sábado, 3 de junho de 2017

Acho que a chance de haver bom teatro é quando, sobretudo, se tem um bom texto. O que pressupõe, igualmente, uma hierarquia. Texto e atores são coisas distintas, diferentes em qualidade e função. O ator não é o que conta. O ator está a serviço de contar algo. O texto é sempre anterior ao ator: primeiro o texto, depois o ator. Quando essa equação se rompe, o perigo mais imediato é o palco virar uma janela indiscreta de sensações do ator, um buraco de fechadura de intimidades deflagradas dos intérpretes, um canto de gargalo frouxo que abre passagem a revelações particularizadas. Acho que a poética do teatro tem relação profunda com o sagrado do rito cênico, e isso não se alcança ao alçar o ator ao plano primordial das atenções. É como se o padre quisesse se sobrepor à liturgia, como se um sacerdote resolvesse trocar a prosódia do evangelho pelas gírias mais em voga do tempo presente. O tempo mítico da cerimônia religiosa é o mesmo tempo mítico do teatro. O religar da religião é também um conectar-se do ator com algo que lhe escapa às escalas comezinhas do seu cotidiano. Ainda que travestido por uma estética que lhe ofereça amparo, esse ator abandonado de qualquer protocolo filosófico que não seja o seu desejo de exposição estará sempre fadado a diminuir o alcance do teatro diante do mundo. Há um erro nessa avaliação que intui um certo desprezo por tudo o que é real em prol de uma ditadura da ficção, imaginando que é urgente ser verdadeiro ao invés de mentiroso. Sempre houve invenção ficcional. Nós somos produtos e produtores incansáveis de argumentos ficcionais. O que é 'real' nada mais é do que uma construção de símbolos e linguagens, e, portanto, não há pureza alguma e em nada. O que há, sim, são histórias mal contadas, com personagens e enredos ruins. E não há nada mais afeito a histórias e personagens ruins do que essa busca doida pelo véu virgem da transparência absoluta que a tudo quer atravessar pela lente da verdade aumentada. Os tempos de hoje são sombrios justamente por isso: aos invés de querermos contar uma história, acreditamos na boa vontade do outro em enxergar em nós mesmos toda a história necessária a ser contada.

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