Um grupo de atores reune-se para tratar poeticamente de algo
sensível a cada um de seus integrantes, revivendo aos olhos dos espectadores as
ruínas abandonadas de uma fábrica de cimento que no passado fora responsável
pelo progresso da comunidade do bairro de Perus, em São Paulo, bem como da
cidade como um todo. O tempo e o seu inapelável movimento de nos deixar para
trás, agarrados ao que éramos, às vezes cobrando um retorno doloroso quando a
lembrança já não significa experimentar a doce sensação da saudade, senão um
caminho de avaliação onde faz-se necessário considerar aquilo que hoje, de
posse da consciência crítica, acabamos por nos tornar. Somos, afinal de contas,
vítimas ou responsáveis por aquilo que alimentamos na esperança de crescer na
medida em que os anos transcorrem? Esse não é um tema pouco trabalhado na
dramaturgia, seja ela nacional ou estrageira. Se temos Tchékhov (1860-1904)
como representante maior da condição que entrega ao homem a certeza da sua
natureza temporal, aqui, no Brasil, Jorge Andrade (1922-1984) não foi menos
talentoso na empreitada, aparecendo como um digno exemplo que escarafunchou as
memórias da qual somos herdeiros, transformando as personagens criadas em
emblemas de uma tragédia tão lírica quanto difícil de engolir. Joaquim,
protagonista de ‘A Moratória’ insiste em repetir: ‘Nós somos o que fomos’,
cegando os olhos para a derrocada iminente de uma geração inteira onde o valor
sentimental da terra ainda valia mais do que a especulação financeira dos
capitalistas emergentes. O que vimos ontem no Centro de Estudos Teatrais com a
peça ‘Relicário de Concreto’, espetáculo levado à cena pelo Grupo Pandora, toca
nas mesmas teclas apontadas. Moradores
da região onde a fábrica de cimento sediou atividade, o conjunto de jovens
atores trabalha para fazer do palco um filtro de memórias e recordações
daqueles que sentiram na pele a mistura um tanto contraditória entre crescimento
e força de trabalho, enveredando por uma temática cujo objetivo claramente é o
de questionar qual o preço envolvido na ideia de prosperar a todo custo. Se há
um risco evidente de eleger vilões e heróis, ou melhor, exploradores e
explorados – e assim diminuir o alcance das proposições -, o grupo de certa
maneira esquiva-se desse maniqueísmo didático ao navegar por caminhos estéticos
onde o texto torna-se poroso ao compasso das cenas, diluindo o grosso das
mensagens ideológicas em uma criativa utilização do espaço, recurso que dá
margem a um bom jogo de composição entre os artistas. O empilhamento constante
de cubos feitos à imagem de blocos de concreto - ora sendo transportados
aleatoriamente de um canto a outo num esforço inútil, ora virando plataforma
para o desfile da personagem que se faz de chefe dos empregados -, esclarece
que, para além do que é dito como discurso político, existe necessariamente um
vazio fundamental instaurado dentro de cada um de nós, sensação reforçada ainda
mais pelo personagem do vigia do galpão da fábrica, figura que entrecorta o
fluxo das ações assumindo o papel de narrador, espécie de arauto da
desesperança, vagando entre sombras que nada prometem, senão reforçar aquilo
que de fato somos: espectros cansados, almas sem muita substância depois de
havermos acreditado em futuros a nós vendidos como certos e seguros. O filósofo
Ortega Y Gasset (1883 – 1955), em seus escritos, dizia que o homem tem por
curiosa qualidade ser um fabricador de ruínas, que para erigir novas
edificações em suas cidades modernas precisa, necessariamente, destruir tantas
outras, antigas. A mensagem que fica depois de havermos assistido ao trabalho
que compõe agenda no 29o Festivale, é a de que talvez as ruínas também aparecem
como atributo indissociável da alma que nos compete, constituindo uma essência
de vazios que acabam por serem agregados à curta história de nossas vidas, e
ainda que não queiramos, hora ou outra as suas sombras hão de se projetar sobre
nós. Cumpre ainda dizer que há um perigo em tratar a metáfora, ferramenta
típica da linguagem poética, a partir de um viés deveras concreto, afastando o
espectador de uma possível fruição ideal daquilo que lhe é oferecido como
apreciação. A utilização do pó de cimento é um evidente risco a isso que
dizemos, muitas vezes irritando a garganta e os olhos dos espectadores por
conta de uma manipulação feita pelos atores, ao invés de ser ele um elemento
potente para fazer passar a torrente de sensações de um tempo progresso.
Chico Carvalho
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