terça-feira, 9 de setembro de 2014

Haja tanto cimento... e para tão pouco.



Um grupo de atores reune-se para tratar poeticamente de algo sensível a cada um de seus integrantes, revivendo aos olhos dos espectadores as ruínas abandonadas de uma fábrica de cimento que no passado fora responsável pelo progresso da comunidade do bairro de Perus, em São Paulo, bem como da cidade como um todo. O tempo e o seu inapelável movimento de nos deixar para trás, agarrados ao que éramos, às vezes cobrando um retorno doloroso quando a lembrança já não significa experimentar a doce sensação da saudade, senão um caminho de avaliação onde faz-se necessário considerar aquilo que hoje, de posse da consciência crítica, acabamos por nos tornar. Somos, afinal de contas, vítimas ou responsáveis por aquilo que alimentamos na esperança de crescer na medida em que os anos transcorrem? Esse não é um tema pouco trabalhado na dramaturgia, seja ela nacional ou estrageira. Se temos Tchékhov (1860-1904) como representante maior da condição que entrega ao homem a certeza da sua natureza temporal, aqui, no Brasil, Jorge Andrade (1922-1984) não foi menos talentoso na empreitada, aparecendo como um digno exemplo que escarafunchou as memórias da qual somos herdeiros, transformando as personagens criadas em emblemas de uma tragédia tão lírica quanto difícil de engolir. Joaquim, protagonista de ‘A Moratória’ insiste em repetir: ‘Nós somos o que fomos’, cegando os olhos para a derrocada iminente de uma geração inteira onde o valor sentimental da terra ainda valia mais do que a especulação financeira dos capitalistas emergentes. O que vimos ontem no Centro de Estudos Teatrais com a peça ‘Relicário de Concreto’, espetáculo levado à cena pelo Grupo Pandora, toca nas mesmas teclas apontadas.  Moradores da região onde a fábrica de cimento sediou atividade, o conjunto de jovens atores trabalha para fazer do palco um filtro de memórias e recordações daqueles que sentiram na pele a mistura um tanto contraditória entre crescimento e força de trabalho, enveredando por uma temática cujo objetivo claramente é o de questionar qual o preço envolvido na ideia de prosperar a todo custo. Se há um risco evidente de eleger vilões e heróis, ou melhor, exploradores e explorados – e assim diminuir o alcance das proposições -, o grupo de certa maneira esquiva-se desse maniqueísmo didático ao navegar por caminhos estéticos onde o texto torna-se poroso ao compasso das cenas, diluindo o grosso das mensagens ideológicas em uma criativa utilização do espaço, recurso que dá margem a um bom jogo de composição entre os artistas. O empilhamento constante de cubos feitos à imagem de blocos de concreto - ora sendo transportados aleatoriamente de um canto a outo num esforço inútil, ora virando plataforma para o desfile da personagem que se faz de chefe dos empregados -, esclarece que, para além do que é dito como discurso político, existe necessariamente um vazio fundamental instaurado dentro de cada um de nós, sensação reforçada ainda mais pelo personagem do vigia do galpão da fábrica, figura que entrecorta o fluxo das ações assumindo o papel de narrador, espécie de arauto da desesperança, vagando entre sombras que nada prometem, senão reforçar aquilo que de fato somos: espectros cansados, almas sem muita substância depois de havermos acreditado em futuros a nós vendidos como certos e seguros. O filósofo Ortega Y Gasset (1883 – 1955), em seus escritos, dizia que o homem tem por curiosa qualidade ser um fabricador de ruínas, que para erigir novas edificações em suas cidades modernas precisa, necessariamente, destruir tantas outras, antigas. A mensagem que fica depois de havermos assistido ao trabalho que compõe agenda no 29o Festivale, é a de que talvez as ruínas também aparecem como atributo indissociável da alma que nos compete, constituindo uma essência de vazios que acabam por serem agregados à curta história de nossas vidas, e ainda que não queiramos, hora ou outra as suas sombras hão de se projetar sobre nós. Cumpre ainda dizer que há um perigo em tratar a metáfora, ferramenta típica da linguagem poética, a partir de um viés deveras concreto, afastando o espectador de uma possível fruição ideal daquilo que lhe é oferecido como apreciação. A utilização do pó de cimento é um evidente risco a isso que dizemos, muitas vezes irritando a garganta e os olhos dos espectadores por conta de uma manipulação feita pelos atores, ao invés de ser ele um elemento potente para fazer passar a torrente de sensações de um tempo progresso.  



Chico Carvalho

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