sábado, 27 de maio de 2017

Acho que, no fundo, Gordon Craig estava certíssimo: o erro está em atribuir ao ator essa alcunha de artista. Acho que não estamos e nunca estivemos nesse patamar. O máximo que fazemos é servir à arte, sem nenhuma falsa modéstia. Somos fazedores de coisas. A coisa artística está lá, é o resultado do que fazemos, mas não somos nós. E se é verdade que se não houver quem faça coisas não há chance de haver arte, o contrário também é correto: se imaginarmos que os artistas somos nós, então nada fazemos, e o que sobra como saldo final é a pura essência de um nada sem recheio nem forma.


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Eu baixava um decreto proibindo uma peça de teatro de ficar menos de 3 meses em cartaz. E se fosse uma peça de teatro reconhecidamente ruim, que fossem 3 meses de ruindade, ou mais, gastando o chão das tábuas do palco. Acho ridículo, patético no mínimo, um teatro sediar um espetáculo por 4 semanas, quando muito.


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O que se diz no teatro é o que não se pode dizer fora do teatro. O que se faz no teatro é o que é proibido fazer fora dele. Quer ser vereador, líder de ONG, ativista de sei-lá-o-quê, animador de #hashtags ou freira carmelita? Não inclua o teatro nas suas pregações...
Tem um povo xiita, aliás, muita gente esclarecida até onde se pode saber, que anda empunhando a palavra OPRESSOR em bandeiras para balizar o que pode e o que não pode ser dito e feito no teatro... Ora, erraram o termo, e feio. Teatro não oprime ninguém, e sim COMPRIME, AMASSA, ACHATA, VIRA DE PONTA CABEÇA, PENDURA PELOS CALCANHARES E SERVE PARA OS ABUTRES BICAR. E qualquer teatro tem essa qualidade, o bom teatro e o teatro ruim.
O que mais assusta é que o fascismo que agora vai se infiltrando nesse território simbólico não vem de fora, da polícia, do poder institucionalizado, da metralhadora apontada direto na face... Vem de gente de dentro do teatro, gente que em algum momento se cristalizou numa caretice intelectual, virando espécies de arautos da bem aventurança, só faltando carregar um bíblia dos bons costumes prensada no sovaco.


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domingo, 14 de maio de 2017

Acho que a atitude política do teatro está no fato de que, noite após noite, o ator ter de subir às tábuas para fazer teatro. E depois ter de descer das mesmas tábuas. E sentir na carne esse intervalo que confunde o estar iluminado com o esconder-se nas sombras. A atitude política do teatro é o próprio teatro sendo feito e desfeito. E se hoje o ator já não faz mais tanto teatro, é também por essa razão que rareiam os artistas que agem politicamente. O nosso prefeito que diz não ser político é a semelhança perfeita daquele ator que não é ator - mas se diz ator! - e vive da sua imagem de ator. E vive bem, muitas vezes como símbolo de excelência, ícone a ser idolatrado e seguido por séquitos de admiradores. Porque nós, enquanto plateia, também aprendemos bastante bem o que é engolir mentiras e saboreá-las como o mais fino repasto do mais requintado dos restaurantes. Não tenho escrúpulos nenhum em dizer que a televisão e a sua redoma implacável de proteção à beleza do ator é o instrumento mais imbecilizador e alienador que explica a razão pela qual somos hoje tão espetacularmente preguiçosos, rasos em matéria de ideias e sensibilidade.

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sexta-feira, 12 de maio de 2017

Para você que faz teatro, os tempos contemporâneos são uma dádiva e uma desgraça, tudo junto e misturado. A máscara que se destaca do rosto revela um péssimo ator, ou será a máscara que é péssima e não sustenta o esforço de seu intérprete em torná-la dramática? Ou, talvez, a máscara é tão colada à face que se confunde com ela..., mas aí já não haveria teatro possível, porque teatro, a rigor, é sempre farsa, ou nem sempre? Quem concorre com quem: ator com a personagem, ou a personagem com o ator? Numa encruzilhada Machadiana, Shakespeariana, Pirandelliana, Nelson Rodrigueana, o que sobra é uma comédiazinha de gabinete, nos moldes do Martins Pena, que é outro mestre de estatura semelhante dos autores citados. Eis, portanto, a maravilha e a desgraça: subimos ao palco na ideia de que estamos a encenar uma peça realista, dessas de quarta parede, dessas que saem fumacinha do bule e tem lustre de cristal pendurado no teto, mas tão logo abrimos a boca a prosódia se torna desafinada, os trajes são curtos demais, as tábuas do chão rangem ao serem pisadas. A farsa, o faz de conta, sobrevive ao desejo fundamental de querermos fazer a personagem moralizadora. A plateia boceja e ri quando não deveria rir. As luzes dos refletores piscam. Uma mosca não ensaiada insiste em rondar o nariz de quem tem o foco das atenções. 
A maravilha é o teatro, que sobrevive maravilhosamente como teatro. A desgraça é o ator, que volta para o camarim todo emocionado, achando que o protagonista de qualquer coisa é ele.


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Há um erro fundamental em achar que o ator é essa figura camaleônica que muda de personalidade na medida em que as personagens lhe são atribuídas. Isso é fruto da supervalorização do ator, coisa que estamos tão enfeitiçados que mal paramos para considerar. O ator não é mais importante que a personagem. E, se o ator é quem dá voz à personagem é justamente porque já há uma voz da personagem que compete ao ator reproduzir. Reprodução que é também criação e descoberta, mas que não faz do ator o autor de nada. A coisa já está lá, a espera de ser descoberta, a espera de ser criada. 
Não há esforço em fazer a personagem, como se fosse da responsabilidade do ator provar para quem quer que seja de que ele é capaz de dar um outro corpo que não o seu corpo, a sua voz que não é mais a sua voz, o seu timbre que não pode ser mais o seu timbre à personagem. O paradoxo é esse: se há no ator a preocupação vaidosa de mudar a si mesmo para chegar até a personagem (o ator sempre gosta desse elogio: caramba! Você era completamente outra pessoa!) o que sobra, quase sempre, é a evidência do ator no primeiríssimo plano. Ao contrário, se o ator compreende que não há a necessidade alguma de mentir que ele não é aquele quem aparece diante do espectador, e dedica-se tão somente ao exercício de ser o arauto de uma máscara, de uma figura que lhe é prévia e superior, e endereçada à uma função narrativa dentro da obra, aí sim, o que aparecerá diante da audiência será justamente a personagem, e não o ator que tenta provar o quão habilidoso é em sua função de mentiroso.
Só é possível mentir quando é a mentira quem mente.
Não é preciso convencer um violinista de que ele precisa tocar trombone. Um violinista é um violinista. Um trombonista é um trombonista. O mesmo com o ator: não é preciso fingir o que não se é. Basta fingir dentro da mentira que lhe cabe, e que será sempre prévia e superior.


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quarta-feira, 10 de maio de 2017

Por mais paradoxal que seja, o teatro convoca o ator a compreender à sua desimportância. O edifício do teatro é o próprio teatro. A única tarefa do ator no teatro é a de sumir. E sumir bem sumido. Você passa. O que sobra é o que já estava, e desde sempre assim esteve, e assim há de permanecer como está.


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Nunca fiz um videobook, nunca fiz um book posando meu nariz de perfil com luz especialmente escolhida para valorizar minha silhueta. Sou vaidosíssimo. Sou ator. Quando abrem as cortinas, faço todo tipo de macumba para que eu seja aplaudido ao final. Mas a minha vaidade é terceirizada (esse é o termo da moda, não?). Eu delego a minha vaidade à mentira que conto. Sou eu, mas não sou eu (percebe a dialética fundamental?) Eu sou uma mentira. A verdade é que eu sou uma mentira (outra dialética, pescou?) Uma farsa completa, é o que eu sei que eu sou (uso bastante esse pronome pessoal "eu" porque sou vaidosíssimo, reitero). Por saber da minha qualidade de farsante, eu concedo à inteligência do outro a compreensão de que o que eu faço está para além de mim, pessoa física. Só pode estar para além de mim, senão eu seria um completo idiota. E idiota não só porque abro mão da mentira para tentar torná-la verdadeira aos seus olhos - isso já seria, sem dúvida nenhuma, deveras idiota -, mas porque há um certo senso do ridículo que foge à minha condição de mascarado profissional. Há um ridículo fenomenal e constrangedor naquele ator que se posta à frente de Hamlet na exigência de que ele, pessoa física, seja mais urgente que a máscara que ostenta. E, como eu sou vaidoso ao extremo, preservo ao máximo essa qualidade de ridículo para que os aplausos que eu espero que sejam reservados à minha pessoa venham em proporção ainda mais caudalosas. Quero um aplauso fenomenal ao final. Quero o teatro todo aos meus pés. Mas, é só por um breve instante que me permito guardar a máscara debaixo dos braços ao som das palmas estaladas. Depois, admito, sinto enormemente um ridículo fulgurante em perceber um bando de gente aplaudindo sem parar a figura que eu represento diante dele. Um ridículo por mim, e outro ridículo pelo bando (somos todos perigosamente talhados para o ridículo, alguém duvida?). Agradeço orgulhoso aos aplausos (sou vaidosíssimo, já disse!), mas não me demoro muito nessa posição de alvo das atenções, não. Volto correndo e constrangido para o camarim para me preservar para a próxima mentira que está por vir, e da qual serei eu o responsável por levar a cabo. A pior invenção dos últimos tempos é o hall do teatro. Ter que atravessar o hall do teatro é como atravessar em câmera lenta um corredor polonês. Ou muito pior que isso, já que os afagos, em determinada circunstância, são mais cruéis que chutes no traseiro.

Eu sou uma mentira. É ela que me salva de virar um completo idiota, um tremendo dum ridículo refém de uma vaidade que me fugiria ao controle.

O teatro me salva.

O mundo é um palco.

Todo ator - pessoa física ou jurídica - que se dá ao direito de se achar superior à máscara, ao teatro, pertence a essa espécie de gente corrupta, egocêntrica, e cuja vaidade envenena a alma de tudo o que faz parte de uma esfera pública e comum.

domingo, 7 de maio de 2017

O mundo não é uma ópera, como afirma Machado de Assis. Tampouco um palco, na ótica de Shakespeare. É mais simples que isso. O mundo não passa de uma arena de circo. E nós todos somos os palhaços a atravessar o picadeiro do circo, ansiosos por emplacar uma piada. A coisa toda é uma piada. Um pouco de maquiagem borrada no rosto e um nariz vermelho. Um punhado de truques já tão gastos e conhecidos, e ainda assim escondidos na manga puída do paletó. Desejamos o truque, e há uma cândida ingenuidade em saber-nos vítimas e agentes de uma enganação. Um circo. Palhaços. É o que basta. O homem é isso. Somos só isso. Uma audiência inteira entregue ao sabor de ver refletida a imagem do que somos: um precário borrão que caminha por desejos tão elementares. Tudo é tão precário e tão elementar. E é por isso mesmo, nessa ausência de grandiloquência, que reencontramos com o que nos é essencial e há muito esquecido: a beleza de poder rir todos os risos, e também de chorar todos os prantos. Nos esquecemos dessa humanidade primária que muitas vezes habita soterrada por infinidades de camadas de personagens verborrágicos, enredos complexos e acrescidos por um infinito de ideias e conceitos. Somos só palhaços. Uma máscara mínima - La Mínima - reduzidíssima, e tão plena de lirismos acumulados.

Voltei do teatro. Fui ver La Mínima no teatro popular do Sesi com o espetáculo Pagliacci. E senti-me assistindo a uma fanfarra tocar num coreto, desses coretos antigos e já com a balaustrada descascando, teto destelhado, piso gasto pelo hiato de tempo sem uso, desses coretos centenários que ainda resistem nos centros das praças do interior. Esse pequeno palco emoldurado dentro do palco, e que já é a vida. Uma vida que é vivida só para ser narrada como faz de conta, e que tanto nos diz sobre a vida que sabemos viver sem nos darmos conta de que a vivemos. Como pode algo que se propõe a reduzir-nos à imagem de tocadores de bumbo, tuba, sanfona, gaita, chapadores de prato - ou até mesmo de um serrote feito violino -, como pode essa fileira precária de saltimbancos fazer a praça interromper o seu fluxo? Pois somos interrompidos. E abalados profundamente por essa fanfarra espetacular. O ator é um palhaço. É dele a responsabilidade por fazer brotar novamente uma emoção infantil, alargar os lábios num riso despretensioso. O teatro e o ator de teatro, só eles, conseguem fazer isso: resgatar a lembrança primeira de quem fomos, e recuperar aquele fôlego inicial que permite enxergar novamente uma paisagem diante dos nossos olhos. O teatro é um circo. A vida é circo. E todos, todos somo palhaços.

Os elogios são inúteis. Esse texto é inútil. Vá correndo ao teatro testemunhar essa maravilha. Atores, direção, cenário, luz, figurinos, música... Tudo deslumbrante. Parabéns ao SESI!

Obs: Minha última vez em que frequentei o teatro foi no espetáculo de encerramento do nosso saudoso Peer Gynt, eu na posição de ator, no mesmo palco do teatro do Sesi em que vi hoje o Pagliacci. Pois me sinto deveras orgulhoso e emocionado em passar o bastão à essa trupe de artistas geniais que me lembram - e fazem-me alerta - para o sentido fundamental do meu ofício: o de contar uma história para o outro, fazer da audiência uma coletividade de ouvidos e olhos abertos.

Muito obrigado, de coração e alma!

Viva o teatro! A principal trincheira contra à obtusidade humana!

sexta-feira, 5 de maio de 2017

O teatro é pedagógico. Pedagógico porque trata de uma pedagogia fundamental: a do exercício da liberdade irrestrita. O teatro não é pedagógico porque ensina. Sua pedagogia é uma pedagogia do avesso: oferece o sabor da intransigência. E não com a ideia de fazer de quem por ele é atravessado alguém intransigente. Ao contrário! A pedagogia do teatro permite o exercício da lucidez fora do teatro. Oferece a chance de identificar naquilo que é tido como justo o arbitrário. O teatro vira do avesso para poder endireitar. Torne-o 'direito' e ele perderá a sua identidade. Dionísio só é Dionísio porque não é Apolo.


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