domingo, 14 de setembro de 2014

Almas Abaixo de Zero, ou quando a consciência nos congela...


 O médico é uma espécie de derrotado resignado, sabe que vai perder. A morte lhe é um adversário inapelável, um destino concreto, inevitável e irreversível. Por outro lado existem os poetas, gente que habita terreno diverso ao do diagnóstico dos sintomas orgânicos, antes dedicando-se à substância imaterial da alma, das ideias que não carecem de prazo, e, por isso mesmo, inventando eternidades desafiadoras ao perecível. Tchekhov foi ambos: médico e dramaturgo, combinando dois departamentos aparentemente contraditórios, que, talvez, servissem um de antídoto ao outro. Ao peso da existência perene, uma dose de criação literária já seria um alento às durezas do tempo, alforriando através da poesia as dores do sofrimento que aos não foi dada a sorte de poder escapar. Nada mais falso, porém. É do médico Astrov, um dos personagens da peça ‘Tio Vânia’, a famosa frase que desmonta o nosso argumento, dizendo: será que seremos lembrados daqui a cem anos?

No conto ‘Enfermaria número 6’ há outro médico, personagem também criado por Tchekhov, que depois de haver cuidado de tantos doentes mentais, acaba ele próprio, agente da cura, internado no lugar de seus pacientes. E termina a vida ali, trancafiado e vítima dos seus esforços por tentar melhorar a saúde do próximo. O autor russo parece-nos dizer com sua obra que há uma doença fundamental a assolar o homem para além das mazelas do corpo, e esse mal se chama consciência. Sendo o poeta alguém que necessariamente presta atenção mais cuidadosa às inquietações do humano, não seria leviano afirmar que é característica dele, artista, reunir em si uma visão privilegiada sobre o conjunto de motivações que fazem de nós sermos quem somos. E é nesse ponto que Tchekhov assume sua impotência, fazendo dela, justamente, o assunto primordial de sua obra. É impossível consertar o homem, dar-lhe saúde, reverter essa contradição que o mostra como alguém digno de respeito, mas, no fundo, age conforme o teatro do mundo o convoca a agir. A consicência é paralisadora, e é nesse solo de paralisia onde afundam as personagens tchekhovianas, bem como o próprio autor.

O espetáculo ‘Almas Abaixo de Zero’, levado ao parque Vicentina Aranha como parte da programação do Festivale, traz ao público uma linda poesia encampadora das questões apontadas acima. A Cia O Teatro da Cidade, grupo já bastante tradicional de São José dos Campos, empresta de Tchekhov o assunto da consciência sobre o próprio percurso, e, após décadas de pesquisa , abre de maneira delicada e generosa um espaço para a pergunta fundamental: será que não somos nós, poetas do palco, impotentes frente ao mundo? Uma versão bastante calibrada do que Astrov diz ao deliberar sobre o futuro dos que virão depois de nós.

Evidentemente que o perigo é tornar essa premissa um tanto quanto auto-referente, obrigando o espectador a integrar parte em uma terapia de grupo. Mas não há arte sem risco, e esse fio tênue entre quem eu sou – e o que devo mostrar de mim –, e o como eu escolho sumir para dar passagem à obra – é nesse intervalo, enfim, que o espetáculo se mostra brilhante, integrando a todos numa espécie de elegia melancólica da dor, da incapacidade que nos ronda em virtude de uma consciência desperta, sem com isso cair em qualquer pieguice melodramática.

O espetáculo termina com os atores preferindo o seguinte saldo final encontrado por Tchekhov: faça o bem. E o autor russo definitivamente o fez. Hoje, nós, os que vieram depois dele (e mais de cem anos depois!), não só lembramos de suas personagens, como também nos emprestamos de corpo e alma a elas. Foi o que fizeram os excelentes artistas dessa Cia, que deve ser não lembrada pelos habitantes da cidade, mas frequentada, visitada, constantemente motivo de orgulho por fazer da arte um motivo de encontro diário, ainda que seja para cantar de forma tão lírica a dor.


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