segunda-feira, 24 de julho de 2017

A pior sentença que um ator pode receber vem da imagem impressa na tela. Porque a imagem é redutora. E reduz porque atribui uma identidade ao ator. Ou melhor, reduz a personagem ao ator. E o que sobra dessa equação também já não é mais o ator ele próprio, é outra coisa, talvez uma máscara sempre congelada naquela expressão de graça típica dos atores que frequentam a imagem. E essa máscara impressa pela imagem cobra do ator uma certa responsabilidade pela manutenção de um sorriso, de um estado artificial de entusiasmo. Essa é a diferença do teatro para a imagem. No teatro não há qualquer chance do ator ser o centro das atenções. E ainda que o seja, ele só o é porque sabe que está respondendo a uma instância infinitamente maior que ele que o impede de celebrar a si próprio. E quando tudo acaba, o ator também sai acabado, pagando um preço alto pelo esforço a que se permitiu debaixo do refletor. O entusiasmo é coisa que acaba junto com a cortina que se fecha. E é preciso que seja assim porque não há outra maneira de ser de outra forma. E é só por isso que fazer teatro vale a pena, porque já não há qualquer defesa de uma falsa identidade possível depois de ser atropelado por essa espécie de exposição pública. O ator de teatro não precisa dar-se ao trabalho de fazer a manutenção de uma máscara pública, e talvez por isso mesmo que ele seja perigoso, porque se a mentira é seu ofício e não um charme particular, fora dela já não há mais a necessidade de congelar o rosto em expressões artificiais.... e o que sobra é a verdade. Quer perigo maior do que dizer a verdade num mundo casa vez mais adepto dos piores disfarces?

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Ator que diz que encontrou consigo sendo ator encontrou com tudo, exceto com a coisa que é ser ator.

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Falta de imaginação = ausência de mistério. Quando qualquer arte age para localizar, quem fica mais pobre é a própria arte. Quem faz reportagem é jornalista, quem faz política é político, quem se cura faz terapia, quem faz benfeitorias é agente social. Arte produz poeira cósmica, pó de pirlim-pim-pim, coisas impalpáveis e de difícil apreensão, de quase nenhuma utilidade prática. E se tudo isso soar prepotente, é porque toda arte que se valha da sua real função é prepotente mesmo, e no último grau.

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quarta-feira, 12 de julho de 2017

Acho que e a gente só é ator para aprender a gastar as palavras pela garganta no espaço afora, e quando já estivermos com a goela cansada, convictos de que não resta mais nada para dizer, aí sim descobrir que sobraram umas poucas palavras no silêncio quieto da imaginação. E ao invés de desperdiçá-las aos ventos, escrever. Acho que é só por isso que vale a pena ser ator, pelo reverso da moeda. Só depois que Hamlet diz 'O resto é silêncio' é que a coisa realmente pode começar.


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segunda-feira, 10 de julho de 2017

Elogio à mentira!
Tudo o que me acontece é motivo dramático, mas só porque eu aumento 100 vezes o que me aconteceu, ou diminuo outras tantas 1000 vezes o que era, no princípio, um fato real. A vida não me interessa nem um pouco, ela é, por mérito ou defeito de nascença, chata e previsível até a raiz da medula. Meu depoimento pessoal não interessa a mim e nem a ninguém que possa vir a ouvi-lo. O que interessa é o quão habilidoso eu sou para deturpar o que é comum a mim e a todos. Eu estico ou contorço a massa, ou as duas coisas. São as formas criadas que fazem brilhar meus olhos, nunca a substância da coisa em si. Agindo assim, a minha personalidade, aquilo que é íntimo meu, desaparece em função de uma máscara especialmente forjada. O mentiroso não é tanto um fabulador original quanto um hábil dissimulador daquilo que existe. Sou desses. A vida só me faz sentido se dela puder extrair esse substrato de aspecto moldável. E procedo dessa forma também por uma vaidade latente que faço questão de preservar: a de me esconder por detrás das falcatruas que conto para vislumbrar se você, que não as conhece, cai na armadilha.


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domingo, 9 de julho de 2017

Arte é uma celebração à impossibilidade de apreender a vida. E é dessa falha que surge a potência da expressão. A arte existe porque a vida basta. Não fazemos arte para compreender ou emendar a vida. Fazemos arte porque é preciso fazer arte, e também porque é impossível compreender ou emendar a vida. Arte não serve para. Arte é o fruto de esgotamentos voluntários ou inconscientes. E é só por isso que a arte pode se comunicar com a vida, porque arte nenhuma deve responsabilidades à vida.

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sábado, 8 de julho de 2017

Ator não se transforma na personagem. Ator apresenta a personagem. Nessa equação, o papel de transformação cabe à plateia. Que é a razão pela qual se faz teatro: oferecer ao outro a possibilidade de haver alguma transformação. Dizer que o ator se transforma na personagem é o mesmo que armar uma festa, distribuir os convites, botar a música na caixa de som... e mandar todo mundo embora na hora de fatiar o bolo.

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sexta-feira, 7 de julho de 2017

Pode tudo no palco e igualmente pode tudo na plateia. O que não pode é a gente do palco medir o discurso pelo julgamento de quem está na plateia. Interromper um espetáculo não me parece grave. Grave é o espetáculo deixar de ocorrer nos dias subsequentes porque houve na plateia quem o interrompesse. Se a plateia, ou parte dela, tem o total direito de se manifestar pela não aceitação do espetáculo, por que quem está no palco baixa a guarda e diz: perfeitamente, o espetáculo deixará de ocorrer? Ainda que isso seja possível, que os artistas da cena entendam por bem não levar adiante o trabalho (a resposta da plateia me parece sempre uma justa medida do real sentido daquilo que o ator faz debaixo do refletor), o perigo que se cria é muito maior do que essa aparente troca civilizada de vozes: é haver uma jurisdição anterior a qualquer exercício poético, espécie de tribunal prévio a que o artista deve necessariamente se submeter para que possa ele exercer o seu ofício de expressão. E já há precedentes que indicam que isso anda ocorrendo. Eu não fico tão indignado com o comportamento de parte da plateia que interrompe um espetáculo (mesmo que essa interrupção implique, para mim, numa espécie bastante evidente de burrice para aquilo que significa a cena num palco ou espaço teatral), mas fico furioso com nossa própria turma, que recebe uma pancada dessas e se cala, ou pior, abre as portas de casa e monta uma mesa de chá para se discutir uma infinidade de questões, dessas questões que poderiam perfeitamente ser discutidas numa assembléia legislativa. Acho eu que transformar o teatro numa assembléia legislativa é, no mínimo, de uma pobreza de imaginação e de criatividade que se compara a abrir um brinquedo e passar mais tempo lendo as instruções do que descobrindo como se brinca.
Daqui a pouco iremos demitir o pobre do Dionísio e tomar o lugar daquela senhora vendada (ou não?) que segura aquela balança enferrujada com uma das mãos, e uma espada torta na outra. De minha parte, prefiro ser completamente louco a um arauto da justiça de qualquer um.


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Adoro palmito. Daqueles palmitões em conserva (olha a mensagem subliminar!). E palmito é bom porque não tem nada a ver com uma dieta básica, dessas que são essenciais para o organismo manter-se erguido em sua plena saúde. Come-se palmito pelo prazer de comer palmito, e só! Eu, por exemplo, abro uma lata de palmito escondido dos outros, para comer só eu, sem ter que dividir com ninguém! Ai de quem pedir um palmito emprestado! Não dou! Acho o teatro exatamente a mesma coisa do palmito. Teatro é o palmito da dieta. Não é nada essencial, e é por isso - e só por isso! - que ele é coisa urgente e necessária. Não se pode comer um palmito como se come arroz e feijão. É um desperdício do palmito querer dele o que o arroz e feijão faz por nós. Não, não! Se o arroz e feijão são fundamentais, o palmito é comprovadamente supérfluo. E também é a prova de que vivemos para o supérfluo, já que é impossível de fugir do que é fundamental. Que vida desgraçada seria a de viver somente para o fundamental... Isso os animais já fazem. Somos especiais porque vivemos para o que é aleatório, marginal, ou seja, para o que nos satisfaz sem esperar de nós resposta alguma. O teatro é o palmito da dieta! Tirem o teatro do cardápio do PF, para o bem do teatro, e para o bem da nossa saúde!


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segunda-feira, 3 de julho de 2017

Acho que o protagonista do teatro é o acontecimento, não o ator. É possível um ator maravilhoso naufragar num acontecimento nenhum. Como também é possível um ator sem tantos recursos brilhar na carona de um acontecimento maravilhoso. Agora, quem gera o tal do acontecimento ou a falta dele? Acho que também é o ator, mas em parceria (ou recusa) com o que está ao seu redor. O acontecimento iluminado é aquele que acontece, ou pode acontecer, quando o ator desiste dessa coisa de defender a sua personagem e sobe ao palco acompanhado do precipício que é a própria exposição (um acontecimento iluminado é sempre um estado que inevitavelmente mergulha o ator num estado de desespero). O acontecimento nenhum é esse que propõe um nada de acontecimento quando o ator acredita que ele é o teatro, que a sua personagem é o que interessa, e que não há outra coisa a se prestar atenção senão ao seu sentimento extravasado a olhos vistos (o acontecimento nenhum, por sua vez, é coisa para lá de reconfortante para o ator, e também para o público..., sensação próxima a do sono).

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sábado, 1 de julho de 2017

Discordo dessa ideia de que falta direção aos atores, aliás, sou da opinião contrária: o que não falta é atenção aos atores, tanta atenção que hoje chegamos ao patamar de encontrar atores que sobem ao palco para contar ao público que são atores, e que a história que irão contar é a história deles próprios, e a partir deles mesmos (RIP Dionísio). E isso se deve a uma razão bastante simples: estamos na era que preza por mimar os atores, e a tal ponto que tudo vira em função do ator: a personagem só funciona se o ator descascar as suas emoções, emitir as suas opiniões, colocar-se por inteiro a serviço daquilo que ele é para que alguma coisa possa acontecer. E quase sempre nada acontece, evidentemente. Ou o que acontece poderia muito bem acontecer distante dos olhares alheios e no conforto do divã de um psiquiatra. E a reboque disso aparecem os coachs ou preparadores de atores que só estão lá para funcionar feito séquitos dos atores, para facilitar ao ator a ser quem ele já é e sempre foi, ajudá-lo a escarafunchar no mergulho íntimo do si-mesmo, e tudo chancelado pela etiqueta da expressão autêntica. Não! Não! Não faltam diretores de atores, falta é gente que mande os atores irem pastar e preocupem-se com o espaço, com a indumentária, com a dramaturgia, com a música, com a arquitetura de tudo aquilo que compreende o teatro, incluindo aí também o ator. Se o ator é importante é só porque ele necessariamente engendra e junta todos esses elementos, somente por isso. Os melhores diretores que tive ao meu lado foram essencialmente artistas da encenação. Encenadores que legavam a mim a responsabilidade de canalizar aquilo que criavam na minha periferia para que a personagem surgisse dessa equação de soma dos elementos concretos e palpáveis que o teatro oferece como linguagem. Eu nunca sei o que é a personagem que represento em cena, e não sei porque preciso não saber para que eu possa poder agir com as ferramentas que me são dadas e aquelas que eu devo oferecer como interprete que sou. A personagem é de responsabilidade do público, não minha. Aliás, é minha também, mas só é minha porque dela eu não faço nenhuma questão de me ocupar. A personagem aparece porque eu empresto-me ao exercício da expressão, e não porque a personagem é expressa pelo meu esforço em expressá-la. Não existe nada mais desanimador do que pensar o trabalho do ator como um exercício de preenchimento de uma ideia de vida possível - a personagem. Ao contrário! O trabalho do ator é maravilhoso porque ele necessariamente deve se esvaziar dessa tentação de ser alguém. É de uma pretensão estúpida e fadada ao fracasso querer ser Hamlet, e igualmente é de uma idiotice sem tamanho convocar uma plateia para reafirmar que você é você mesmo.


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