Peço licença ao leitor para transformar o que seria uma
crítica em crônica, trocar o olhar impessoal pela afetividade da primeira
pessoa do singular. Culpa do teatro, que, ao invés de instaurar um afastamento
capaz de permitir especulações racionais – exigência típica dos bancos da
academia -, e quando tratado com respeito ao público, aproxima, tornando-nos
cúmplices e apaixonados pelo trabalho dos artistas da cena. Se incorro em
prejuízos evidentes por um lado, empobrecendo as minúcias de uma abordagem analítica,
ganho de outro, evocando certa aura poética que atravessa-me como atravessa a
todos que se deixam apaixonar. Vamos
então às sensações.
Contrário à tendência do ator contemporâneo que se mostra
fiel a sua imagem, imbuído em revelar-se até os âmagos da intimidade, sou especialmente
atingido por esse outro ator, o que se permite sumir, que aposta na
invisibilidade da própria fisionomia para abrir passagem à personagem, entidade
que se concretiza para além do recorte individual do interprete. A ideia é
mesmo paradoxal. A exposição está lá como matéria bruta, corpo presentificado,
mas por intermédio de um interior vazio de subjetividade e disponível somente
ao preenchimento do jogo a ser inventado naquele exato instante onde tudo
acontece.
Nesse tipo de teatro, é como se lembrássemos que a função
primeira do artista do palco não é outra senão a de mentir (hipocritar, como
bem traduz o dicionário Aurélio), a fim de fingir ser quem não se é, e, a
partir dessa premissa lúdica que impede a imposição de uma identidade
reconhecível fora da escala poética, alterar as dimensões do tempo, fazer da
sala de espetáculo um terreno extraordinário, nada cotidiano, e pouco aberto ao
ímpeto de conferir sentimentos adequados ao sentir dos homens reais. O teatro
tem também essa preciosa função: fugir do real e jogar luz ao indecifrável
misterioso.
O espetáculo ‘O Bosque Encantado’, levado à cena pela
Pandora Teatro, recupera as tradições lendárias de Esopo, o famoso fabulista, e
conta a história de um punhado de bichos
que se traveste de fantasmas para expulsar os intrusos homens,
gananciosos por fazer do espaço da morada dos animais um terreno de lucro. Mas o
encantamento está menos na trama e mais no formato de como é narrada: através
de bonecos articulados por manipuladores invisíveis.
Tudo é falso, tudo é artificioso, e, ainda assim – e talvez
exatamente por isso -, recheado de sinceridade poética. Ao final da
apresentação, depois da vitória dos bichos, e cumprindo assim com a moral
existente ao término das fábulas, os manipuladores abrem a caixa preta de onde
mantinham-se escondidos da platéia e convidam os espectadores a adentrarem
pelas ferragens do espaço. Os bonecos pendurados em varais, visíveis em suas
estruturas de manipulação, curiosamente, não desmancham qualquer ilusão daquilo
que antes havia sido presenciado. Ao contrário, parece que ganha-se interesse
ainda maior ao poder tocar no látex inanimado dos bichos, em saber que tudo não
passa de truque, e em como ele é realizado.
Huizinga, filósofo holandês (1872 - 1945) dizia que o ser
humano é antes de tudo um homo-ludens, ao invés do sapiens pensante a que
acostumamos valorizar. Temos o jogo por prática e princípio, e muito antes de
saber-nos racionais e lógicos. E talvez esteja aí o prazer de atravessar o
outro com uma verdade mais essencial do que verídica, essa que deposita no
simbólico mostrado como tal o sentido último da comunicação.
Há uma classificação etária dizendo que ‘O Bosque Encantado’
é um espetáculo destinado ao público infantil. E é verdade, mas unicamente por
demérito dos adultos, que, diferente das crianças, tem por hábito a teimosia de
enferrujar o imaginário.
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