terça-feira, 27 de junho de 2017

'(...) Sir Henry Irving, como ator, possuía uma estranha e deliberada artificialidade em cena. Seus personagens eram construídos privilegiando uma construção "racional" e detalhada de seus movimentos, e não emotiva como era costume em sua época. Sua gestualidade "artificial" não condizia em nada com a tendência naturalista ou com a tradição romântica (...) Gordon Craig cultivará por toda a vida uma admiração fervorosa por Irving, citando seu nome, inclusive, como um exemplo vivo para seu Uber-marionette:

'Insisto, Irving era natural e, ao mesmo tempo também altamente artificial (...) Irving era artificial como uma orquídea, como um cacto, exótico e majestoso, ameaçador e de composição tão curiosa que quase poderíamos definí-lo como arquitetural, e atraente como são todas as coisas bem definidas' (GORDON CRAIG)...'
Extrato do excelente livro GORDON CRAIG, A pedagogia do Uber-marionette, de Almir Ribeiro. Editora Giostri


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segunda-feira, 26 de junho de 2017

Há uma ambivalência! Expressão = máximo de esforço até a última gota de suor, e zero de testemunhos pessoais. Uma personagem não é o resultado da tradução que o ator faz dela, mas da ausência de opiniões que o ator tem dela. Não há uma versão da personagem assinada pelo ator. Há sim uma personagem erguida através de uma assinatura anônima, sem registros, invisível aos olhos. A personagem, enquanto substância humana, não é coisa tangível ao ator, pelo menos não no exercício de sua função de ator. A personagem é uma trajetória, uma linha, um vetor. E é incrível como o esforço de qualquer ator na tentativa de se sobrepor à essa linha, trajetória ou vetor, resulta numa completa caricatura formal daquilo que deveria ser vivo e pulsante. E, ao invés disso, quando a personagem é tomada desde o início como contorno ou forma, o que o espectador vê não é nada mecânico ou enferrujado pela técnica, mas a perfeita elaboração daquilo que nos é comum como seres humanos.


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quinta-feira, 22 de junho de 2017

O bom jogador de futebol não retém a bola, isso é quase regra. O belo drible é feito pelo jogador que dá à bola um movimento inesperado. O seu próprio movimento é coisa indiferente se ele não direciona a atenção à trajetória da bola. Garrincha praticamente sambava diante do adversário confundindo-o enquanto a bola permanecia imóvel perto de seus domínios. E o samba só era espetacular não porque sambava, mas pelo fato do samba convocar a bola a permanecer quieta onde estava. A bola inerte é que era espetacular no drible do Garrincha - e o não movimento já é um movimento espetacular. Acho o mesmo com o ator. Ator bom é ator ligeiro, aquele que não gasta tempo a toa retendo nada. Bom ator sabe que sua performance está condicionada ao quanto de movimento ele consegue imprimir ao que está ao redor dele, em seu perímetro. A bola do bom ator nunca está com ele, repare! Ela é sempre inatingível para o bom ator. Há um senso de urgência no bom ator, que é o mesmo senso de ritmo que o bom jogador tem consigo. O mal jogador nunca é aquele que chuta a bola para o mato, mas o outro, que torna o futebol um argumento para aplaudí-lo sem prometer qualquer perigo ao gol adversário.


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Adoro cortina antes de começar a peça. E quando termina a peça também. Adoro palco italiano. Teatro é encantador pelo que ele propositalmente esconde. Mais encantador ainda do que aquilo que é revelado. É como um livro. Livros realistas demais que descrevem todo o cenário para que o leitor possa ver tudo o que o autor quer que ele veja são livros tediosos, insuportáveis. Livro bom é aquele que imprime palavras só para esconder um tanto enorme de outras palavras, não escritas, mas lidas pela imaginação e curiosidade do leitor. Kafka é um milhão de vezes melhor que Eça de Queirós, por exemplo. Teatro é uma maravilha porque o ator some dos olhos do espectador, ou aparece sem explicar por onde é que andou tão sumido. Não consigo compreender quem retira esse elemento essencial do teatro para torná-lo todo iluminado e visível, sem bastidores escuros. Mesmo quando a peça acaba e o público já está no hall do teatro preparando-se para ir embora, acho um crime inafiançável o ator que aparece em seu traje à paisana entre os espectadores. Ou aquele espectador que espera o ator sair só para tirar a prova de que era ele mesmo quem estava debaixo dos refletores há pouco. Deveria haver um pacto de cordialidade entre público e ator: um pacto de distância, de pelo menos um respeito ao mistério que ainda se prolonga daquilo que acabou de ser testemunhado por todos. Teatro é mais próximo da magia que da tese acadêmica, para esse último departamento existem os chatos. Para o primeiro, os loucos.

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segunda-feira, 19 de junho de 2017

Tem coisa melhor que erguer castelos de cartas que desmoronam ao menor sopro ou lufada de vento? Teatro é justamente isso. Só que ao invés de cartas de baralho, gente de carne e osso. Um empurrãozinho e cai tudo, sem dó nem piedade. E se for para remontar, só vale a pena se for pela memória do fracasso do equilíbrio anterior que levou tudo abaixo. E é essa memória que qualifica a coisa toda. Não se recompõe uma peça de teatro pela meta do equilíbrio, do sucesso alcançado, mas pela certeza do seu iminente desmoronamento, ou da lembrança das cartas ao chão. O artista do palco é um exímio experimentador do fracasso. E é por isso que o teatro é pedagógico, porque ele não poupa ninguém, nenhum trono se mantém intacto, nenhum império se consolida, nenhuma dinastia lega herdeiros. E a pedagogia não é só poética, é ética também para além da cena. Já imaginou o quão melhores seríamos se carregássemos a consciência de nossa pequenez para cada gesto público e diário?

terça-feira, 13 de junho de 2017

Tenho um interesse atávico (para usar uma palavra bonita) naquilo que eu faço, e porque quero fazer muito bem o que eu faço. Só por isso. O fazer o que eu faço é o que determina a minha extrema vaidade para aquilo que eu sou enquanto faço o que tenho de fazer. Agora, é evidente que o fio é extremamente tênue, que a minha atividade de fazer o que eu faço também pressupõe que eu esteja lá para fazer, e que é preciso vigilância constante para que a minha pessoa física não sobreponha à jurídica, aquela que está determinada a fazer antes de ser. Sou o que sou porque faço algo. O fazer determina a minha identidade, e não a minha identidade é que determina o meu fazer. Não sou quem sou porque sou quem sou. Ou assim espero, gostaria, que fosse.
Há no teatro uma disciplina poderosíssima que ensina a compreender que um passo adiante significa a exposição completa, outro para trás e você está banhado pela escuridão do anonimato. Que todos almejamos os holofotes é mais do que certo. Mas a qualidade do que é feito debaixo dele é consequência da sua inteligência quando escondido pela sombra dos bastidores.


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domingo, 11 de junho de 2017

Leio no jornal de hoje uma matéria sobre os preparativos de uma determinada atriz de novela para representar o seu papel na televisão. E o resumo é esse: se a personagem rebola as ancas dançando ao ritmo da rumba caribenha, é preciso, então, fazer laboratórios de rumba caribenha para que se possa rebolar as ancas e dançar rumba caribenha para não contrariar a vontade da personagem, que é uma contumaz dançarina de rumba caribenha. Se a personagem é harekrishna, lá vai a atriz rumar para retiros harekrishnas no topo da serra para imersões espirituais trajando saias cor-salmão e rabicó pendendo da cabeça raspada, afinal de contas, a personagem é harekrishna de verdade, e quanto a isso não há o que argumentar. E assim sucessivamente, o ator não é outra coisa senão um capacho da personagem. Mas um capacho mentiroso, um falso-modesto, porque esconde-se aí uma vaidade gigantesca que diz o seguinte: os sacrifícios do ator renderão a ele os méritos de anular a si próprio e dar vida à personagem. E, uma vez que as personagens de nossas novelas atuais são sempre a mesmíssima coisa - uma mistura de feijão sem tempero com empadinha de palmito sem azeitona verde -, o que sobra no primeiro plano é o nosso espanto em ver o ator se esforçar para se transmutar naquilo que ele não é, mas sempre foi: um rostinho que se adequa a total falta de carisma da figura que representa. Mas isso é o de menos, porque já não assistimos mais as novelas por conta dos seus enredos, personagens e afins. Já que o máximo de qualidade dramática apresentada é uma personagem que sabe dançar rumba caribenha, colamos nosso nariz na tela para comprovar se a atriz de rosto e silhueta invejáveis sabe, de fato, dançar rumba caribenha, ou, se ela cumpriu como prometeu os seus laboratórios de rumba caribenha (mais adiante ela aparecerá no Domingão do Faustão para explicar tim-tim-por-tim-tim as etapas do seu calvário em busca da correta rebolagem das suas ancas em direção à rumba-caribenha). 
Fico imaginando o ator de teatro que vai representar Édipo nos palcos... O quanto morreria de rir da cara de quem oferecesse a ele laboratórios de imersão na personagem, ensinando-o a como bradar AI DE MIM sem parecer piegas. 
O teatro tem essa dinâmica: o ator não precisa competir com a personagem. O ator jamais se equivalerá com o quilate poético de uma personagem forjada para os palcos. E isso por uma única razão: o ator de teatro sabe que ele sempre perde, que a peça se encerra com ele acabado, destruído, cansado, suado, depauperado. E ele também sabe que é justamente essa a regra para que se faça bom teatro: deixar o teatro passar.
O rostinho do ator de teatro que fosse se apresentar para uma entrevista seguindo os moldes dos depoimentos da referida atriz de novelas seria um tanto diferente, aposto: com mais rugas, linhas de cansaço, cabelos brancos... e aquele olhar de cinismo de quem viveu o suficiente para ter o direito de gargalhar de quem entende encontrar nele alguma fonte de explicação para o seu ofício de ator.


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sábado, 10 de junho de 2017

O que mantém o equilibrista na corda bamba é o perigo de cair, não o desejo de chegar em segurança ao outro lado. Aliás, ele só chega em segurança ao outro lado porque há uma chance sempre iminente de que ele caia. Não é o desafio o que o preenche, é, ao contrário, o perigo. A força que puxa o equilibrista para baixo é a força responsável por mantê-lo de pé. Acho o mesmo com o ator. A gente só pisa no palco porque sabemos que a chance de dar errado é enorme. E se chegamos inteiros ao final é só porque nos livramos momentaneamente da enrascada de tropeçar e ralar o nariz no chão. Não é o aplauso o que nos movimenta, a nossa vaidade é mais funda: é pelo perigo do fracasso, da vaia e do vazio, que aceitamos que as cortinas se abram...

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sexta-feira, 9 de junho de 2017

Eu tenho problemas com o enunciado. Teatro autobiográfico, para mim, é tão contraditório quanto entrar num restaurante para reconhecer firma dum documento. Ou ir pruma balada na expectativa de jogar uma partida de ping-pong no meio da pista. E o enunciado do teatro, para mim, está justamente na despersonalização do ator. Não para que ele deixe de ser a pessoa física que é  (a reencarnação e a mesa branca são outros departamentos), mas para que, desde o início de tudo, ele saiba rearticular um corpo que não é o seu corpo natural, uma voz que não é a sua voz natural, um desejo - ainda que impossível - de assumir o absurdo de ser um outro alguém, de se artificializar até o ponto de fazer sumir sua identidade. É desse absurdo que trata o teatro, que é da mesma qualidade da brincadeira da criança, do jogo lúdico, da senilidade dos loucos. Já imaginou pedir a uma criança para que ela pare com bobagem e seja verdadeira? Ou pedir encarecidamente a um louco que ele interrompa com suas sandices? A graça de ser louco está na loucura. A graça da criança é que ela tem o direito de brincar de ser quem ela bem quiser ser. A graça do teatro é que o teatro não equivale à vida (a loucura é fingida, a brincadeira é seriamente levada a sério).

Ou o ator é um portador de todo esse manancial forjado pela ficção que sobrepuja a sua individualidade, ou o teatro vira um templo onde se vende laranjas, uma feira livre que dá aulas de aritmética, uma quadra de esportes que distribui pãezinhos frescos recém saídos do forno...

Enunciado! Preservo o Enunciado! Teatro = disfarce = máscara = mentira = faz de conta = era uma vez...

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Adoro sentenças máximas do tipo isto é, isto não é. Por exemplo, se por um lado é difícil reconhecer quem é ator de verdade, por outro é facílimo saber quem se faz de ator mas a rigor não passa de um trambiqueiro de araque. Repare! Ator de verdade é quase sempre só ator. Digo quase sempre só ator porque quando o ator de verdade não é só ator é justamente porque ele desistiu de ser ator, o que o torna um milhão de vezes melhor ator do que o contingente de atores de araque que se dizem atores e que se apresentam como tal. Os atores de araque, ou seja, os que se dizem atores, são um milhão de coisas ao mesmo tempo em que são atores: eles dançam, cantam, apresentam programas, participam de programas, são entrevistados e entrevistadores, animam plateias e são animadores de plateias... e atores, evidentemente. Na falência de ser qualquer outra coisa melhor, o ator de verdade é só ator, seja por falta de opção, fardo ou missão de sabe-se lá qual karma mal ajambrado.

Quando você tiver dúvidas sobre quem é ator de verdade e quem é ator trambiqueiro de araque, comece por identificar quem são os últimos.

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terça-feira, 6 de junho de 2017

Ator faz Shakespeare, Sófocles, Beckett, Suassuna, Nelson Rodrigues, Pirandello. Ator tem essa curiosa função de reacender o que o tempo apagou. É um arqueólogo de monumentos a espera de serem novamente descobertos. O tempo do ator é o tempo do passado, do Era uma Vez... Não acho que o ator seja alguém conectado com o seu tempo. E caso assim pareça, é só para buscar as respostas lá atrás, e voltar cheio de poeira acumulada...

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segunda-feira, 5 de junho de 2017

Acho uma maravilha saber que ao pisar no palco aqui, nesse palco daqui, o povo lá do Acre será impedido pelas regras da geografia de me ver e ouvir. E nada contra o Acre, que adoro justamente porque está lá em cima de nós, distante tanto quanto Rondônia e o Amazonas também estão. Mas poderia ser Pindamonhangaba ou Itapecerica da Serra, tanto faz. Adoro teatro também por uma razão negativa: o fato de alguns poderem me ver e ouvir pressupõe que um milhão de outros, pela distância que nos separa, estejam longe de mim, surdos e cegos para o que eu faço quando faço teatro. Acho um crime essas empresas que filmam teatro. Elas matam o teatro e tornam o ator de teatro um estúpido, um macaqueador imprestável. Teatro é bom porque impede que o ator seja conhecido para além de suas fronteiras misteriosas.

O resto é silêncio.

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sábado, 3 de junho de 2017

Acho que a chance de haver bom teatro é quando, sobretudo, se tem um bom texto. O que pressupõe, igualmente, uma hierarquia. Texto e atores são coisas distintas, diferentes em qualidade e função. O ator não é o que conta. O ator está a serviço de contar algo. O texto é sempre anterior ao ator: primeiro o texto, depois o ator. Quando essa equação se rompe, o perigo mais imediato é o palco virar uma janela indiscreta de sensações do ator, um buraco de fechadura de intimidades deflagradas dos intérpretes, um canto de gargalo frouxo que abre passagem a revelações particularizadas. Acho que a poética do teatro tem relação profunda com o sagrado do rito cênico, e isso não se alcança ao alçar o ator ao plano primordial das atenções. É como se o padre quisesse se sobrepor à liturgia, como se um sacerdote resolvesse trocar a prosódia do evangelho pelas gírias mais em voga do tempo presente. O tempo mítico da cerimônia religiosa é o mesmo tempo mítico do teatro. O religar da religião é também um conectar-se do ator com algo que lhe escapa às escalas comezinhas do seu cotidiano. Ainda que travestido por uma estética que lhe ofereça amparo, esse ator abandonado de qualquer protocolo filosófico que não seja o seu desejo de exposição estará sempre fadado a diminuir o alcance do teatro diante do mundo. Há um erro nessa avaliação que intui um certo desprezo por tudo o que é real em prol de uma ditadura da ficção, imaginando que é urgente ser verdadeiro ao invés de mentiroso. Sempre houve invenção ficcional. Nós somos produtos e produtores incansáveis de argumentos ficcionais. O que é 'real' nada mais é do que uma construção de símbolos e linguagens, e, portanto, não há pureza alguma e em nada. O que há, sim, são histórias mal contadas, com personagens e enredos ruins. E não há nada mais afeito a histórias e personagens ruins do que essa busca doida pelo véu virgem da transparência absoluta que a tudo quer atravessar pela lente da verdade aumentada. Os tempos de hoje são sombrios justamente por isso: aos invés de querermos contar uma história, acreditamos na boa vontade do outro em enxergar em nós mesmos toda a história necessária a ser contada.

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quinta-feira, 1 de junho de 2017

Estar na periferia é sempre mais difícil. A aparente invisibilidade conduz à irresponsabilidade. É sempre mais difícil ser o prato da orquestra. O violinista pode desafinar que o seu erro passará desapercebido, mas a percussão acaba com a sinfonia num único e simples ataque equivocado. É sempre mais difícil jogar sem a bola. O gol é feito com um chute, a defesa é toda ela um balé interminável de troca de posições e atenções - e uma defesa mal arranjada elimina qualquer possibilidade de vitória. É sempre um desafio maior ser ator no silêncio e na sombra. Viva o teatro!

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Defendo a tese de que o ator torna-se excelente quando sabe mandar às favas o desejo de ser aplaudido... É só nesse território que o ator consegue descer das tamancas e tratar de igual para igual quem está lá no teatro para ouvi-lo. Porque o excelente ator também sabe disso: é preciso abrir espaço para a audiência trabalhar. E abrir espaço não é outra coisa senão restringir o seu próprio espaço.

Teatro é uma aula de ética. Respeitar o teatro é fazer bom teatro, que é a mesma coisa que anular o desejo de se sobressair ao teatro que se faz.

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Todo bom personagem é antinatural. Todo bom ator é antinatural. O teatro bom é todo ele antinatural. Até a mais naturalista das peças, se for uma boa peça, será tão antinatural que passará uma impressão de absoluta naturalidade. Se há alguma coisa que não combina com o bom teatro é aquela famosa escala do 'meu bem, passa por favor o suco de laranja, sim?'

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