sexta-feira, 13 de março de 2015

#

Não há problema algum em ser parte integrante de um mundo idiota, com idiotas brotando pelos ladrões da esquina, emitindo opiniões idiotas que fazem jus à alma de quem tipicamente nasceu para conferir à idiotice um talento de tão admirada valentia - repare: todo idiota tem a plena convicção de que idiota são os outros, nunca ele mesmo. A bem da verdade, é até preferível conviver com idiotas. A idiotice é multifacetada, maravilhosa em sua diversidade. Há aí, nos meandros estúpidos da idiotice, materiais infinitos para inspirações infinitas! Porque esse é um dado importantíssimo no ser-idiota: ele é capaz de gerar fagulhas de inspiração. Arrisco a dizer que é até possível amar um idiota por ele ser exatamente quem é: um idiota. Nada mais insosso do que rodear-se de ilustres senhores, de inteligência inquestionável. Não! Personagens inteligentes são tediosos. A inteligência é uma só, sem surpresas, tão ao contrário do mar de camadas que a idiotice cavoca em seus fiéis súditos idiotas. E se a inteligência alimenta o espírito - e quanto a isso não há o que contradizer - a idiotice, por outro lado, dá ignição nos motores da análise crítica, alimentadora da ironia, dos sarcasmos, da real face do ser humano, que em sua esmagadora maioria nasce idiota, cresce idiota e morre idiota - isso quando, após a morte, não celebra-se com saudosa reverência a viva lembrança de uma idiotice admiravelmente eterna, fonte de produção de novos e revigorados seguidores idiotas. Portanto, um viva aos idiotas que tanta alegria nos trazem! Um viva também ao idiota que somos quando idiotas sabemos que somos. Mas aí já deixamos de ser idiotas. Lembrem-se: um idiota sábio de sua idiotice é carta fora do baralho, torna-se chato, repetitivo, pedantemente incisivo em sua ferina visão a respeito desse teatro maior. Sei que sei que sou idiota. E esse é o único senão de se viver entre idiotas - são poucos os que entendem a beleza de quem é idiota sem o saber.


...


...

#

Aos atores cabe uma consciência privilegiada: a consciência da periferia. Porque uma prática típica da nossa raça - atores ou não atores -, é a de inventar substância onde só há periferia. E o ator é um ser periférico por princípio. O ator não tem substância nenhuma, só vazios. E de vazios são compostos tanto os atores como todos os outros que não são atores, mas que por inconsciência da periferia, atribuem valores de substância àquilo que não suporta substância alguma. Quando dizemos do tal fulano que ele é um fulano excepcional, esse adjetivo maravilhoso não é outra coisa senão uma mentira das grossas. O fulano será sempre só fulano, o pouco e o muito que a providência divina lhe deu a sorte de usufruir. O resto é mentira, ainda que tratada como substância, argumento para se proteger sabe-se lá qual ideia de ética e caráter. E a mentira é a matéria prima do que é periférico. Que também é a matéria prima do ofício do ator. Mas nós, em regra geral, nunca advogamos em favor de mentira alguma. Muito ao contrário. Dizemos que somos quem somos, ou seja, verdadeiros para conosco e para com o mundo (caso um ator defenda isso, ele é, sem dúvida alguma, um péssimo ator). E aí já mentimos, ainda que pensemos estarmos sendo verdadeiros, substanciosos em nossa conduta moral. Tudo mentira! Imaginar ser quem se é é de um cinismo ridículo. Ninguém é quem é. Só somos aquilo que nos é dado a ser, e, por isso, faz-se necessário aprender a sambar de acordo com a música, a vestir o figurino que melhor adapta-se à farsa. O ator sabe que mente. O ator mente para ser verdadeiro porque sabe que é impossível raspar qualquer tipo de verdade. Só é verdadeiro porque mente bem, e se mostra transparente em sua mentira. É pela mentira, pela periferia que o ator existe. Bendita a sorte de nós, atores, de sermos atores, e, por consequência disso, podermos rir de todos aqueles - e de nós mesmos quando fraquejamos - que povoam-se de atributos de substância sem desconfiar que a única trama possível nessa vida é a tragédia de uma identidade imaginada, nunca fiel à verdade nenhuma.


...



...

quinta-feira, 12 de março de 2015

#

Acabo de ver um desses atores pela TV. Um desses atores cujo talento não sabemos ao certo qual seja - ou talvez aí está justamente o motivo de tudo: a carência completa de qualquer talento -, alçado ao posto dos atores de destaque do Olimpo da teledramaturgia. Porque essa é a vantagem de ser ator nos dias que seguem: a absoluta não necessidade de ser ator. Sorte a qual os médicos, por exemplo, estão longe de se submeter. Os médicos, e também os engenheiros, e os advogados e os arquitetos também. Todos eles são o que são. Um médico precisa ser médico para ser médico. O engenheiro necessita tornar-se engenheiro para ser engenheiro de fato. Advogados e arquitetos, por sua vez, só são o que são: advogados e arquitetos, porque alcançaram um dia o direito de tornarem-se advogados e arquitetos. Já com o ator é diferente. O ator não precisa ser ator. Qualquer pobre diabo é ator. Qualquer pobre diabo vira ator. Para ser ator basta virar ator. E para virar ator basta desejar tornar-se ator. É uma voz íntima que diz: tens vocação para ser ator, e isso já basta, é mais do que o suficiente. É um trato de si para si mesmo, e dane-se o mundo. E não demora a conclamar-se uma plateia imensa para estar diante desse ator que é ator porque um dia quis ser ator, e ator é agora. Todos o chamam de ator. Então porque ele, o ator, haveria de duvidar de quem ele próprio acredita que seja: um baita dum ator alçado ao posto dos atores de destaque do Olimpo da teledramaturgia? Mas ele lá está, é um treco à serviço de um tanto de outros trecos tecnológicos, perdido no meio de uma paisagem onde esperam que o seu charme de ator componha com o cenário natural escolhido para deleitar os telespectadores no início dessa que será a grande nova novela. Só diferente daquela outra que passou porque essa novela agora é a nova novela, ainda que tenha ela tudo do que a antiga novela tinha: os mesmos protótipos de atores que viraram atores por força do ânimo interno e apelo às carícias comerciais, a mesma expectativa de inaugurar uma nova maneira de repetir as mesmas coisas. Hoje é muito fácil ser ator: basta não sê-lo.

#

Talvez de fato nós mereçamos esse troféu: o troféu de pior cinema do mundo. E não por culpa do cinema, que é cinema em qualquer canto do mundo. Mas por culpa só nossa, que por sermos tão ruins em fazer cinema, e por também sermos igualmente fazedores de cinema, acabamos por unir os pontos da equação e, por fim, levantar esse troféu: o de piores fazedores de cinema do mundo. E talvez porque sejamos nós péssimos atores também. E péssimos diretores de atores também. E com tantas péssimas peças, em nada admira que tenhamos o talento para arrancar dos piores argumentos possíveis o substrato de histórias completamente pobres e não menos péssimas, seja porque são elas próprias um poço inesgotável de melodramas fajutos, seja porque nós, ainda que com uma boa e rara história nas mãos, não temos a mais vaga ideia de como contá-la, ou a contamos de forma péssima, destruindo todo e qualquer potencial que nela poderia haver para, de fato, consolidar-se como uma boa história. E talvez sejamos tão ruins porque adoramos querer do cinema essa coisa dele, o cinema, virar uma máquina poderosa produtora de emoções. E por essa razão fazemos do cinema o pior dos cinemas possíveis: porque sentimos que é o sentimento a pedra de toque que se esconde nas boas histórias. E assim procedemos como espremedores de esponja, torcendo ao avesso qualquer narrativa na esperança de extrair dela as lágrimas prometidas. Talvez, de fato, esse troféu, o troféu de pior cinema do mundo, pertença a nós, e tenhamos mesmo que erguer os nossos punhos para apanhá-lo com orgulho e merecimento. E tal troféu não só diz respeito a nós, aos fazedores de cinema que somos, mas também ao público de cinema que também somos. Porque enquanto espectadores, adoramos sorver desse xarope doce da emoção pasteurizada, clamamos por ele, exigimos adocicar a língua com a pasta dos sentimentos impressos na tela. E assim, também viramos péssimos apreciadores de cinema. Ninguém se dando conta de que é o inverso disso tudo que pode, de alguma maneira, produzir alguma emoção digna de sinceridade poética. A secura, a aridez, o vazio das personagens, o silêncio da trilha sonora, a presença ou ausência de cores... São esses alguns dos elementos que, quando combinados, e sem a afetação do desejo de fazer do homem esse arauto lacrimoso de episódios baratos, é que podem chegar a algum horizonte simbólico digno de atenção.

sábado, 7 de março de 2015

#

Ator não se desnuda em cena. Ator não aparece, não é feito da matéria de aparecimentos. Não se despudora, não se despe em camada nenhuma, não faz da sua vida íntima laboratório de nada. Ator não é essa figura destemida que abre as entranhas ao julgamento alheio. Essa história de que o ator não tem medo do ridículo é de uma estupidez juvenil. Tudo o inverso! O ator é retraído, apavorado pelo ridículo de sua ousadia de dar-se aos olhares de outros. Esconde-se, não revela nada de si. Seu ofício é de camuflamentos, esconderijos, cantos de sombra e silêncio. Seu símbolo é a máscara, o artifício. Que desgraça de mundo cujo maior exemplo de talento é esse, que faz do ato público um cubículo de convergência personalista, terapêutica? O teatro, a expressão, a poesia, a metáfora, tudo escorre pelo ralo quando o ator acredita fielmente em sua patética ideia de que é ele a coisa mais interessante do planeta.


...



...