segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

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É preciso uma certa dose de perversão vaidosa para falar de si mesmo, mas ainda assim tomo-me como protagonista do que escrevo. Além do que, falo de mim para mim, e se isso por si só já não basta, ao menos cumpre a tarefa de matar o tempo ocioso. Quem quiser que escute por detrás da porta, sabendo que a curiosidade é por vezes atributo de caráter ainda pior do que esse colocar-se diante do espelho a que frequentemente me predisponho. Penso cá comigo o que levou-me o interesse a enveredar para os palcos... É certo que há bastante dose de adrenalina em oferecer-se aos olhares alheios - assim como também saltar de paraquedas, imagino eu, acarreta o mesmo senti-se com os pelos eriçados. E se a comparação é justa, é também justo que o teatro experimenta um medo terrificante da morte. Há qualquer coisa de terrível em pisar em cena porque já deve haver nesse ato a consciência de uma queda iminente e inevitável. O ator esforça-se para ser um outro alguém já na posse de um estado de conhecimento que o habilita a reconhecer essa impossibilidade. A personagem é sempre infinitamente maior do que o tamanho do ator, e sua busca por encontrá-la é algo recheado de exasperação, de suores absurdos. O alívio está nas cortinas que encerram o espetáculo assim como a lona do paraquedas salva o paraquedista de um fim certeiro. E por alguma razão misteriosa, à essa sensação de impotência controlada conferimos exercício quase diário, sorvendo doses contínuas e simuladas de desespero. Talvez por esse motivo específico o teatro interessa-me tanto, porque dentro do seu domínio é possível desmontar a segurança de uma vida armada para trilhar um caminho sem grandes acidentes, um lugar onde despedaçar-se é uma atitude sem dúvida nenhuma aflitiva, mas necessária. Desconfio bastante, portanto, de quem diz que debaixo dos refletores é possível sentir-se pleno e feliz, quase como se coubesse ao teatro essa responsabilidade de condução tranquila e recompensadora. Não consigo muito bem avaliar esse sentido de recompensa que o teatro hipotéticamente pode oferecer, sei apenas que o assombro que ele irradia faz-me voltar para novas tentativas. Há sempre muito mistério nessa sensação. Talvez seja o mistério, acima de tudo, a chave da questão.

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terça-feira, 9 de dezembro de 2014

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Audrey - Não compreendo o que seja poética. É alguma coisa conveniente em palavra e obra? Será qualquer coisa verdadeira?


Touchstone - Certamente que não, pois a mais verdadeira das poesias é a mais abundante em ficção. Os amorosos são dados à poesia e os que juram em poesia pode dizer-se que são fingidos como apaixonados


Como Gostais / Shakespeare


segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

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Nesse mundo nada dramático, ou excessivamente dramático - o que dá na mesma - o drama, enfim, essa coisa encenada como matéria de expressão pública, pouco ou nada tem de importante. O que vale são os monólogos diários, íntimos, lacrimosos ao extremo, que nascem como tentativa de angariar plateia ao mínimo do que somos. O que vivemos hoje é um teatro de moldura decadente, de cenários compostos por tábuas vergadas, o próprio palco ruindo aos nossos pés. E o que torna tudo mais patético é a ideia de que há jeito de ser interessante nessa insistência em defender a persona, o eu, a subjetividade do mundo oco que nos habita. Nossa época é uma época miserável quando se trata de fazer da expressão um ofício. O artista hoje é quase sempre um sujeito preso entre duas armadilhas: a de virar um personagem de si mesmo, cheio de charme contagioso, e afeito ao ibope das massas, ou então a padecer em um eterno exílio contemplativo, vazio de audiência, justamente porque foge conscientemente do exercício da exposição a todo custo.

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quinta-feira, 27 de novembro de 2014

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Não sou a favor da democratização da informação
Sou a favor do silêncio
Da democratização do segredo
Da distribuição gratuita de sombras, esconderijos, becos escuros
Todos rumo à surdina!...Eu diria
Afinal
Sou um democrata de carteirinha
Pelo direito de ninguém chafurdar para além daquilo que é urgente ser sabido
Ou seja
Quase ou nada
de Coisa
Nenhuma

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terça-feira, 25 de novembro de 2014

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O tropeço diário e inevitável do ator em sua tentativa de perseverar é o que lhe confere caminho para uma determinada consciência fundamental: a de que a consolidação de um 'eu' único e exclusivo às suas paixões é terreno impossível. O fracasso lhe dá a consciência de que há algo maior a reger a sua pequena função de saber-se vivo e ativo. É como se houvesse um entendimento do funcionamento do teatro dentro do ator, sendo ele próprio uma engrenagem de elaboração e atuação da sua impotência - a personagem aqui deixa de existir, seria impossível considerá-la um instrumento de trabalho do ator, ela não é mais alvo de nada. Para além da vontade de dar vida a determinada qualidade de existência, o ator, em um último estágio de consciência, compreende que o seu papel é antes materializar as vibrações daquilo que sempre existiu a despeito dos seus esforços particulares. Nessa medida, nenhum sentimento é alcançável senão pelo esforço da razão aliada à intuição. O teatro é o protagonista do próprio teatro, e nunca o ator em sua pretensiosa solidão inspirada.


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segunda-feira, 17 de novembro de 2014

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Tenho tanta dificuldade em mudar de hábitos quanto em mudar de roupa. A diferença é que quando finalmente mudo de roupa, os hábitos só ficam um tiquinho mais chiques, e nada mais.

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domingo, 16 de novembro de 2014

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Pior do que dizer a verdade é aquele que confere se é verdade o que dizem...
Eu dou-me muito bem com a mentira, aliás, é só com ela que eu fecho parceria. Quem quiser acreditar que acredite!


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terça-feira, 4 de novembro de 2014

"(...) O homem se explica em Deus, mas por aquilo que representa em Deus a essência atual do homem; isto é, seu poder é uma parte do poder de Deus, ele é uma parte da natureza; é impossível que seu corpo não receba, dos corpos que lhe são externos, mudanças das quais ele não é a causa, que seu espírito não receba ideias que ele não formou. Ou seja, é impossível que ele não seja passivo, presa das paixões. Suas ações são resultantes necessárias das leis universais; nele, nada vem dele; ele é um escravo (...)"
Léon Brunschvicg, sobre a filosofia de Spinoza.
Através do mesmo princípio se dá o trabalho do ator. Ele é parte da personagem na medida em que a personagem configura-se como mundo tangível, atualizando em si uma potência que pré-existe enquanto ideia e essência. O ator nada cria, mas deixa-se ser afetado ao mesmo tempo em que afeta um terreno de intensidade existencial, não havendo necessidade de fazer maiores esforços para habitá-lo porque desde sempre o esteve habitando. Não cabe ao ator o exercício de 'ir' atrás da composição da personagem como se a personagem fosse o fim do percurso de uma busca, como se ela estivesse além, na perspectiva imaterial de um Deus a ser tocado um dia. A personagem é matéria que exerce força sobre o ator que é parte integrante do mesmo mundo. Tratando de outra maneira, pensar o ator como esse elemento especial que dá vida à personagem é torná-lo refém de uma relação de poder onde ele próprio será sempre a vítima (ainda que possa pensar o contrário), condicionado a uma espécie de imaginação piedosa que em nada é criativa, senão aprisionadora de um universo íntimo, sem maiores alcances aos outros corpos. Ao invés disso, o ator desenvolve para si uma constante passividade consciente, porque reconhece ser somente uma parte do universo ao qual não tem controle algum, senão agindo como canal de distribuição de intensidades desse mesmo universo em que habita e é habitado.

terça-feira, 28 de outubro de 2014

# O Ator detesta falar...

O que há de mais condenatório nessa vida é ter de falar. E como não fosse condenação suficiente, ainda há aqueles que por ofício falam sobre a urgência de ter de falar. E assim replicam a tragédia. Duas vezes condenados. Os atores são dessa espécie. E sabem que o são. Por isso, ao subir ao palco, os atores não buscam nada de fundamental quando dizem o que dizem. Ao contrário. O ator convive com uma dor essencial que é despejar o quanto antes o conteúdo de sua palavra, livrar-se dela, acabar de vez com o inglório fardo de ser o portador de qual verbo seja. O ator é um carrasco de toda e qualquer linguagem, principalmente da linguagem que compreende a palavra. O ator não quer dizer. Quando diz é porque quer, o quanto antes, acabar de dizer. Voltar ao silêncio. Fechar a cortina. Desaparecer. Nada mais assombroso, ignominioso, do que essa espécie de ator contemporâneo que fala em cima do palco para depois, longe dele, continuar falando, e mais ainda.

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sábado, 4 de outubro de 2014

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Uma das maravilhas de ser ator e de poder subir ao palco - talvez a maior delas! - e distante dessa presunção banal que virou o ofício do artista, a de aparecer frente ao público para produzir ídolos afeitos aos hormônios das multidões - é justamente a sorte de poder experimentar duplicar, ou replicar, o princípio mais básico da vida, seja ele o de dar alguma substância humana no instante em que essa substância se torna viva e concreta. A sorte de fazer teatro e de ser ator é que é impossível, ao frequentar tal terreno, não se dar conta de que a vida fora dos perímetros da ficção é ela própria um teatro construído e banal, cenário onde o homem inventa enredos para sobreviver ao mistério de se saber vivo sem ter razões maiores para tal. Assim, tudo o que é imaterial (Deuses, espíritos, bruxas, duendes e afins) surgem para corroborar um medo de ver reconhecida uma precariedade evidente: não somos nada! Não temos importância alguma! O ritual do teatro, se bem entendido e aproveitado, faz com que o ator compreenda que não há misticismo algum na atividade de existir perante ao outro, que a natureza é coisa corpórea - e por isso bela! - e nada fundamentada nessas nuvens psico-dramáticas da personagem, ou ídolos a serem acessados. Não há personagem, não há ideias flutuantes, a boa psicologia é a psicologia do corpo sem qualquer psicologia, entregue à consciência de se saber vivo no instante em que vive. A imaginação só serve quando é revertida em corpo. O resto é atalho para um beco sem saída da vaidade, ou da covardia (lados opostos da mesmíssima moeda).
Que beleza que é ser ator!


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sexta-feira, 3 de outubro de 2014

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A fronteira da matéria já é pensamento! Ou melhor, ou o pensamento tem fronteiras ou ele não é pensamento, virando antes conjectura abstrata. A verdade é coisa que se toca, nada afeita a nuvens de ideias imaginadas.

A personagem É o Ator! Se ele não for capaz de compreender o pensamento que envolve a ideia da personagem, não é por outra coisa senão que ele, o ator, não tem fronteiras suficientes para sê-lá. Sentir a personagem de nada adianta. Gasto vazio e barato de energia.

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quinta-feira, 2 de outubro de 2014

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Na base de tudo, o ofício do ator é um constante exercício de ética. O que há na natureza da relação do ator com a personagem? Um desejo de posse, por tornar-se um? Ou, ao contrário, a experiência de fabricação de distâncias propositais, de espaços 'entre' um e outro? Ao que me parece, as lacunas são fundamentais, porque é por elas que se pode desenvolver um olhar de vigilância generosa, considerando o espaço poético como um terreno plural e preenchido por vários olhares concomitantes e sem prejuízo de valores. O perigo da unidade, do ator que cega os olhos e imagina-se capaz de 'se tornar' a personagem - como se isso fosse de alguma forma possível -, está justamente numa ânsia suprema por atenção, algo que inspira poder, hierarquia. Na base de tudo, o ator experimenta no palco a encruzilhada diária que na vida conhecemos bastante bem: como lidar com o outro? 

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segunda-feira, 22 de setembro de 2014

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Para curar um engano, sobreponha outro engano. A soma de enganos livra-nos de sempre enganarmo-nos!

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Serei um velho catatônico e cheio de TOCs. Vou sempre aos mesmos lugares, peço sempre o mesmo cardápio, deito raízes nas mesmas razões. Para quem resolver me seguir, sou facilmente decifrável já no segundo dia, réplica exata da véspera. Prevejo que até mesmo minha cova será minha morada eterna, sem ímpetos de mudança, ao menos para esses meus ossos salientes, que de tão visíveis forçam-me a cumprimentá-los toda santa manhã, e com as mesmíssimas saudações...

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sábado, 20 de setembro de 2014

Teatro-religião

Pensando em teatro, há um parentesco extremo e fundamental entre arte e religião, entre a relação homem-Deus, ator-personagem. O religar-se do artista do palco é esse vínculo de alcance a algo mais fundamental, para além de si próprio. E a questão que fica é a mesma resvalada pelos adeptos da fé religiosa, ou seja, a entrega à existência de uma entidade absoluta, onisciente, onipotente. A personagem não pode ser tal entidade, o ator em nada se aproxima dessa concepção de submissão ao subjetivismo de uma ideia impalpável, escrita em linhas numa folha de papel. É ele próprio, ao contrário, o conhecedor e gerador de uma qualidade outra, superior e imanente à sua pessoa. Dessa forma, agir como ator é também experimentar agir como Deus, sem qualquer hierarquia de valores e perda de papéis - o ator não deixa de ser ator, a personagem não é algo materializável - ator e personagem encontram-se no 'ENTRE', somente no encontro das duas partes envolvidas. Está aí o campo sagrado no teatro. 


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quarta-feira, 17 de setembro de 2014

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Não lhe parece que aprender a viver seja a última coisa digna de instrução? Nem mesmo quem nada se dedica a aprender sobre isso, quando vive, já é pós graduado na questão. Antes seria necessário uma academia do desespero, para que fôssemos instruídos a morrer todo santo dia, fazendo da vida um proposital beco sem saída. Talvez, somente talvez, acumulássemos menos migalhas, que hoje chamamos de respeito.

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A pior das invenções foi essa coisa chamada sujeito, e, junto com ela, a psicologia... Não há nada separado de nada. Nada esconde-se por cantos de sombra e mistério. Sendo o que existe palpável, já se basta. O singular ao invés do sujeito! O ator-personagem  ao invés do ator que se 'empresta' ao sujeito abstrato da personagem. Toda dramaturgia é uma engrenagem cujo sentido humano está em seu movimento. Ou o ator compreende que não há 'interiores de emotividade', ou, o que será certo, atrapalhará a engenharia do mover-se em relação ao que existe e pede para se mover.


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terça-feira, 16 de setembro de 2014

ATOR - PERSONAGEM

Há no ator a potência do infinito de expressões (máscaras), mas esse infinito de expressões também é produto (e origem) de uma substância única e concreta, ou seja, o próprio ator. Portanto, se é perfeitamente possível separar o ator da personagem, é também impossível separá-los. Uma coisa é a outra estando nela, e não a sendo. Tudo ao mesmo tempo.

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segunda-feira, 15 de setembro de 2014

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Quer coisa melhor que escrever?
Você escreve e não precisa ler
Se há quem te leia você não vê
E assim acontece
Um amor onde as partes envolvidas
Não se conhecem!

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domingo, 14 de setembro de 2014

Corpos de Fogo, Peles de Anjo

Pense numa igreja. No interior de uma igreja. Pertence a esse espaço dedicado ao sagrado a arquitetura que evoca um silêncio introspectivo. Cada uma de suas partes estruturais ‘falam’ ao público de modo a convidá-lo a ampliar sua atenção para algo que será celebrado como rito. A celebração, do seu início ao fim, é inteiramente ritualizada, frequentando estágios iguais aos que compõem uma narrativa cênica. Perceba que a liturgia é também uma estrutura periférica – assim como a arquitetura – de narrativa. A fé, sentido último da religião, não é algo que se alcança espontaneamente, evocando conteúdos bíblicos de forma aleatória e desorganizada. Não! Assim como um corpo ergue-se porque é recheado por ossos que compõem o esqueleto, a fé não permanece em pé sem que haja um princípio norteador, racional, de orientação das suas instâncias introspectivas. Uma vez descartado esse aspecto fundamental que não só envolve o espaço mas dá a ele sua legitimidade estrutural, os assuntos perdem força, pouco significam. Não há mito sem rito!

O espetáculo ‘Corpos de Fogo, Peles de Anjo’, interpretado pela Cia Teatral Atos & Cenas, reúne no palco um conjunto de textos que evocam a condição da mulher no limite da loucura. A ideia é sem dúvida interessante, mas como fazer dela algo maior do que um punhado de sensações que, juntas, possam dar corpo a algo passível de leitura pelo espectador? A questão que se impõe é nitidamente dramatúrgica, ou seja, a falta de um trilho onde o público tenha condição de acompanhar o que é dito e visto, evitando um completo emaranhado de sensações só experimentado por cada uma das três atrizes em cena.

Assim como ocorre com o exemplo da igreja, o teatro é também um lugar de celebração que compreende uma arquitetura espacial denunciadora da sua função e funcionamento. Vamos ao teatro para ver e ouvir um relato recortado de uma determinada fatia da realidade, talvez exatamente como se observássemos a vida através do buraco de uma fechadura. O que existe dentro dessa moldura diminuta é a concentração de uma realidade, não a realidade esparramada como é a que experimentamos no tempo corriqueiro da vida. Nesse sentido, de pouco adianta fazer do palco um terreno de extravasamento de sentimentos genuínos e caros aos artistas que nele pisam, antes sendo fundamental a organização do discuros para que ele se adeque a artificialidade da ocasião. 

Para terminar, e voltando à igreja, valeria a pena a leitura de um precioso documento do padre Antônio Vieira ( 1608 – 1697 ) intitulado ‘Sermão da Sexagésima’, onde ele apresenta o seguinte problema: ‘se a palavra de Deus é tão eficaz e tão poderosa, como vemos tão pouco fruto da palavra de Deus?’. Vieira irá dizer que é dever do pregador reunir certas ferramentas fundamentais para se fazer entendido, e, assim, tocar o coração da audiência. O conteúdo é condicionado pela forma, e não o inverso. Portanto, o problema não está no ‘o quê’  dizer, mas sim, e essencialmente, no como! Com arte procede o mesmo.



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Almas Abaixo de Zero, ou quando a consciência nos congela...


 O médico é uma espécie de derrotado resignado, sabe que vai perder. A morte lhe é um adversário inapelável, um destino concreto, inevitável e irreversível. Por outro lado existem os poetas, gente que habita terreno diverso ao do diagnóstico dos sintomas orgânicos, antes dedicando-se à substância imaterial da alma, das ideias que não carecem de prazo, e, por isso mesmo, inventando eternidades desafiadoras ao perecível. Tchekhov foi ambos: médico e dramaturgo, combinando dois departamentos aparentemente contraditórios, que, talvez, servissem um de antídoto ao outro. Ao peso da existência perene, uma dose de criação literária já seria um alento às durezas do tempo, alforriando através da poesia as dores do sofrimento que aos não foi dada a sorte de poder escapar. Nada mais falso, porém. É do médico Astrov, um dos personagens da peça ‘Tio Vânia’, a famosa frase que desmonta o nosso argumento, dizendo: será que seremos lembrados daqui a cem anos?

No conto ‘Enfermaria número 6’ há outro médico, personagem também criado por Tchekhov, que depois de haver cuidado de tantos doentes mentais, acaba ele próprio, agente da cura, internado no lugar de seus pacientes. E termina a vida ali, trancafiado e vítima dos seus esforços por tentar melhorar a saúde do próximo. O autor russo parece-nos dizer com sua obra que há uma doença fundamental a assolar o homem para além das mazelas do corpo, e esse mal se chama consciência. Sendo o poeta alguém que necessariamente presta atenção mais cuidadosa às inquietações do humano, não seria leviano afirmar que é característica dele, artista, reunir em si uma visão privilegiada sobre o conjunto de motivações que fazem de nós sermos quem somos. E é nesse ponto que Tchekhov assume sua impotência, fazendo dela, justamente, o assunto primordial de sua obra. É impossível consertar o homem, dar-lhe saúde, reverter essa contradição que o mostra como alguém digno de respeito, mas, no fundo, age conforme o teatro do mundo o convoca a agir. A consicência é paralisadora, e é nesse solo de paralisia onde afundam as personagens tchekhovianas, bem como o próprio autor.

O espetáculo ‘Almas Abaixo de Zero’, levado ao parque Vicentina Aranha como parte da programação do Festivale, traz ao público uma linda poesia encampadora das questões apontadas acima. A Cia O Teatro da Cidade, grupo já bastante tradicional de São José dos Campos, empresta de Tchekhov o assunto da consciência sobre o próprio percurso, e, após décadas de pesquisa , abre de maneira delicada e generosa um espaço para a pergunta fundamental: será que não somos nós, poetas do palco, impotentes frente ao mundo? Uma versão bastante calibrada do que Astrov diz ao deliberar sobre o futuro dos que virão depois de nós.

Evidentemente que o perigo é tornar essa premissa um tanto quanto auto-referente, obrigando o espectador a integrar parte em uma terapia de grupo. Mas não há arte sem risco, e esse fio tênue entre quem eu sou – e o que devo mostrar de mim –, e o como eu escolho sumir para dar passagem à obra – é nesse intervalo, enfim, que o espetáculo se mostra brilhante, integrando a todos numa espécie de elegia melancólica da dor, da incapacidade que nos ronda em virtude de uma consciência desperta, sem com isso cair em qualquer pieguice melodramática.

O espetáculo termina com os atores preferindo o seguinte saldo final encontrado por Tchekhov: faça o bem. E o autor russo definitivamente o fez. Hoje, nós, os que vieram depois dele (e mais de cem anos depois!), não só lembramos de suas personagens, como também nos emprestamos de corpo e alma a elas. Foi o que fizeram os excelentes artistas dessa Cia, que deve ser não lembrada pelos habitantes da cidade, mas frequentada, visitada, constantemente motivo de orgulho por fazer da arte um motivo de encontro diário, ainda que seja para cantar de forma tão lírica a dor.


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sábado, 13 de setembro de 2014

Sananab


A máscara é o elemento emblemático que caracteriza a natureza humana. Somos tão adeptos dela que a vestimos em todos os instantes da vida sem disso fazer cerimônias. Somos mascarados por consciência desenvolvida, por necessidade de sobrevivêcia. Fôssemos nós portadores de rostos limpos naufragaríamos na primeira esquina!  Quem suportaria os arroubos da sinceridade espontânea? Falássemos sempre o que nos passa ao coração e o destino mais certo seria a mais completa exclusão do perímetro social. Como um grande teatro que vive por conveniências e encenações programadas, a vida sustenta-se nessa escala de hipocrisias e fingimentos. O ator é o emblema poético disso: sabe que finge, e é ainda melhor quando convence os outros de que o seu fingimento é sincero, genuíno. Há aqui, portanto, outra qualidade digna de realce: em matéria de arte, gostamos e desejamos o engano! Queremos a toda custa acreditar nas mentiras que nos contam.

Se o personagem é a máscara que cabe ao ator, o ator que interpreta um palhaço como personagem experimenta uma curiosa qualidade de caráter, formando ao redor da sua figura (portadora de um nariz falso!) uma moral translúcida, incapaz de mentir. Invejamos o palhaço porque ele é a reprodução literal de uma consciência precária, ainda pouco desenvolvida nas artimanhas da sobrevivência. O palhaço é essa entidade pura que a tudo reage sem julgamentos críticos ou a certeza de que suas ações sofrerão reprimendas e censuras. O palhaço tem a mesma alma da criança, dos loucos, dos velhos senis, daqueles, enfim, que margeiam o trilho da normalidade. São, portanto, todos belos e cândidos, mas  muitas vezes também cruéis e sombrios, dinamitando a ideia moralmente aceita de que há um limite entre o bom e o mau. Não há espaços aqui para essa praga de comportamento inspirada no politicamente correto.   

O solo do palhaço Bisgoio no espetáculo ‘Sananab’, trabalho levado ao Festivale pela Cia Pé de Chinelo, é algo incrível de se testemunhar exatamente por legitimar as impressões apontadas acima. Através de uma sequência de números simples, mas nem por isso destituídos de lirismo e beleza, o ator estabelece um contato direto com a plateia ao defender a esperteza dessa criatura entalhada unicamente na ingenuidade. O mundo do palhaço Bisgoio, parece, não é o mundo do futuro, das especulações, tampouco da narrativa estruturada. Tudo o que é feito é feito aos pedaços, em domínios reduzidos, havendo como intuito único satisfazer a uma necessidade que lhe é imediata, e, assim, dar-nos também uma outra e importante lição: a de que o nosso baú repleto de máscaras complexas quase sempre nos afasta do tempo presente, daquilo que não conseguimos ser porque o esforço é imaginar o que ainda não pode existir.

Em tempos de acúmulo de tudo: posses, dinheiro, expectativas, sonhos e projetos, o Festivale brinda o espectador com um verdadeiro espetáculo de talento onde não há nenhuma pirotecnia, onde o vazio e os poucos recursos cênicos estão a serviço dessa outra máscara mais essencial, a que revela tudo sem nada esconder.




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O Teatro Lambe-Lambe, o Pequeno Grande Teatro.


Alguém por favor me responda: como pode existir quem prefira sentar-se logo na primeiríssima fileira do teatro, colar o nariz no procênio e desprezar a visão completa da moldura da boca de cena? Essa proximidade do palco, dizem os adeptos da miopia forçada, permite uma visão mais detalhada da expressão dos atores, chance única de flagrar a emoção aflorando logo ali, a alguns palmos de distância. Mas ainda assim não me convenço, ou melhor, quem disse que há somente essa emoção, a da psicologia das entranhas, músculo interno trabalhando a todo vapor até que as lágrimas desçam rolando aos borbotões? Convoco o leitor a pensar que existe um outro tipo de emoção, uma que não depende da individualidade ampliada em lentes de zoom, ao contrário, uma outra emoção da distância, a do reconhecimento da estrutura arquitetônica da caixa mágica do teatro.

‘O Teatro Lambe-Lambe, o Pequeno Grande Teatro’, trabalho levado ao Festivale pela Cia Mala Caixeta, monta na praça pública uma estrutura de três caixas independentes e apoiadas cada uma num tripé, que, em miniatura, reproduzem réplicas de teatros antigos nos mesmos moldes dos teatros de ópera, arquitetura semelhante também a dos teatros municipais de São Paulo e Rio de Janeiro. Cada espectador em sua vez, então, é convocado a sentar-se diante de uma das caixas-teatro e literalmente a enfiar o nariz e olhos numa abertura frontal. Do outro lado há o operador da engenhoca, pronto a dar início a uma animação que reproduz, outra vez figurativamente, o enredo de três diferentes adaptações literárias: O Guarani, Vidas Secas e Os Lusíadas.

Mas o fato interessante não está tanto no desenvolvimento das narrativas, às vezes, inclusive, beirando a redundância ao conferir às animações mera  função de figuração, ao invés de serem elas próprias, ao contrário, não o recheio, mas o motor condutor de uma trama figurativa.  No entanto, por outro lado,  essa interessante e criativa intervenção em praça pública permite ao espectador posicionar-se visualmente no mesmo campo de alcance de quem está sentado num camarote de um desses teatros clássicos, tendo a chance de observar frontalmente as belezas entalhadas na moldura da caixa cênica. Isso não é pouco, aliás, já é bastante! Oferecer ao público comum, muitas vezes composto por gente que nunca antes pisou num teatro, a sensação de mistério que o ambiente de uma sala dessas promove em quem nela adentra, já é cumprir com uma preciosa missão educativa. E volto a dizer: o teatro é também um solo onde a magia estética está fortemente vinculada ao mistério da poesia. Sentar-se numa plateia lotada, experimentar a ansiedade pelo início do espetáculo ao escutar os três sinais sonoros, imaginar o que há por trás das cortinas fechadas... Enfim, o espetáculo, nessas ocasiões, começa antes do espetáculo, e faz do teatro enquanto edifício arquitetônico uma parte importantíssima e agregadora da poesia dramática. Da próxima vez que for assistir a uma peça teatral, caro leitor, experimente sentar-se longe do palco, prestando atenção na beleza que é reconhecer tudo como se fosse uma caixinha de música. A distância também comunica!


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A Nau dos Desterrados


Os loucos! Dêem passagem aos loucos! Náufragos desordeiros entregues ao desejo de saciar os instintos mais primitivos. Nessa embarcação sem lei nenhum código moral resiste aos anseios do corpo. Curioso instante esse em que navegávamos sem rumo e ainda refratários ao peso de ter de prestar contas à terra firme e suas convenções. Éramos livres! A ausência completa de vínculos, o deixar-se simplesmente levar pelo movimento das ondas, eis aí um tempo de devaneio perdido, há muito abandonado pela racionalidade. As iluminações do espírito seguidas das abstrações intangíveis ao ato de pensar lançaram âncora então. Àquilo que se tocava, sentia e vivia coube passagem à fumaça crítica dos sábios das academias, ao pensamento especulativo , e chegamos, portanto, ao terreno das teorias do quadro negro. O extase festivo por celebrar os prazeres da carne é outra coisa, não necessita de qualquer justificativa, é ele próprio um ato revolucionário sem equações a respeitar. A festa nada quer dizer, ela é festa porque se contenta em celebrar, implodindo hierarquias, rompendo fronteiras, e recuperando, enfim, o sentido dionisíaco da orgia, um permitir-se abandonar com a multidão e comungar de sua alegria.

O que vimos no espetáculo ‘A Nau dos Desterrados’ é a prova cabal de que teatro é também comunhão, aldeia formada na rua e sem mediações outras senão a do convite sedutor do artista popular que com sua graça simples e potente faz da plateia massa de celebradores, e, juntos, inventam um sedutor intervalo de subverção instaurado pelo rito da festa. O mito não sobrevive sem rito, e o conjunto inspirado de atores formadores da Cia de 2 aproveita isso na essência. Tudo é dionisíaco nessa proposta de acompanhar a história de piratas que aportam na terra de Cabral. A bebida, a música, a dança, os apelos sexuais e eróticos, todos elementos fundadores do teatro lá atrás, na Grécia antiga. Muito antes da ‘institucionalização’ das convenções cênicas dentro das arenas o teatro era exatamente o que pudemos experimentar numa noite fria de São José dos Campos: o contato humano em sintonia com o prazer de romper com as fronteiras ordinárias de uma vida civilizada, completa carnavalização onde os papéis de cidadãos ordeiros podem descançar em merecidas férias.

Acerta o Festivale ao incluir em sua programação um espetáculo dessa qualidade, seja porque os tempos nos indicam uma falsa ideia de liberdade de expressão, vigiada bem de perto pelos arautos invisíveis da opinião pública, fiscais do politicamente correto, seja porque - e talvez aí uma razão mais ainda fundamental -, é dever do teatro não perder nunca o seu contato com a praça, com o público, desmistificando assim que o artista é coisa especial, distante das suas origens gregárias.

O filósofo mediaeval Erasmo de Roterdã (1466 – 1536), em seu famoso tratado ‘Elogio da Loucura’ , faz um lindo e pertinente manifesto em favor de todos esses malucos que sobrevivem à margem dos perímetros legais da sociedade, dentre eles os artistas. Graças a Deus, ou melhor, a Dionísio, que ainda sobram entre nós alguns que levam ao pé da letra o sentido de praticar a mais completa das transgressões, qual seja, a de promover o desequilíbrio entre as faculdades mentais elevadas, ainda que seja durante um breve instante – e melhor ainda! -, num momento de alegria e festa!

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sexta-feira, 12 de setembro de 2014

De onde vêm as histórias de Clarice?


Perder uma história é perder o sentido de viver. Se há alguma vantagem em ser quem somos ela está no fato de termos a sorte e audácia de poder fugir da vida para reencontrá-la nesse terreno mais fundamental que é a imaginação. Mas para isso é preciso exercitá-la, ter a coragem de acionar as válvulas da criatividade, inventar personagens impossíveis, descobrir outras cores para outros universos, fazer do inanimado organismos despertos, cantar músicas para que o vento as sopre ao longe sem desejos de retorno. Mas também é perigoso e arriscado semear esse solo do impossível, afinal, se tudo está por ser criado, quantas não são as tentações por desistir de tanto esforço e deixar-se levar pelo pavimento da realidade, todo ele já pronto para que o fluxo da vida seja cumprido sem maiores percalsos ou suores desnecessários?

O espetáculo ‘De onde vêm as histórias de Clarice’, levado ao palco do teatro Dailor Varela durante a programação do vigésimo nono Festivale, é uma verdadeira pérola lapidada com extremo cuidado e talento pelos excelentes artistas do grupo de Teatro Tecelagem. A peça inicia-se com as lágrimas de uma menina de nome Clarice, triste por haver perdido a história de seu cachorro. A partir de então, e recorrendo às histórias infantis da escritora Clarice Lispector, a empreitada reúne ao redor da protagonista três outros personagens que a ajudarão a inventar uma nova fábula para o seu animalzinho de estimação. Outros bichos inscritos na literatura de Lispector entram em cena para tentar explicar os mecanismos de construção de de suas próprias histórias, fazendo das personagens detetives em busca de uma solução criativa ao dilema da menina.

Assistir a bom teatro significa também prestar atenção à qualidade de interesse da plateia. E lá estava ela, formada em quase sua totalidade por crinaças vidradas na performance de artistas que transitavam com naturalidade entre narrativa, cenas dramáticas e números musicais lindamente executados. O gurpo soube muito bem lidar com a simplicidade dos recursos cênicos para fazer disso o sentido último da mensagem já apontada no início do texto: inventar é coisa simples, basta botar a cabeça para funcionar e ter certa dose de paciência e interesse. A criança, ainda não contaminada pelas responsabilidade da fase madura, compreende a lição oferecida, entregando-se completamente ao prazer de desfrutar de tantas brincadeiras contidas no espetáculo.

Às vezes paira um certo preconceito dos adultos com relação a esse gênero de teatro destinado às crianças, eu mesmo, admito, apresento-me como um desses apregoadores da maturidade dos discursos da cena. Mas, de fato, os mentecaptos somos nós, eu como presidente do clube, que desmancham tamanha prepotência com um simples abrir de cortinas, quando algo de qualidade inequívoca toma conta do palco. Aí não importa ser ou não criança. Aliás, reconheço agora, talvez seja inveja profunda, ou, então, tristeza em saber que o tempo não volta para trás.  



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