domingo, 14 de setembro de 2014

Corpos de Fogo, Peles de Anjo

Pense numa igreja. No interior de uma igreja. Pertence a esse espaço dedicado ao sagrado a arquitetura que evoca um silêncio introspectivo. Cada uma de suas partes estruturais ‘falam’ ao público de modo a convidá-lo a ampliar sua atenção para algo que será celebrado como rito. A celebração, do seu início ao fim, é inteiramente ritualizada, frequentando estágios iguais aos que compõem uma narrativa cênica. Perceba que a liturgia é também uma estrutura periférica – assim como a arquitetura – de narrativa. A fé, sentido último da religião, não é algo que se alcança espontaneamente, evocando conteúdos bíblicos de forma aleatória e desorganizada. Não! Assim como um corpo ergue-se porque é recheado por ossos que compõem o esqueleto, a fé não permanece em pé sem que haja um princípio norteador, racional, de orientação das suas instâncias introspectivas. Uma vez descartado esse aspecto fundamental que não só envolve o espaço mas dá a ele sua legitimidade estrutural, os assuntos perdem força, pouco significam. Não há mito sem rito!

O espetáculo ‘Corpos de Fogo, Peles de Anjo’, interpretado pela Cia Teatral Atos & Cenas, reúne no palco um conjunto de textos que evocam a condição da mulher no limite da loucura. A ideia é sem dúvida interessante, mas como fazer dela algo maior do que um punhado de sensações que, juntas, possam dar corpo a algo passível de leitura pelo espectador? A questão que se impõe é nitidamente dramatúrgica, ou seja, a falta de um trilho onde o público tenha condição de acompanhar o que é dito e visto, evitando um completo emaranhado de sensações só experimentado por cada uma das três atrizes em cena.

Assim como ocorre com o exemplo da igreja, o teatro é também um lugar de celebração que compreende uma arquitetura espacial denunciadora da sua função e funcionamento. Vamos ao teatro para ver e ouvir um relato recortado de uma determinada fatia da realidade, talvez exatamente como se observássemos a vida através do buraco de uma fechadura. O que existe dentro dessa moldura diminuta é a concentração de uma realidade, não a realidade esparramada como é a que experimentamos no tempo corriqueiro da vida. Nesse sentido, de pouco adianta fazer do palco um terreno de extravasamento de sentimentos genuínos e caros aos artistas que nele pisam, antes sendo fundamental a organização do discuros para que ele se adeque a artificialidade da ocasião. 

Para terminar, e voltando à igreja, valeria a pena a leitura de um precioso documento do padre Antônio Vieira ( 1608 – 1697 ) intitulado ‘Sermão da Sexagésima’, onde ele apresenta o seguinte problema: ‘se a palavra de Deus é tão eficaz e tão poderosa, como vemos tão pouco fruto da palavra de Deus?’. Vieira irá dizer que é dever do pregador reunir certas ferramentas fundamentais para se fazer entendido, e, assim, tocar o coração da audiência. O conteúdo é condicionado pela forma, e não o inverso. Portanto, o problema não está no ‘o quê’  dizer, mas sim, e essencialmente, no como! Com arte procede o mesmo.



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