, esse eu só nosso e de que pouco ou quase nada sabemos. Ser ator é muito mais uma recusa consciente do que um estado de expressão íntima, aberto ao mundo. O ator preserva-se sempre, é uma espécie de habitante intramuros. O EU não nos interessa, menos por uma questão de identidade e mais por uma necessidade do ofício. Dar à vida a uma personagem não é vivê-la. É o inverso disso, é deixar de viver para que a potência do que já existe como poesia tenha passagem. O ator é um Segismundo. Vive trancafiado. E assim o é só para poder dar acesso aos outros os horizontes que só ele consegue enxergar da privilegiada posição em que se encontra.


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quarta-feira, 5 de abril de 2017

"Saber não é raciocinar nem especular: saber é ater-se à realidade das coisas." Xavier Zubiri.
Completo eu: ser ator não é interpretar (viver) ou representar a personagem, é produzir potencialidades de presença. Sentir e inteligir, para Zubiri, são a mesma coisa. Personagem e ator respeitam a mesma regra de identidade comum. Portanto, um método que prometa chegar até à personagem é, por princípio, meio e fim, um contra-senso sem tamanho. Tudo está dado, e desde o início. Um bom autor de teatro não escreve personagem nenhum, mas vetores concretos de interferência numa determinada realidade construída como história a ser contada diante do espectador. Outro absurdo é imaginar o ator que busca dentro de si o gatilho emocional para compor a personagem. Não existe composição nenhuma senão um diálogo imediato e apreendido entre aquilo que existe enquanto presença: palavra, espaço, cenário, luz, som. A atualização desse diálogo é o exercício constante do ator. Inteligir e sentir são a mesmíssima coisa também para ele.

Filosofia e teatro são departamentos irmãos no que se refere ao entendimento do que faz o homem na vida, e sobre a razão de existência do ator no palco.

Teatro é um terreno produtor de realidades artificiosas.

segunda-feira, 3 de abril de 2017

Acho que tudo é uma questão de saber agir pela periferia. O erro está sempre em querermos acertar o alvo. Quando isso ocorre é inevitável não acertar qualquer coisa. O princípio é o mesmo para o violino e para o ator. Não se pode querer tocar a nota, ainda que seja dever do músico tocá-la. Não se deve querer representar a personagem, ainda que o ator tenha sido convocado justamente para essa tarefa. Há sim tantos ajustes corporais, dosagem de tensões, entendimento do peso e da qualidade dos movimentos, um teste infinito de como respirar para ter fôlego, ou de como não obstruir a fluência de um gesto... enfim, tantos afinamentos periféricos que pouco sobra para querermos ser a nota tocada, ou a personagem representada. A nota limpa, a voz clara, são o resultado de um trabalho de minúcias conscientes e, por vezes, intuitivas também. Tudo na periferia. O exercício é abrir passagem para o centro. Somente isso. O centro que é e sempre continuará sendo forjado por matéria misteriosa, indecifrável. Dele não é necessário ocupar-se, basta deixá-lo atravessar seu natural percurso. E isso já é um trabalho hercúleo. Violinista e ator são faces da mesma moeda. São funcionários de pequenas ações invisíveis ao público, mas essenciais para que algo aconteça no plano poético.


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Nenhum artista que só é artista porque reúne algum talento que o qualifica como tal celebra o talento que possui, repare! Às vezes, e sem glamorizar a auto flagelação, o talento lhe é um fardo, ou uma obrigação, ou uma tarefa que tem de ser cumprida em regime de urgência, necessidade ou dever. E tudo isso também não é movido pela escala do aplauso, do dinheiro e da celebração. Há no artista que é artista, e que necessita de todo reconhecimento de seu esforço de artista, de toda remuneração e aplausos devidos, um solo próprio de solidão, de intransigência, de uma irreverência e revolta contra qualquer tipo de consenso que possa afastá-lo dessa mesma solidão. Seu beco sem saída é a sua única e possível liberdade. É por ser rarefeito às demandas que forjam o sentido de seu ofício que ele exerce o seu ofício até o ponto de torná-lo público. Esse mesmo artista é aquele justamente que por respeito sagrado e consciente ao que é seu, e somente seu!, consegue transcender sua dor íntima e alcançar o outro. A generosidade de um artista sedimenta-se numa profunda teimosia individualista. Não existe artista representante de uma empresa, não há nada mais insuportavelmente contraditório que um artista pertencer a uma empresa, dessas empresas que expõem o artista para que o tal artista seja festejado, conhecido e aplaudido. Esses tais consagrados artistas podem ser tudo, de bonecos de auditório até animadores de baile de debutantes, de papagaios de ocasião até gurus da autoajuda, mas artista é um atributo tão extraterrestre a eles quanto classificar um pintassilgo de ave de rapina.

Viva o teatro. Viva a solidão do teatro. Viva a penumbra dos bastidores, o silêncio das coxias, o hall vazio depois do público ir embora, a superfície escura do palco depois do apagar dos refletores. Viva!


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