segunda-feira, 31 de outubro de 2016

O segredo é virar uma personagem de si mesmo. Falar não o que se sente ao sentir, mas o que se vê no instante em que se sente, e mesmo depois de haver sentido. É um duplo sentir, um de perto e outro de longe. É no intervalo desses extremos que é necessário firmar terreno. É ser quem se é, já não sendo. É sempre ser pela metade, de um lado de um jeito, dou outro lado de outro jeito. É nunca ser completo. Uma coisa e outra, ao mesmo tempo, e o tempo inteiro. Um recheio sem conteúdo. Ou um conteúdo repleto de vazios. O segredo é só esse: saber ser ator.



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sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Ser plateia de teatro também requer prática, insistência, aprimoramento da sensibilidade. Não é só quem pisa no palco que precisa de tempo de trabalho, dedicação e esforço.


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quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Se o mundo é um palco, é porque antes de tudo o palco é o próprio mundo reconstruído e redimensionado. Entendo melhor o que acontece diante de mim e para além de mim porque experimento em meu ofício a materialização artificial daquilo que não consigo tocar. Devo minha formação ética e política ao teatro, somente ao teatro. É no contato com o microcosmo que se pode entender o infinito das coisas inatingíveis, ou, ao menos, compreender e respeitar o tamanho impossível das coisas misteriosas. É por isso que o ensino das artes é coisa fundamental, porque sente-se na pele as duas funções primordiais para qualquer tipo de experiência coletiva e comunitária: a de autor do discurso que se produz, e a de espectador de si mesmo. É como se experimentássemos a certeza absoluta de sermos quem somos ao mesmo tempo em que duvidamos redondamente desse a quem imaginávamos que éramos. É essa dialética que nos torna atentos para a vida. O resto é silêncio.


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quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Estamos chegando ao vigésimo Peer Gynt em quase um mês de temporada. São 5 Peer Gynts por semana. Amanhã, domingo, haverá mais um Peer Gynt. A lição e a experiência são duras, ferem direto na carne, porque é a prova de que teatro deveria ser sempre assim, quase que diário, e que quase sempre, nesse nosso tempo atual de idolatria do ator como um garoto propaganda de coisa nenhuma, mimado e afetado ao paroxismo, desacostumamos a pensar o teatro como um ofício, um ter que fazer, uma necessidade constante e sistemática de subir ao palco e abrir as cortinas. E também de saber que a plateia não é a responsável pelo vazio das salas de espetáculos. Os responsáveis somos nós, artistas do teatro, donos de teatro, produtores e gente do teatro, que lidamos com nossa profissão como se ela fosse um passatempo de fim de semana, como se fôssemos nós todos parceiros de um eterno churrasco que assa as lingüiças somente quando o sol desponta no horizonte. 
Que venha mais uma centena de Peer Gynts. Que nós saibamos que o bom teatro só se faz fazendo, e fazendo sempre.


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Dentre todas as qualidades e desvantagens reunidas, o teatro talvez desponte como o único refúgio em que é impossível fugir da seguinte transparência: se tu fores uma anta na vida, uma anta serás no palco. A mentira do teatro é absolutamente reveladora, nada afeita a esconder as hipocrisias da ordem da ética e do caráter de quem possivelmente resolve subir às tábuas.
Não é interessante pensar isso? As cortinas são abertas para o faz-de-conta. Mas o que sobra da fabulação é sempre a mais crua das verdades.


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É inacreditável que numa cidade como São Paulo não exista uma Cia Estável de Teatro financiada pelo governo. Cia de dança está aí, orquestra sinfônica municipal também, coral da cidade até.... e nada do teatro fugir da sua habitual miséria clandestina de sempre.


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Quando alguém convida-me dizendo "venha me ver no teatro", eu sei que a peça é ruim... E se o sujeito emendar com um "acho que você vai gostar", aí, então, eu tenho certeza de que a peça é péssima.


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Teatro é uma batalha franca. No instante exato em que começa, nem a plateia sabe o que vai encontrar pela frente e tampouco os atores tem a real dimensão de como cada palavra dita irá reverberar nessa massa igualmente misteriosa que é a audiência. Teatro é perigoso. E o perigo é esse mesmo: a sensação concreta de enfrentar pela frente um oponente real e desconhecido. A diferença é que aqui a guerra é simbólica, e tanto melhor será ela travada quanto, ao final, ambos os lados saírem empatados. Teatro é um desses raros campos de batalha em que a imposição de um lado sobre o outro implica em derrota imediata justamente para esse a quem a força prevaleceu.



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sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Ator inteligente não se coloca 'no lugar' de personagem nenhuma. Ator inteligente não faz qualquer esforço para alcançar o estado de presença e emoção da personagem. Ator inteligente sabe perfeitamente que a personagem é sempre maior do que ele, bastando a ele o papel de dar abertura para que a personagem passe. O ator inteligente abre passagem. O resto já não é mais com ele.


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Todo personagem ruim abre espaço para essa bobagem contemporânea que batizaram com o nome de 'gênese'. Todo personagem ruim tem um antes, um agora e um depois. Os personagens bons são o inverso disso, são atemporais, infinitos, e morrem de rir quando o ator quer encontrá-los para uma breve vivência dessas que servem somente para você comprovar a sua completa ausência de auto-estima. Personagem bom não tem tempo para sentar com você no café da manhã e ler em voz alta o horóscopo do dia.


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segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Uma peça de teatro deve ter o mesmo charme que há nessas fanfarras que tocam nos coretos das praças do interior. Esse charme é essa mistura de uma certa desafinação com a dignidade de juntar os instrumentos antigos para soprá-los como se fossem instrumentos da mais nobre orquestra sinfônica que habita a face da Terra. Esse charme é a maravilha da imagem que vemos do soprador de corneta que com sua pança quase faz estourar o único botão da casaca puída que veste. E, indiferente a isso, o corneteiro é mais elegante que o mais bem apessoado dos trompetistas já surgidos pelos palcos do mundo. Uma peça de teatro deve ter o charme próprio do coreto da praça. Um lugar meio descascado pelo uso tempo. Um lugar aparentemente aposentado das suas funções, coagulado no espaço, quase triste e melancólico. Mas lotado de vida, e justamente por parecer morto. É um 'quase lá' que faz toda a diferença. Uma peça de teatro deve ter a energia concentrada do próprio teatro, do próprio palco que pisa. É ela - a peça de teatro -, uma mistura desses opostos todos, do macro com o micro, do grandioso com o detalhe, da tragédia com a comédia. É rir com um olho e chorar com outro, e ao mesmo tempo. Uma peça de teatro deve lembrar-se sempre da função mais importante que está a cargo do ator: a de tratar com absoluta seriedade a aventura insignificante da vida.



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quinta-feira, 13 de outubro de 2016

No teatro, uma das funções mais nobres está com aquele sujeito que abre e fecha a cortina do palco. Sem demagogia nenhuma, considero ele, o cortineiro, uma figura tão importante quanto o ator. Aliás, acho ele, o cortineiro, mais importante que o ator. Abrir e fechar uma cortina é o mesmo que abrir e fechar uma caixinha de música. Há que se ter técnica e sensibilidade para isso. E o ator é refém desse procedimento. Como a bailarina que está dentro da caixinha de música, nada há o que fazer se não houver quem dê visibilidade ao que habita o silêncio das sombras. E ainda por cima, o cortineiro tem a deslumbrante vantagem de ser invisível por completo, esforço pelo qual o ator também reúne esforços, mas nem sempre alcança sucesso. Um ator visível é sempre um péssimo ator. Antes de começar o espetáculo, observo admirado e com admiração esse sujeito que se esconde nos bastidores, pronto para acionar um botão que fará a cortina se abrir e me expor à arena dos leões, e sem reservar qualquer piedade por mim.
Penso ser um crime um teatro eliminar o uso da cortina, dispensar o serviço valiosíssimo do cortineiro. Se entro numa sala de espetáculos na condição de espectador e vejo o palco sem a proteção da cortina, então sinto uma dor no peito duas vezes: a primeira por quebrarem-me o mistério de descobrir o que há por trás da cortina, e depois por saber que não há cortineiro algum que me faça imaginar o instante exato em que ele acionará o mecanismo que tanto me ilumina de encanto os olhos e a alma.


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segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Leio no jornal que um certo ator se interessou pelo 'mocinho' da vez - o mesmo papel de sempre da teledramaturgia - porque o personagem 'é real', como nós o somos também. Pois comigo é o inverso: papel bom é aquele que só existe para figurar debaixo da moldura do impossível, que veste roupas impossíveis, que fala coisas impossíveis de serem ouvidas nas esquinas da vida, que é grande demais para caber nas ruas, que pesa toneladas e mais toneladas ao ser carregado. Essa é a diferença essencial entre o teatro e a TV: o primeiro gosta de poesia, o segundo adora o Ibope.


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sábado, 1 de outubro de 2016

Eu sou ator. Ator de teatro. Minha vaidade está concentrada toda nisto: que os outros me vejam! Eu me contento perfeitamente em ser invisível a mim mesmo.


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Quem é revolucionário a ponto de dar-se ao luxo de poder sonhar jamais deixa-se ser manipulado, jamais vira massa de manobra, jamais vira gado de pasto, jamais cai nas graças da multidão virando um número dentre tantos. Peer Gynt estreia hoje. É um texto do século XIX que não foi entendido como teatro em sua época. O texto de Ibsen era um texto à frente de seu tempo. Era uma personagem à frente de seu tempo. Hoje continua assim. Hoje, em pleno período de elegia à Idade Média - não àquilo que a Idade Média tinha de bom, o que já me parece muito mais do que nós temos hoje, mas em referência à tudo o que nos amarra em raízes conservadoras - Peer Gynt continua sendo um acontecimento estranho, de rompimento de valores, de questionamento de tudo o que nos acostumamos a chamar de 'civilização'. É uma homenagem sobretudo ao teatro, que sempre - em todas as épocas - só existiu e existe porque jamais esteve distante de sua natureza transgressora. Nós, os bufões, os malucos, os sátyros, os palhaços, os atores que subimos diariamente ao palco temos o dever de sermos radicais na metáfora, e torcemos para que a poesia ganhe sentido de realidade na intimidade de cada um que vá até o teatro. O mundo se modifica de dentro para fora. Toda promessa que subtraia essa única verdade é mentirosa. 
Viva o teatro!



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A personagem sempre é mais bonita que o ator que a representa. Quando isso não ocorre é porque o ator é ruim. Ou porque a personagem é ruim. Ou, então, porque ambos - ator e personagem - são péssimos e merecem um ao outro.


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Quando me perguntam como é que eu faço para decorar tanto texto, eu me coço para não responder: 'e tu, que fala um tantão sem parar e sem se dar conta do que fala, normalmente falando coisa nenhuma, exigindo um esforço dez vezes maior do que o meu, que falo o que tenho que falar na hora que falo, e ainda tenho a sorte de emprestar a minha voz à voz de um autor infinitamente mais sábio que nós dois juntos?'... 
Minha tarefa é muito mais fácil, convenhamos.


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Eu tenho a melhor profissão do mundo. Finjo por ofício. E você, que finge tanto quanto eu só que à paisana, mentindo que diz sempre a verdade?



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Acho que se deveria medir um ator pela unha do dedinho mindinho da mão esquerda. Se ela parecer natural, então é porque todo o resto está errado.


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