quarta-feira, 10 de setembro de 2014

O Bosque Encantado



Peço licença ao leitor para transformar o que seria uma crítica em crônica, trocar o olhar impessoal pela afetividade da primeira pessoa do singular. Culpa do teatro, que, ao invés de instaurar um afastamento capaz de permitir especulações racionais – exigência típica dos bancos da academia -, e quando tratado com respeito ao público, aproxima, tornando-nos cúmplices e apaixonados pelo trabalho dos artistas da cena. Se incorro em prejuízos evidentes por um lado, empobrecendo as minúcias de uma abordagem analítica, ganho de outro, evocando certa aura poética que atravessa-me como atravessa a todos que se deixam apaixonar.  Vamos então às sensações.

Contrário à tendência do ator contemporâneo que se mostra fiel a sua imagem, imbuído em revelar-se até os âmagos da intimidade, sou especialmente atingido por esse outro ator, o que se permite sumir, que aposta na invisibilidade da própria fisionomia para abrir passagem à personagem, entidade que se concretiza para além do recorte individual do interprete. A ideia é mesmo paradoxal. A exposição está lá como matéria bruta, corpo presentificado, mas por intermédio de um interior vazio de subjetividade e disponível somente ao preenchimento do jogo a ser inventado naquele exato instante onde tudo acontece.

Nesse tipo de teatro, é como se lembrássemos que a função primeira do artista do palco não é outra senão a de mentir (hipocritar, como bem traduz o dicionário Aurélio), a fim de fingir ser quem não se é, e, a partir dessa premissa lúdica que impede a imposição de uma identidade reconhecível fora da escala poética, alterar as dimensões do tempo, fazer da sala de espetáculo um terreno extraordinário, nada cotidiano, e pouco aberto ao ímpeto de conferir sentimentos adequados ao sentir dos homens reais. O teatro tem também essa preciosa função: fugir do real e jogar luz ao indecifrável misterioso.  

O espetáculo ‘O Bosque Encantado’, levado à cena pela Pandora Teatro, recupera as tradições lendárias de Esopo, o famoso fabulista, e conta a história de um punhado de bichos  que se traveste de fantasmas para expulsar os intrusos homens, gananciosos por fazer do espaço da morada dos animais um terreno de lucro. Mas o encantamento está menos na trama e mais no formato de como é narrada: através de bonecos articulados por manipuladores invisíveis.

Tudo é falso, tudo é artificioso, e, ainda assim – e talvez exatamente por isso -, recheado de sinceridade poética. Ao final da apresentação, depois da vitória dos bichos, e cumprindo assim com a moral existente ao término das fábulas, os manipuladores abrem a caixa preta de onde mantinham-se escondidos da platéia e convidam os espectadores a adentrarem pelas ferragens do espaço. Os bonecos pendurados em varais, visíveis em suas estruturas de manipulação, curiosamente, não desmancham qualquer ilusão daquilo que antes havia sido presenciado. Ao contrário, parece que ganha-se interesse ainda maior ao poder tocar no látex inanimado dos bichos, em saber que tudo não passa de truque, e em como ele é realizado.

Huizinga, filósofo holandês (1872 - 1945) dizia que o ser humano é antes de tudo um homo-ludens, ao invés do sapiens pensante a que acostumamos valorizar. Temos o jogo por prática e princípio, e muito antes de saber-nos racionais e lógicos. E talvez esteja aí o prazer de atravessar o outro com uma verdade mais essencial do que verídica, essa que deposita no simbólico mostrado como tal o sentido último da comunicação.

Há uma classificação etária dizendo que ‘O Bosque Encantado’ é um espetáculo destinado ao público infantil. E é verdade, mas unicamente por demérito dos adultos, que, diferente das crianças, tem por hábito a teimosia de enferrujar o imaginário.




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