terça-feira, 30 de janeiro de 2018

No episódio épico é um monte de coisas que acontece ao mesmo tempo. Uma epopéia é um circo de acontecimentos. O narrador gerencia uma quantidade enorme de ações. Ele próprio - o narrador - sabe que não pode ter o controle sobre tudo. É uma versão de um olhar que viu o que se passou. A verdade, no épico, não é o mais importante. É a qualidade da narrativa que é o que conta. O drama (o trágico, no princípio) aparece para centralizar tudo. É um fato o que importa. E a sua verossimilhança diante de unidades de tempo, ação e espaço. Uma necessidade de corresponder às forças de causa e efeito. O vasto mundo vira um território sob olhares calculados. Depois vem o drama de gabinete. Depois o melodrama. Tudo se torna ainda mais pessoal, ainda mais restrito ao universo do fato ocorrido com o indivíduo sem tantas preocupações com o que existe para além do teto que abriga o indivíduo. Talvez o teatro do absurdo seja um diagnóstico da falência completa da narrativa épica - que desde sempre frequentou as habilidades do ator, que também era um narrador, um contador de histórias. E talvez tenhamos aprendido pouca coisa desse escancaramento de nossa incapacidade de voltar a contar histórias e tenhamos virado hoje o que em grande maioria somos: um bando de gente preocupada em viver uma experiência íntima diante dos outros, de confessar a uma audiência coisas e assuntos cuja importância são mínimas para além de nossas dores, ou das dores que também são dos outros, mas não de todos nós. Por que será que ainda não se escreveu uma trajetória do ator a partir desse viés: da sua perda sistemática de sua qualidade épica para, cada vez mais, preocupar-se em performar sem respaldo de ação nenhuma, história nenhuma, texto nenhum, máscara nenhuma, personagem nenhum? Não se trata de condenar quem somos agora, mas de admitir que perdemos muita coisa ao abandonar uma atitude que desde os primórdios fez parte da constituição física dos intérpretes: a força dos pulmões para dar conta de narrar uma história espetacular, impossível, maravilhosa, encantadora. Não parece triste, melancólico ao menos, a troca da força dos pulmões pela habilidade em verter lágrimas que secam ao menor soprar de uma brisa?


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quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Nunca sabemos de fato o que é que estamos fazendo. Sabemos, em verdade, pouca coisa, ou o suficiente para cumprir com o combinado: ir de cá para lá, emitir o texto com a saúde dos pulmões, respeitar pausas, preencher tempos. E pronto. A nossa loucura é muito mais uma loucura do enfrentamento dessa duvida monumental que é a de desconhecer o que de fato estamos produzindo aqui, nesse instante - e ainda assim sermos impelidos para adiante -, do que alguma crise que pertence às dores das personagens. A nossa dor, que é a dor da dúvida, que é também um vazio enorme, já é suficiente para esgotar todas as energias de que dispomos para subir ao palco. A plateia nos devolve em parte o resultado do nosso esforço. Em alguma medida os espectadores nos respondem sobre o que procuramos. Mas também a plateia é matéria inconstante, ela também é por si só recheada de dúvidas quanto ao sabor daquilo que fazemos. Portanto, o terreno permanece movediço, e sempre assim: movediço. Um mesmo espetáculo que circula por diferentes palcos também acresce interrogações a nós, que somos os atores. A superfície em que se pisa é determinante para uma mudança de eixo, daquele eixo de equilíbrio em que estávamos acostumados ontem, e que hoje já não existe mais. A distância entre nossa cabeça e o urdimento, invisível ao espectador, é um espaço importantíssimo, que também modifica a nossa existência. O ângulo dos refletores, a altura do palco, o cheiro da sala, o tecido das poltronas e a disposição das fileiras de poltronas... Tudo, absolutamente tudo estampa dúvidas e mais camadas de dúvidas em nós.
Somos bombardeados o tempo inteiro por um contingente enorme de informações impossíveis de serem completamente assimiladas. E é assim sempre: até o final da temporada, até o último apagar do último refletor. É sempre de uma ignorância suprema interrogar o ator sobre a sua personagem. Não nos ocupamos dela nunca. O que nos guia é a urgência de continuarmos de pé, erguidos. De resto, não temos certeza de nada. E essa carência de certeza é de uma força retumbante. Talvez o exercício do ator seja muito mais o de resistir a sucumbir à ela do que a presentificação de alguma integridade imaginada.


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terça-feira, 9 de janeiro de 2018

Acho ótimo que se tenha um fardo para carregar. Dá sentido à vida. Equaliza as euforias, relativiza os dissabores. O teatro, por exemplo, é um fardo. Um baita fardo. É um fardo ter de ir rotineiramente ao teatro repetir as mesmas deixas, preencher os mesmos tempos, aguardar que aquilo que se espera dizer seja dito. E depois esperar a cortina se fechar. Tirar a maquiagem do rosto. E rumar para casa. E no dia seguinte retornar ao palco. É um fardo. Que não é 'coisa ruim', tampouco 'coisa boa', ou é as duas coisas juntas. Ninguém que olha para o teatro e o cobre de elogios, de festas, de brindes, de urros e vivas diz a verdade. É comum acontecer isso: deslumbram-se com a beleza que é estar diante da plateia, com a magia da coisa, para fazer com que o teatro aconteça. Ou ainda pior: tentam sanar uma dívida íntima, uma incompetência particular, conferindo ao teatro esse local quase que espiritual de crescimento e aprendizado. Teatro é também escuridão. É um fardo, e dos grandes. Um ter de atravessar uma jornada. E ninguém que atravessa de fato uma jornada o faz jogando confetes para cima. E me parece bastante imprudente rumar numa jornada dessas sem antes haver se preparado para o sol na cabeça, a escalada íngreme, o equilíbrio precário do precipício. Com o prejuízo ainda maior de que uma queda, no teatro, é sempre um tombo coletivo. Leva-se todo mundo junto para o fosso. Haja responsabilidade!

Fardo é um dever, uma necessidade. Algo que minimiza o que pensamos sobre a vida e sobre nós mesmos para orientar-nos para a ação. Ter um fardo é ter que agir. É movimentar-se. E isso já é razão suficiente para encontrar sentido em estar vivo, e alerta.

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