Se a sombra fala, qual é a voz que a sombra tem? Uma boneca
feita de pano ganha vida, pois que qualidade de vida é essa que fora do palco
eja jamais poderia ter? O mesmo vale para os atores. Se o teatro é esse solo do
impossível tornado possível, a mera transposição da vida para o palco não
garante que haja interesse em testemunhar uma reprodução daquilo que se conhece
como natural fora dele. O que quero dizer é que a brincadeira poética é
necessariamente uma outra brincadeira, processada, ampliada, concentrada e
tingida de cores exuberantes. O humano também é outro humano, em nada parecido
com o tonos descontraído de quem acostuma-se a viver porque não há outra saída
senão continuar vivendo. Muito pelo contrário! O teatro surge como uma potência
desafiadora do ordinário, revolucionário em seus princípios festivos, e ainda
assim capaz de mover plateias em sua pretensão de fundar universos
paralelos. O palco não admite a
contingência do fluxo da vida, alocando em suas fronteira as figuras que na rua
transparecem interesse. Tudo, absolutamente tudo que o palco revela, é fruto de
um recorte essencial, forjado em formas artificiais, estudadas, articuladas e
colocadas à prova.
Talvez essa seja a fragilidade do espetáculo ‘Lili – uma
história de afeto e amizade’, levado ao teatro Dailor Varela pela Cia Cubo
Cênico. A boneca que ganha independência reconta a fábula de Pinóquio,
cumprindo uma trajetória de encontros com outros bonecos em igual condição, que
a ensinará os valores caros à amizade, a aceitação das diferenças, enfim, ao
verdadeiro sentido do amor. Independente da estrutura dramatúrgica, haveria que
se ter um cuidado mais refinado com a forma de se contar a história, entendendo
as particularidades de contracenar com sombras, bem como experimentar
diferentes qualidades de presença corporal e vocal, tudo isso de modo a vazar
para a plateia essa tal força poética que, parece, restringe-se ao perímetro
demarcado pelo palco.
Às vezes é preciso prestar atenção também à plateia, ao
registro de força que emana de um contingente de adolescentes sedentos por algo
potente, desmesurado, fora das regras tão defendidas por um sistema de coerções
que existe em cada esquina fora do teatro. Se o teatro surge da loucura, a
loucura – ainda que remodelada ao abandonar o espaço rural das Dionisíadas para
o urbano dos teatros gregos – continua lá, latente como elemento de contágio. É
isso! Contágio! Como produzir doenças, infecções, contaminações capazes de
atravessar o espectador, deixá-lo de cama, atônito? Talvez a cura, nesse
contexto, seja coisa de menor importância. Que tal pensarmos que o teatro que
fazemos hoje em dia é pouco disseminador de vírus? Ou, então, que a nossa saúde
pouco ou quase nada imprime em matéria de inspiração para dar conta de fazer do
palco algo digno de interesse?
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