quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

VOLPONE.

Um palquinho em cima do palco ocupado por um ator que já é personagem antes de o ser, e, sendo quem já é impossível fingir que não seja, finge quantas personagens souber. Ao cabo de tanto e de tantos, volta, enfim, ao sossego de quem era:

Ninguém.




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Atores deveriam entender de cenografia, de iluminação também. Figurinos e adereços deveriam eles, os atores, saber como são fabricados. Quanto à música, então, os atores deveriam saber ler, tocar e reger - e dançá-la também!... A maquiagem que vai ao rosto deveria ser praticada e conhecida pelos atores. A arquitetura do teatro deveria ser matéria de fundamental interesse para os atores. Os atores deveriam, enfim, saber mais de tudo isso, e saber menos, bastante menos, de personagens.




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Ser ator é ser pela metade, nunca por inteiro
É abrir espaço para um abismo oco, sem preenchimento

É dessa tristeza de que padece o ator
Um saber íntimo de identidade difusa, diluída

Ao ator cabe a certeza de não poder viver plenamente
É um deixar a si próprio para trás
Habitando a estranheza de nunca conhecer quem se é
Havendo já quem seja.



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Eu gosto deveras dos atores. O ator é sempre espetacular. Quando o ator é bom ele é espetacularmente bom. Quando o ator é ruim ele não é só ruim. Ele é espetacularmente ruim. Talvez a profissão do ator seja a única profissão que não mente de jeito nenhum, justamente porque é espetacular, seja de qual forma for.



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segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

O teatro ensina-me uma coisa interessantíssima: a liberdade que tenho de poder existir na plenitude e potência expressivas depende do quão atado estou a conjuntura daquilo o qual pertenço. É como uma síndrome de Segismundo, sou livre e inteiro quando estou condicionado a grilhões formais, concretamente forjados para impedir que eu fuja daquilo que já existe antes de que eu queira por mim existir. A personagem, para mim, engendra essa força catalizadora capaz de anular qualquer desejo de liberdade espontânea; ela é, ao contrário, um esquema bastante evidente de cerceamento do meu livre arbítrio. E é essa limitação que me permite construir um atributo de existência que é produto não de quem eu sou, mas de onde puseram-me a habitar. O corpo da personagem, a voz da personagem, o tempo de caminhar da personagem, a métrica de pensamento da personagem... nada disso sou eu quem busco dentro de mim. Tudo isso me é dado, imposto. E sendo refém de tantas fronteiras, posso, então, reagir. E é só dessa maneira que consigo entender o trabalho do ator. Porque esse mergulho desenfreado para dentro de um eu psicológico afetado soa-me sempre como um exercício de auto-adulação, de alguém que se acha a coisa mais importante que há para se prestar atenção. Penso exatamente assim: o ator é um prisioneiro que se deixa prender para poder existir. E essa prisão é um princípio de anulação, nunca de explicitação de identidades íntimas, memórias pessoais ou lágrimas particulares. A personagem age de forma a sufocar o ator, e não de maneira a fazer com que ele respire. É precisamente esse o paradoxo: para SER é preciso NÃO SER.



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quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Só há uma única razão responsável por fazer o teatro superar qualquer coisa midiatizada: em cima do palco não se terceiriza nada. Na hora H, quem manda ali é o ator e ponto final.



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Perguntaram-me qual era a minha profissão, e eu disse 'sou ator'; e responderam-me 'mas como, se eu nunca te vi?'...

E foi o melhor elogio que tive nos últimos tempos.
 
 
 
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Senhores? Sejamos francos... O teatro sempre será importante e imprescindível. E sabem porquê? Porque o seu filtro de qualidade é ele mesmo, somente por isso. Sobrevive o que é bom. E isso basta para ter alguma esperança na humanidade, e basta também para justificar a sua urgente importância, digo, a urgência de haver teatros com as portas abertas por aí. E se os atores forem ruins, a dramaturgia capenga, e a plateia igualmente tapada? Aí o teatro é ainda mais generoso com o mundo, porque por alguma força misteriosa manipulada pelos fios invisíveis de Dionísio, o próprio teatro dá conta de naufragar a imbecilidade reunida. Não há muito o que enfeitar no teatro. E o enfeite é normalmente o refúgio dos ignorantes. Ou se é um mentecapto declarado e com vida curta, ou há algo a se dizer de interessante. E aí a coisa sobrevive e permanece. Senhores? Sejamos francos, O teatro é um dos últimos refúgios da transparência. Querem melhor razão para aplaudir de pé essa invenção dos gregos?



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sábado, 16 de janeiro de 2016

Senhores? Sejamos francos! O trabalho do ator tem infinitamente mais a ver com a arquitetura - tijolo em cima de tijolo - do que com qualquer matéria que estude o ser humano em sua essência ou intimidade. Shakespeare entende o homem não pelo homem, mas através do solo em que ele pisa. Portanto, senhores!, ainda há tempo de cancelar a terapia e matricular-se num curso de mestre de obras.



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O melhor teatro não mente que não é teatro. O melhor ator não diz verdade nenhuma.



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Quando um ator da imagem diz que volta ao teatro 'para se alimentar' ou coisa do gênero, eu replico:

- E eu vou dar um pulinho na TV ou no cinema só para ver se faço crescer ainda mais as minhas orelhas de asno...



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Queira acertar e você não acerta nadica de nada. Queira fazer a personagem e você não interpreta personagem nenhuma. Queira ser e você já não é. O ofício do ator é mais ou menos como um constante e exaustivo trabalho para sempre estar pronto para não querer nada...


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terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Tudo que é íntimo demais é terreno estrangeiro ao artístico. Ou, caso o objeto de arte em questão seja resultado de alguma intimidade, é porque, sendo arte de genuíno valor, deixou de ser íntimo para virar outra coisa maior do que uma dor pessoal, uma necessidade particular, um preenchimento do eu. Se há loucura no artista - e eu acredito que há, e muita! - é uma loucura estrangeira ao artista, que vaza para o mundo ao grau máximo de anular o seu autor. Há uma confusão generalizada que mistura essa ideia romântica do entregar-se de corpo e alma - como se o ofício do artista fosse um constante exercício de revelação de quem é o artista, do que ele deseja comunicar, das suas ânsias e vocações, das aspirações sensíveis e projeções psicológicas que ele imagina funcionar como matéria fundamental para que haja um sentido e função em ser um artista. Como se ser um artista fosse agir como um canal onde o público converge para o que se passa dentro do artista. Penso exatamente ao contrário. Ser quem se é não é nenhum objeto de busca, tampouco razão ou argumento para reunir plateia ao redor de quem quer que seja. Já somos o que somos, e isso deveria bastar-nos. O esforço é outro, é impedir que eu apareça, que eu respire, que eu exista. E isso para que algo maior apareça, para que algo maior respire, para que algo maior do que eu exista. Se é verdade que o artista parte de uma inquietação íntima - o que eu acho óbvio demais para conjecturar a respeito - é também verdade que o artista deve necessariamente distanciar-se de si próprio, produzir vazios de identidade, cimentar o seu choro e o seu riso. Nossa tragédia contemporânea é uma tragédia do eu-mimado, que não só contenta-se em aparecer em público como, principalmente, faz da sua aparição um objeto de aplauso, de inveja, de admiração por quem ainda não teve coragem de usufruir da mesma terapia de extorsão pela qual sujeita-se cada vez mais aquele que pretende expressar-se.


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sábado, 2 de janeiro de 2016

Um bom texto de teatro te enquadra, nunca te liberta. Um bom ator encontra sempre meios de se enrijecer, nunca o inverso, evitando beirar qualquer espécie de naturalidade. Teatro é o terreno do falso. E todo falso já vem inscrito consigo uma escala bastante evidente de forças tangíveis. Não há metafísica nenhuma no teatro. Há magia. E a mágica é construção concreta, medida, testada e experimentada. O evangelho dos palcos é um só: o pó de pirlim-pim-pim. Todo o resto é a mais retumbante bobagem de quem adora procurar pelo em ovo.


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A personagem está na tensão dos olhos, no valor que se dá as pupilas, em quais medidas se arqueia ou não uma sobrancelha... Tudo é máscara. E Stanislavski era um charlatão de marca maior. Meyerhold me representa.


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Viajo para ficar comigo. Só comigo. A existência ordinária é essa excursão eterna cuja regra é ter de conviver, ter de deixar-se de lado para saciar as exigências do outro. Quando viajo, viajo para mim. Só para mim. Não quero conhecer ninguém, ter de haver com quem quer que seja, dividir verbos, sensações, risos ou choros com outra pessoa que não eu. Não tenho ímpeto nenhum de conhecer gente nova - e por que teria se gente é gente aqui ou acolá, na China ou no Alasca, em qualquer lugar? Viajo para a companhia de mim mesmo, para conversas silenciosas, caminhadas solitárias, paisagens refletidas de mim e que me esqueci de contemplar por descuido ou teimosia. Quando viajo para longe, pouco me importa conhecer a cidade. Ela, a cidade, é só um pequenino pretexto para que eu conheça a mim. Quando viajo, sou como uma orquestra sinfônica que ganha fôlego entre um movimento e outro. A música é a ausência de música quando eu viajo. É pela pausa, pela ausência, como eu entendo o verbo viajar. 

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Convidado por Dom Quixote para sentar-se à mesa do banquete, Sancho diz:

'(...) - Grande honra! - disse Sancho. - mas garanto a vossa mercê que, tendo eu de comer, comeria tão bem em pé e sozinho quanto sentado com um imperador. Ou, para dizer a verdade, saboreio muito melhor o que como em meu canto sem melindres nem cerimônias, mesmo que seja só pão e cebola, do que os perus e outras mesas onde me seja obrigado mastigar devagar, beber pouco, limpar-me seguido, não espirrar nem tossir se tiver vontade, nem fazer outras coisas que a solidão e a liberdade trazem consigo. Então, meu senhor, peço que essas honras que vossa mercê quer me conceder por ser adepto e praticante da cavalaria, sendo eu escudeiro de vossa mercê, sejam substituídas por outras coisas mais cômodas e mais proveitosas para mim. Mesmo que eu receba essas honras de bom grado, renuncio a elas desde já até o fim do mundo. (...)' 

Cervantes.



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