quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

A personagem existe e também não existe. Existe porque é uma função, algo a ser cumprido. Não existe porque personagem nenhuma é psicologia, emoção, coisa abstrata que nos aproxime dela como se ela existisse e coubesse a nós uma aproximação. A personagem existe exatamente para não precisarmos nos ocupar dela, para haver uma distância entre nós e ela. Existe porque a fazemos existir, e existir não para nós, atores, mas para a plateia que a enxerga justamente porque não fazemos questão de enxergá-la. Mas precisamos da certeza de que a personagem existe, porque a personagem é um acontecimento, é verbo, é movimento para adiante. Eliminar essa certeza é fazer do ator o centro do espetáculo, e isso já é apostar numa paciência excessiva da plateia, imaginando que ela saiu de casa para ver quem somos, e não a personagem, o que fazemos, o teatro feito teatro, enfim.


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sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

Uma boa personagem nunca se presta ao desejo de proximidade do ator. A boa personagem sempre está a milhas de distância do ator. E o bom ator é aquele que faz a perfeita manutenção dessa distância.


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Na saída do nosso Boca de Ouro alguém me intercepta no hall do teatro e diz 'que maravilha que é o teatro que não mente que é teatro'. Concordei. E concordei efusivamente. E fui para casa pensando: mas nós mentimos o tempo todo, e descaradamente! O trabalho de composição de uma personagem pede a nós o máximo de recursos para distanciar-nos da vida, da realidade, para dar fôlego aquilo que só é possível debaixo do refletor e só debaixo de um refletor. Mentimos o tempo inteiro, e somos portadores da mentira o tempo inteiro. Então, o teatro que não mente que é teatro é, por princípio, um teatro da mentira. Acho que sim, mas também penso que esse empreendimento de mentir escancara o ator que mente. Assim: ao colocar-se diante do espectador como um perfeito mentiroso, o ator revela-se, senão por inteiro, ao menos nos intervalos em que é preciso tomar fôlego para emendar outra composição de gestos, para ter tempo de subir numa cadeira e colocar a voz no timbre do timbre mentiroso que a personagem o exige. Quem aparece é o ator, e aparece verdadeiramente, sem plágios forjados, na condição de interprete, absolutamente sincero quanto ao seu trabalho de montar e desmontar, talvez como o mágico que mostra os segredos do seu truque antes da execução do truque, e que o executa mesmo assim, e que, ainda assim, angaria olhares de estupefação por parte da audiência. Não é interessante isso? Sem preocupação alguma de simular que não é um fingidor, o ator revela a todo instante a sua condição de mentiroso, e é por aceitar essa condição que o espectador embarca na mentira sabendo que está sendo redondamente enganado. E o ator diverte-se com isso, com essa atenção ingênua do espectador que foi ao teatro para ver teatro, e não a vida - que também é igualmente mentirosa, mas, por orgulho nosso ou fraqueza de espírito, tanto faz, atribuímos verdade ao que já nasceu fadado a canastrice suprema. 
Numa noite dessas, durante o espetáculo, peguei-me de surpresa diante de uma colega minha de cena que contracenava com outro colega nosso de cena. Lá estava eu, diante da cena que não era a minha cena, mas que contemplava o meu olhar de quem está diante da cena. Quem era aquele que olhava? Era eu, ator, olhando para a cena e me divertindo com ela, ou, ao contrário, era a personagem que eu faço que tomava um respiro para aguentar a cena seguinte quando seria eu, ou a personagem, ou os dois juntos, quem ocuparia o centro do palco para dar continuidade a tudo? Qual a porcentagem de eu mesmo comigo mesmo, e qual a parcela que empresto para mentir que eu não sou eu, mas aquele que finjo ser, diante dos olhares alheios? 
Não é curioso que o teatro que não mente que é teatro é justamente esse teatro que dá a chance de não mentir sobre a única razão última do nosso ofício, a dúvida fundamental sobre QUEM RAIOS É ESSE QUE SOU EU NESSE EXATO INSTANTE EM QUE FAÇO ESSA BENDITA PERGUNTA?


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Houve um tempo em que a personagem era uma máscara. O ator era aquele quem respeitosamente oferecia-se para vestir a máscara. Havia uma distância entre o rosto do ator e o objeto-máscara, um pequeno vão de respiro, um espaço mínimo mas fundamental. Misturavam-se, ator e máscara, sem se misturar. Depois, com o passar do tempo, na predominância dos interesses burgueses e das linguagens realistas, o ator entendeu por bem encontrar uma empatia com a máscara, torná-la próxima de si, colar ao rosto aquilo que antes era um objeto independente. Por um interesse apaixonado na personagem, o que era artificial e concreto tornou-se abstrato e íntimo, e também invisível. O rosto do ator agora aparece em primeiro plano, que é também o rosto da personagem, uma mistura indistinta, sem espaços de respiro, sem vãos a separá-los. E então chegou o tempo atual em que personagem nenhuma existe, somente o ator e os seus sentimentos de ator. Somos todos performers, intérpretes daquilo que somos. O interesse apaixonado agora é um apaixonar-se por si mesmo e pelas expressões que dizem respeito ao abstrato das coisas que nos ocorrem internamente. A instituição da personagem como máscara sumiu. De tantos desejos que temos de nos apoderar da personagem - o que antes era impossível pela atribuição mítica que existia no objeto-máscara -, matamos a personagem e viramos reféns do pequeno mundo que nos cabe, incomunicáveis com os arredores porque tudo se resume a fazer sentido ao impalpável de nossas emoções. Representamos para nós mesmos na ideia de que estamos a representar para os outros. 
Fazer teatro hoje carrega uma vocação de retorno à aldeia, uma necessidade ética e política de recuperar uma comunicação despovoada desses sentimentalismos modernos e capaz de voltar a acessar imaginários comuns.


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domingo, 26 de novembro de 2017

Não se forma um artista através do ser humano, mas é através da arte que se chega ao homem. Boas maneiras não pintam um quadro. Beethoven foi o homem que foi porque compôs a nona sinfonia, não compôs a nona sinfonia porque era um homem com qualidades éticas e morais que lhe outorgavam o direito a compor a obra. Arte é um obstáculo, não uma consequência de quem é o artista na sua esfera íntima. Somos bons atores e atrizes não porque somos bons atores e boas atrizes. Somos bons atores e boas atrizes porque as personagens que fazemos são boas. É a coisa bem feita o que nos torna bons, nunca nós, que somos primeiramente bons, que tornamos a coisa boa. Antes da pessoa vem algo a ser feito. É esse algo, a maneira de realizá-lo, o que a define. Inverter essa equação é afrouxar a expressão, é render a potência de um gesto à flacidez do companheirismo, do bairrismo, daquilo que nasce e morre imediatamente sem qualquer energia para além do autor que a produziu. Por uma necessidade de sobrevivência matamos as nossas ações. Ao contrário, se morrêssemos primeiramente o produto de nosso esforço seria duradouro, e justamente porque a atenção já não está mais em nós, mas em algo mais essencial e urgente, algo que exige a atividade concreta de ser feito.


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domingo, 19 de novembro de 2017

Esse 'interpretar' deveria ser proibido no dicionário. Sugere coisa interna, circunscrita a um perímetro. Esse inter do interpretar é de um desserviço. Lembro da escola, dos campeonatos de intercalasses, um punhado de times condenados a competir entre si. Quem foi que inventou esse verbo para resumir o trabalho do ator? Deveria ser exonerado do cargo de conselheiro gramatical imediatamente - vinde a nós, oh Camões, socorrei-nos! Ator não é da praia do inter, não internaliza nada, ao contrário, ator é do time do exo, do fora, do para além de... Ao invés de interpretar, deveria ser catapultar, expelir, arremessar para longe. Personagem não se resolve na instância íntima. É - isso sim -, território do espectador. Ele que se vire com a personagem. O ator tem como função jogar a personagem para longe do palco, despejá-la no colo da audiência. Ela, a audiência, que resolva o que fazer, como traduzir, de que maneira interpretar o que lhe chega através do esforço do ator.
Não interpretamos nada. Esse tal de interpretar que fique com o povo da televisão, com os atores de estúdios, com os diretores que dirigem sussurros, gemidos, piscadelas para que a câmera possa registrar esse conjunto sem sal de espasmos dramáticos. Ator - e ator só é ator porque é ator no teatro - faz outra coisa completamente diferente.



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quinta-feira, 16 de novembro de 2017

Duas possíveis razões para justificar o gosto saboroso que tenho ao fazer o que faço: 1 - é coisa que pertence ao instante / 2 - não carrego comigo os bônus e os ônus do sucesso ou do fracasso.... Aliás, pensando bem, as duas etapas acima são complementares, talvez um único e mesmo movimento: o que é efêmero não deixa traços ou vestígios. Digo e repito, não é modéstia fingida de quem falsamente rejeita os possíveis confetes ou advoga um lugar especial dentro de um mundo onde todos desejam a eternidade, os aplausos eternos, os autógrafos e assédios infinitos que façam cumprimentar o esforço realizado e aprovar o talento exibido. É, ao contrário, uma vaidade espetacular o que me move. Perseguir o esquecimento é um negócio de liberdade profunda, de prazeres indiscretos e indescritíveis. Quem diabos opta pelas amarras de uma reputação, de uma imagem, de um som de voz gravado direto na lapela? Tudo isso conspirando - o que é ainda mais irônico - para a formatação de uma persona quase sempre irreal, montada nas expectativas da aceitação e recusa alheias? Eu não... Quero sempre a violência da liberdade profunda, os riscos do precipício: melhor se atirar lá de cima por livre e espontânea vontade do que ser empurrado.

Gosto do teatro por uma vocação ética e política, mas também por uma memória infantil de quando eu não tinha outras responsabilidades senão entregar-me ao sabor de viver. É exatamente isso: teatro é um jeito bastante concreto de evitar tornar-se um sujeito canastra e manipulável pela simples razão de que no teatro o que é essencial é o acesso aos desejos mais primitivos, lúdicos, infantis, nada determinados pelo mercado, mídia, pela mais nova maquiagem lançada na vitrine, pelas taras reprimidas de séquitos histéricos e maluquices afins...

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domingo, 12 de novembro de 2017

Ser ator é o exercício mais absolutamente político que pode existir... Tomar para si discursos que não são seus, inventar posturas que jamais seriam espontaneamente experimentadas pelo seu corpo, e tudo isso com prazo de validade curtíssimo, condenado que somos a voltar a uma normalidade desetemperada dos exageros propositalmente forçados. Mas a beleza da coisa está justamente aí: o lado político do ofício do ator está para além da consciência de que se é um fingidor no ato mesmo do fingir. As consequências são posteriores. Já não se pode mais considerar a normalidade como algo normal ou natural. A personagem funciona como esse espelho invertido que faz amplificar aquilo que antes soava como atributo pessoal e íntimo, escondido do foco de atenção alheio. Curiosamente, o ator, em alguma medida, desenvolve uma inevitável esquizofrenia que poderia ser resumida assim: quanto maior for o seu tempo sendo outros, mais chances haverá dele reconhecer que a única personagem possível e viável é aquela que atravessa a rua despreocupadamente, sem intenção alguma de angariar palmas ou ter medo das vaias. O esquisito da ficção passa a ser o natural. A vida recebe o título de enredo dramático. Ao ator, enfim, cabe essa dialética, que é um caminho pavimentado para a manutenção de um certo ceticismo privilegiado: se o mundo é um grande palco, melhor divertir-se com seus absurdos, rir das suas comédias, chorar como choramos ao assistir a um filme dramático debulhado em lágrimas. Consertar o que quer que seja já não é mais uma opção, tão patético quanto advertir Hamlet de que há veneno na ponta da espada.

Nada mais político do que ser ator.

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quinta-feira, 9 de novembro de 2017

A personagem já existiu. Se existe novamente é por motivo de uma atualização da sua já declarada não-existência. Raskolnikóv já matou a velha usurária quando Crime e Castigo começa, Hamlet já disse ser ou não ser eis a questão quando o fantasma aparece pela primeira vez aos guardas de Elsinore. Tudo já foi dito, escrito e revivido. Outros atores já representaram o mesmo papel que o ator de hoje representa. O teatro é essa espécie de templo religioso, mágico - ou fantasmagórico - que evoca o passado no presente. Nada é aqui e agora, tudo é lá atrás, no era uma vez. O tempo do teatro é o da narrativa épica. Primeiro é preciso ter morrido para depois celebrar a vida. Brás Cubas é o melhor ator que a prosa literária brasileira deu conta de produzir, e justamente porque Brás Cubas encarna a função primordial do ator: Brás Cubas já não é mais Brás Cubas no instante em que ele se apresenta a nós. Brás Cubas só pode ser Brás Cubas porque Brás Cubas já deixou de ser Brás Cubas. Memórias Póstumas de Brás Cubas é a melhor peça dramática que um autor nosso soube escrever. O ator presentifica não o que é, mas o que já foi. Essa ideia é importante justamente para reforçar o papel do ator diante da personagem, para reforçar a sua evidente reverência a algo que não pode ser ele próprio em ação, mas ele próprio no exercício de revelar algo para além do que ele é, ou pode ser, com o seu esforço. Nada mais frustrante do que um ator que aparece para o espectador ocupado com a inútil tarefa de SER ou VIVER a personagem que representa. Personagem nenhuma se presta a isso. A personagem é uma máscara que deve ser revelada pelo veículo que é o ator. Ele a estampa diante da plateia. A humildade do ator cabe nesse entendimento: a de que ele é simplesmente - e meramente - um arauto fúnebre daquilo que já se foi. O tempo presente da encenação teatral é um tempo coagulado. Aí está a sua força de persuasão e de convencimento - precisamos da fábula para misturar-nos a essa espécie de magia eterna que falta a nossa curta existência.


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domingo, 5 de novembro de 2017

Está rolando um stand-up comedy no mesmo palco de um suposto teatro dentro de um shopping, o mesmo palco em que daqui a instantes entraremos em cena para fazer o nosso Nelson Rodrigues... Parece que o astro é um YouTuber, desses que ganham a vida influenciando os hábitos de um público que nunca deve ter avançado do capítulo dois de um livro sem figurinhas estampadas. A plateia ri histérica feito um bando de hienas esquizofrênicas - impossível não lembrar do próprio Nelsão dizendo que teatro feito para rir é coisa tão abjeta quanto uma missa cômica com o padre a fazer malabarismos com laranjas. O sujeito que empunha o microfone dá tudo de si nesse evento de emendar uma piada pronta noutro palavrão que suscita os hormônios daqueles que curiosamente cumpriram a 5a série do primeiro grau a despeito da barba que desponta do queixo e dos pelos que avolumam no sovaco. Será uma experiência no mínimo antropológica subir ao palco logo em seguida a esse ritual de macumba do fast-food contemporâneo. Não peço a proteção de Dionísio porque se Dionísio aqui houver ele deve estar mastigando uma pipoca no Cinemark assistindo ao filme do Danilo Gentilli, última super produção do cinema nacional.

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Gosto de todo tipo de formalidades. Antes ser alguém adepto de protocolos do que de intimidades declaradas. Me revelo no esconderijo das mesuras, dos gestos ensaiados, da etiqueta fingida. Tenho pavor e dificuldades extremas em tudo aquilo que envolve essa qualidade do ser-espontâneo. Sou ator por isso: é mais fácil mentir sobre quem eu sou do que imaginar ser eu mesmo sendo quem sou. A minha liberdade é poder mentir sem sentir remorsos.

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segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Qual é o mínimo que cabe a mim contribuir? É disso que deveríamos tratar: do minúsculo. É dessa ética, ou da falta dela, que padecemos. Porque dar ao mundo a excelência dos nossos esforços naquilo que é visível é tarefa fácil, cumprimos ela sem grandes dificuldades. Um grande ator se nota no silêncio, na sombra. Os holofotes são geralmente disputados a tapa por aqueles que não têm talento algum para sustentar um foco de luz. Estar na evidência não garante uma boa cena. Estar exposto não é sinônimo de angariar atenção. Um dos ensinamentos mais importantes do teatro é a compreensão de que é preferível nada fazer do que plantar mil bananeiras no centro do palco. É dificílimo entrar em cena e estar diante de algo sem querer emitir opiniões, sem desejar arrastar os olhares da plateia. Mas é isso mesmo: só consegue botar uma plateia abaixo quem antes é experimentado nessa importante arte que é a de frequentar a periferia dos acontecimentos.

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quarta-feira, 18 de outubro de 2017

Faço dois personagens atualmente no teatro. E por isso tenho que me desdobrar em quatro: os dois personagens que tenho de fazer, e mais outros dois de mim que me vigiam ao fazer cada personagem que faço. Na verdade, são cinco: os dois personagens, os dois de mim que vigiam cada personagem que faço no instante em que estou lá a fazê-los, e um outro distanciado desses todos que gerencia essa equação para que tudo ocorra sem grandes percalços. Ou melhor, devo admitir, são seis. O último deles um outro de mim que assiste a tudo o que faço e fazem por mim sem precisar entrar em crise ao calcular se o resultado do meu esforço é bom ou não. Para terminar logo com isso, são sete os de mim que existem ao mesmo tempo para que haja teatro naquilo que me proponho a fazer. O sétimo eu deixo no camarim, dormindo, a espera de que tudo acabe. Esse sétimo odeia ter de esperar que tudo acabe. A depender dele eu nem teria ido ao teatro para fazer teatro. Mas amo de paixão o sétimo, porque sempre valorizo as contra-vontades e aqueles que carregam uma certa síndrome de Bartelby: MELHOR NÃO SUBIR AO PALCO. O oitavo de mim só existe para contrariar esse que nasceu para me advertir das enrascadas que é ser ator. É por esse oitavo que eu confiro a razão de eu não desistir nunca, ou melhor, de não desistir naquele instante, porque depois que tudo acaba eu desisto, e o sétimo - o cético-sábio e emburrado - volta a imperar. Guardo ainda dois de mim na reserva: o nono e o décimo. O nono me ama, quer que eu seja o melhor ator do universo - e sabe perfeitamente que eu sou o melhor ator da face da Terra -, vive a bajular-me e soltar confetes no meu cocuruto já quase careca. O décimo me consola, diz que eu nasci no tempo errado, me oferece uns tragos para acalmar os ânimos feridos e evitar que eu me atire da ponte em razão da certeza de que tenho de que sou um completo fracasso, um erro das ribaltas, um zé ninguém que veio ao mundo para fazer o pior tipo de figuração possível...

Enfim, carrego dez de mim...
E só consigo fazer teatro assim
Quando quem eu sou decide por bem estapear
Ou beijar
O pobre diabo que me faço ser
E isso todas as noites
Debaixo de aplausos
Ou desviando dos tomates.

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terça-feira, 10 de outubro de 2017

Não sei se gosto mais do que faço ou de pensar no que tomei por decisão fazer. E uma coisa não alivia a outra, ao contrário. Quanto mais penso nessa atitude maravilhosamente maluca que é fingir quem eu não sou, mais decididamente complicado se torna o ato deliberado de fingir. É uma dúvida hamletiana na acepção do termo. Porque se finjo quem eu não sou eu dou-me por certo de que eu sei quem eu sou para poder deixar de sê-lo e virar um outro que não eu. Mas também desconfio de que isso seja possível e, então, chego a conclusão de que eu finjo sempre e, portanto, representar não passa de um estado natural e potencializado desse eu genuíno que eu já sou e sempre fui. Mas aí complica ainda mais porque não há ideia mais triste do que ser quem se é no exercício do ofício que escolhi fazer. E então finjo que eu finjo que eu não sou um fingidor para poder, aí sim, enganar aos outros e a mim, esses outros e eu mesmo que adoramos ser enganados. É por isso que o exercício de vestir uma máscara, o de representar um papel, é uma atitude essencialmente política, porque ela é dialética quer se queira quer não. A cada esforço criativo um abismo de dúvidas e espaços incompletos se abre diante de nós. E é por isso que ser ator é um encargo de extrema angústia, porque olhar-se no espelho e nunca ter a imagem precisa de quem se é é, no mínimo, desesperador. Mas também fascinante. Conviver nesse intervalo de vazios é ganhar o direito de não pertencer a nada nem a ninguém. É poder rir e chorar do mundo com uma intensidade ainda maior do que seria rir e chorar fazendo parte desse mundo. É ser um Brás Cubas, um defunto-autor, e também um autor-defunto.

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segunda-feira, 9 de outubro de 2017

Arte tem a ver com inteligência. Todo artista deveria ser um intelectual, alguém que pensa, e que pensa para além do que é pensado pelas esquinas da vida. Pensamento que em nada tem relação com alternativas para o alívio das moléstias dos dias, soluções para problemas, remédios para doenças éticas ou morais. Pensamento puro e simples, de quem pensa e assume as dores e dificuldades de pensar, doa a quem doer. E, para isso, arte tem a ver com formação, com preparo, com temporadas de silêncio para que se possa alçar o direito de poder dizer alguma coisa com um mínimo de autonomia. Nossa miséria é que essa ideia neoliberal que confere ao mercado o sentido de sucesso de tudo o que se entende por mercadoria transmite à arte uma idiotice exemplar para aquilo que entendemos por ser artista hoje. E a arte - que necessariamente é, ou deveria ser, um terreno pedregoso - vira um pagode de boteco. Tudo fica fácil e gostoso porque fazer o que se faz é tão gostoso quanto filar um churrasco enquanto se batuca um samba no tamborim. Hoje o artista é o oportunista, aquele que agarra a oportunidade com unhas e dentes, aquele que está no lugar certo e na hora certa para poder acontecer no instante certeiro. É aquele que é famoso pela imagem que o tornou famoso, mas que de substância é tão cru e vazio que mal consegue se suster de pé. E as plateias de hoje já são idiotas o suficiente para louvar esse grande ícone da idiotice aclamada que virou o ser-artista de hoje.
Todo artista só deveria ser assim chamado caso fosse alguém culto, de uma erudição ímpar, alguém que pudesse enfrentar o mundo com a petulância de querer contestá-lo, jogar no focinho dos outros as nossas idiossincrasias que nos tornam maravilhosos e hipócritas ao mesmo tempo. Arte tem a ver com inteligência. Com gente inteligente e extremamente evoluída em todas as faculdades que competem a tarefa do pensar.


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quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Sou territorialista. Mais por respeito ao território do que por alguma deferência a quem o ocupa. Em função disso, acho uma afronta corromper o território por um desejo pessoal de satisfazer um desejo íntimo, ou por mera distração de entendimento do sentido que há pisar no território em que se pisa. Dias atrás ouço uma entrevista no rádio de uma determinada atriz de televisão que está em cartaz num dos palcos mais tradicionais de São Paulo. Digo atriz de televisão porque é isso mesmo. Há atores de teatro e há atores de televisão, e cada um que se entenda a respeito da diferença que há entre um território e outro. E se digo que há atores de teatro e de televisão não é para qualificar as habilidades dos atores de teatro e de televisão, mas porque o território do teatro definitivamente não é o mesmo território da televisão. A tal da atriz, em sua entrevista toda descontraída, dizia que o espetáculo - um monólogo cômico feito sob medida para a intérprete - fazia de tudo para divertir a plateia, que o texto permitia cacos e interações improvisadas com o público, e que, ao final, ainda debaixo do refletor, prometia atender a todos os que desejassem tirar uma selfie e conversar sobre a apresentação. Ora, eu sei que a origem do nosso teatro popular está no ator, na empatia do cômico central da companhia com os seus espectadores, que as pessoas saíam de casa para ver Procópio Ferreira, Jaime Costa, Dulcina e Dercy Gonçalves... Mas, sabendo que eram atores de teatro, toda a empatia construída era construída através do território do teatro, o que tornava o palco uma extensão de uma linguagem específica para o ofício de artistas que eram artistas das ribaltas. A imagem desse tipo de artista de teatro, parece-me, era determinada pelas fronteiras do teatro, da labuta diária no teatro, um charme erigido pelo suor de quem conhecia as dimensões do palco de cor. E quanto a essa atriz? Nunca a vi previamente no teatro antes que a sua figura explodisse na televisão, e tão logo ela explode na televisão o teatro passa a virar a sala de visitas da sua fama, da sua empatia, do seu charme pessoal, charme e empatias que em nada tem a ver com a escala de forças que competem às tábuas do teatro. Não sou tão pretensioso a ponto de dar nomes a essas forças que dão substância ao território teatral, mas posso suspeitar de quem não entende que um evento teatral não pode caber no tamanho de um gabinete doméstico como se pudéssemos convocar o palco a reproduzir uma lágrima escorrida ou um riso extrovertido na mesma medida de um enquadramento de uma câmera de estúdio. Não vi a tal da peça da atriz. E não preciso ver a tal da peça para chegar a essas conclusões. O papo com a entrevistadora era natural demais, cotidiano demais, pessoal e íntimo demais. Tudo o que a cena, corrompida por essa intimidade exacerbada, deve reproduzir. O território do teatro é também desmoronado pela maneira como a ele reportamos. Não se trata, novamente, de exagerar uma artificialidade britânica, mas, definitivamente, não se pode fazer teatro ou falar de teatro com o mesmo timbre de voz com que se mastiga um pastel na feira, ou com aquela descontração delícia de quem é entrevistado na mesa do café da manhã pela Ana Maria Braga junto com aquele urubu-anão-de-espuma-verde.
Sou territorialista. Definitivamente cada coisa e cada um que se arrumem no seu devido lugar.


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O verbo não faz sentir, mas o verbo, em si, sente. Isso porque o verbo é formalmente algo real e anterior a quem o apreende. Por isso que Shakespeare não comporta psicologia nenhuma. Porque não é o ator quem sente a personagem, assim como se fosse possível sentir alguma coisa que já é o que é antes de ser sentida. Em verdade o termo 'ser sentido' já é absurdo. É sentimento puro antes da ideia de tentar senti-lo. O verbo é o que é. E o ator é esse canal de abertura para alguma coisa que existe por si só. Seu papel é somente esse: deixar ver o que já sempre existiu com propriedades próprias, nunca íntimas ou pessoais. O ator não vive a personagem, ao contrário. Faz viver o que já é vivo desde o princípio em que se fez real.

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segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Acho que quem deseja ser ator deveria pensar em tudo, exceto em ser ator. Não é uma brincadeira semântica não. É uma forte intuição. Não que não haja aí qualquer esforço de formação que o candidato a ator tenha que frequentar para se tornar ator. Muito ao contrário. Ator nenhum é ator sem formação para que seja ator. Digo da ideia da coisa associada à execução da mesma coisa. A questão é a que serve se preencher da ideia de que se é ator, ou entrar em cena com essa responsabilidade completamente abstrata que é ter de 'ser' um outro alguém? Acho que não serve para coisa nenhuma, ou então, pior ainda, serve para elevar o tal do ator a um status mentiroso (e de importância) que ele nunca tem. Essa coisa de viver as emoções da personagem me parece um diagnóstico desse ego desmesurado. Ator nenhum vive emoção de personagem nenhuma, me parece. Ator é muito mais parecido com um peão de obra que leva e traz materiais de construção, empilha tijolos e ergue paredes. E é só por isso que a personagem aparece, porque o ator desiste de ser ator e fazer da personagem algo com que tenha de se ocupar. Nesse sentido, acho que o ator deveria ser para si próprio, e para o mundo que cria, um dançarino, ou um músico. Nunca ator. Dançar um espaço, tocar a melodia que há no espaço, isso sim, são atitudes destituídas desse falso glamour que ronda a figura do ator. Porque dançar e tocar exigem corpo. E é só isso que o ator precisa ter para ser ator: corpo. Um corpo que existe - que está lá de fato existindo aos nossos olhos - é um corpo certamente preenchido de espiritualidade, de conteúdo. É isso! Ser ator é muito mais existir do que ser ator. O esforço é para o mundo, nunca para si mesmo.


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Antes desperdiçar que acumular... Fazer teatro dá substância a essa filosofia. A matéria bruta do nosso esforço é desperdiçada noite após noite, jogada fora, inutilizada depois de erguida. O que sobra é o dever de voltar e fazer de novo, e sem qualquer promessa de sucesso. Somos desperdiçadores profissionais. O trabalho que nos cabe é conviver com o vazio absoluto de nada poder reter. A imagem do ator de teatro é translúcida, espectral, de contornos imprecisos. Esse talento para o sumiço, para o desapego a qualquer espécie de reputação, currículo prévio ou fama catapultada por dispositivos eternizadores da nossa imagem, é tudo isso o que confere a nós, aos atores de teatro, o importantíssimo privilégio de exercer uma inteligência sem intermediários, sem haver temeridade com o que podemos destruir ou construir com o nosso olhar. Se é o instante que vale, é ele, o instante, a jóia rara que aguça uma percepção do que de fato está a acontecer, dentro e fora do teatro. Se vestimos figurinos para inventar o que não somos, é só porque os desvestimos depois para voltar a ser alguém que mal desconfiamos que somos. Estamos no intervalo. Vazios. Sem garantias de salvação ou perspectivas de horizontes esperançosos.


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Gosto de cenários, de figurinos, de adereços, do chão do palco - é de madeira que range, ou de madeira que não range? - Da iluminação eu também gosto, e da sonoplastia igualmente. Gosto de cortina no palco e gosto de teatro mesmo - do teatro-edifício, com lugares para a plateia e para os atores. Até do café no hall do teatro eu gosto. Para mim a personagem que faço é a soma de tudo isso. Se me perguntarem o que ela é, qual o RG, CPF, signo e etc, eu só saberia dizer: não sei... eu dou uma volta por aí e ela aprece, assim, como num passe de mágica. Aliás, ainda que não me perguntassem, saberia responder uma coisa que hoje é quase uma heresia dizer: o ator não é a coisa mais importante do teatro. A coisa mais importante do teatro é o próprio teatro. E fim de papo.


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Há uma ressaca dolorosa depois de sair de uma peça de teatro. Parece que o corpo padece (e a alma também) dessa estranha sensação de vazio que surge logo após uma bebedeira. Fechar as cortinas causa um silêncio semelhante. Há uma grande dose de melancolia que vem junto no pacote de quem resolve se arriscar na maravilha que é aparecer debaixo do refletor. Nossa euforia compartilhada com a plateia é quase sempre uma resposta à altura da tristeza invisível que nos acomete quando o único público que resta somos nós mesmos na solidão que nunca deixamos de habitar.


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segunda-feira, 18 de setembro de 2017

Aprendam: a pergunta mais idiota que se pode fazer a um artista é o que ele quer dizer com a sua obra. Se ele quisesse dizer alguma coisa ele diria, não fazia a obra. A pergunta mais idiota que se pode fazer a um ator é quem é a personagem que ele representa. Se ele soubesse quem é a personagem que representa possivelmente a convidaria para lamber um picolé na esquina, e não faria uma peça de teatro com a bendita personagem que lhe cabe. A pergunta mais imbecil que se pode fazer a um dramaturgo é o que a história dele contribui para a situação atual em que vivemos... Se ele quisesse contribuir com alguma coisa para a situação atual em que vivemos ele não escreveria história nenhuma e se candidataria a vereador, chefe de ONG, benemérito do Criança Esperança, apóstolo de ovelhas em alguma franquia do Templo do Salomão e etc

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Não é necessário postar foto do universo ao lado do tamanho da Terra para fazer alusão a nossa reles insignificância. Faça teatro. A sensação é a mesmíssima. O minúsculo do tablado onde se pisa é, talvez, ainda mais pedagógico. E justamente porque os pés estão bem fincados no chão. Prefiro a filosofia das coisas concretas àquelas outras que me escapam pelos dedos e fogem da minha escala visual. Sou desses que preferem abrir uma caixinha de música e olhar a dançarina inanimada que balia ao som da melodia. E depois fechar a caixinha. E ver a dançarina sumir junto com a música quando a caixinha é fechada. Saber que a dançarina só baila quando eu resolvo abrir aquela caixinha me dá uma sensação de poder e melancolia. De fracasso e sucesso. Tudo ao mesmo tempo. Depois disso, se você ainda se sentir o protagonista de qualquer coisa, aposente-se de tudo e volte ao ensino fundamental..., você não entendeu nada de nada, e há tempos que não entende nada de nada.

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quinta-feira, 7 de setembro de 2017

No fundo da alma somos todos músicos frustrados. Nossa expressão é a tentativa de retornar a um ritmo, a dar cor a uma melodia, a raspar a composição de um movimento. Jogamos fora as palavras para saber se o que sobra por debaixo do verbo é alguma música esquecida, herdeira imediata do pulso que bate em nosso peito. Nietzsche estava certo, a origem da nossa tragédia é musical, e abrir mão da música é correr atrás da música que se perdeu ao abrirmos mão dela. Os grandes poetas só são grandes poetas porque desperdiçam palavras em favor do que sobra delas. Os grandes escritores e dramaturgos são exímios regentes de notas musicais numa partitura espelhada pelos contornos das letras no papel. Os bons atores sabem perfeitamente que o texto que cabe a eles são argumentos para que se cante o que existe como fundamento da personagem. A boa personagem, aliás, pouco se interessa em comunicar uma ideia tal qual a comunicamos quando queremos ser entendidos. A boa personagem nunca se faz entendida. A boa personagem se faz ouvida. No fundo da alma somos isso mesmo: loucos aspirantes para formar naipe em alguma orquestra que se encaixe ao desejo nosso de nada dizer.


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segunda-feira, 4 de setembro de 2017

Tenho sorte por fazer teatro que não é teatro de mensagem. Tive sorte de ter me formado numa faculdade de artes que me ensinou desde o início que ou o teatro é coisa imaterial - e, por isso mesmo, mais concreta que um paralelepípedo - ou, então, é teatro pedante, ou teatro de gente cult, de gente acadêmica ou engajada em sabe-se lá qual ONG, ou teatro autorreferente, de gente que faz teatro para tentar se encontrar na vida. Mas também não sou pedante o suficiente para afirmar que há um teatro certo e um teatro errado. Mas sou espetacularmente pedante para cravar: há um teatro interessante, e outro teatro chato pacas. Desse último teatro, o chato pacas, eu sou vacinado até as orelhas.


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quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Acho o aspecto emocional uma ferramenta poética importantíssima para o ator... justamente porque ela não serve para coisíssima nenhuma quando ele é ator. Não é uma maravilha ter uma coisa e saber que ela não serve para coisíssima nenhuma no exercício do seu ofício? É como se o tenista tirasse da sua mochila uma raquete de tênis e um macaco hidráulico desses de trocar pneu de carro. O tenista guarda de volta o macaco hidráulico e fica com a raquete de tênis. O que não serve justamente tem serventia para escolher o que deve servir. Eu acho uma pérola da descoberta saber disso. Por isso que eu guardo comigo a sete chaves todas as minhas lamúrias sentimentais, porque sei que se elas resolverem se dar ao luxo de sair por aí para dar uma volta, quem empobrece sou eu, ou o ator que imagino que sou.


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Um slogan de uma escola de formação de atores que diz que 'ser ator é sentir' explica sem defender tese nenhuma a razão pela qual a Susana Vieira é o nosso exemplo maior de atryz... Já tivemos Cacilda Becker nesse posto, já tivemos Sérgio Cardoso, Paulo Autran, Bibi Ferreira, Marco Nanini... E pouco adianta contrariar meu argumento evocando o nome da Fernanda Montenegro. Ela é reconhecidamente e merecidamente uma sumidade. Mas é entre nós, gente do ramo. Falo da ideia geral do que se pensa sobre o ator. Do povo em geral que associa o RG à pessoa. Não é a toa que Janaína Paschoal é personagem do nosso tempo, que Marcelo Serrado esteja nos píncaros da fama ao interpretar um juizeco que advoga em favor do seu próprio sentimento. Assim como não é a toa que exista por aí campanhas de polvilhar  pelas esquinas. Admitamos: pertencemos a uma geração tapada até a tampa. Que idolatra tapados, faz propaganda de gente tapada, e forma gente tapada elogiando o ser tapado que podemos, com árduo esforço (porque não há nada que demande mais suor que a burrice), vir a nos tornar.


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segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Discordo totalmente de quem sobe ao palco e pauta o que diz dizendo que a vó Tereza da última fileira deve entender o que se passa debaixo do refletor... A vó Tereza deve se interessar pelo que acontece debaixo do refletor, isso sim. Se a ideia é educar a vó Tereza, então que a vó Tereza seja gentilmente matriculada num cursinho de emancipação das qualidades cognitivas do intelecto, ou então conduzida para diante da televisão para assistir a um melodrama bíblico ou coisa afim. Aliás, as peças de que eu mais gosto são aquelas em que eu subo ao palco e eu mesmo não faço a menor ideia do que está de fato acontecendo. Se a plateia entender alguma coisa, que ela faça o favor de me explicar depois...
Viu, vó Tereza? Seremos colegas de curso!


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quarta-feira, 23 de agosto de 2017

Personagem não 'se constrói', personagem já existe construída. O esforço é não destruí-la achando que é tarefa sua dar existência ao que já nasceu existindo. Repare que todas as vezes em que o ator diz haver 'construído' a personagem quem aparece é o ator, nunca a personagem 'construída'. A personagem aparece em primeiro plano quando o ator não perde tempo em se referir a ela, quando o ator sabe que é inútil acreditar que há uma personagem construída fruto de seu esforço íntimo e particular. Mas isso diz respeito às boas personagens e aos bons atores, evidentemente. Há um contingente gigantesco de péssimas personagens e péssimos atores que firmam exatamente essa parceria desastrosa: por um lado a personagem exige do ator o seu direito de existência como se fosse um protótipo de criança mimada, por outro, o ator crê piamente que é tarefa sua tomar para si as dores dessa mesma personagem carente de vida.

Adoraria ser uma mosca para testemunhar o que Hamlet faria com um desses atores tarimbados na geração da lágrima dramática, os mesmos atores que acreditam que representar é viver ou dar direito de vida à personagem.

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segunda-feira, 21 de agosto de 2017

Ontem, no teatro, nada emplacava. Estávamos todos sem talento, plateia e elenco. Mas persistirmos até o final, a plateia na sua função de ser plateia, e nós, atores, na função de sermos atores diante da plateia. E isso já é um talento e tanto. Plateia e atores insistindo em persistir, e até o final. E, ufa!, chegamos até o final! Essa é uma das maravilhas do teatro. Haja o que houver, é imperativo que se chegue ao final. Quem experimenta essa sensação experimenta também a certeza de que há algo necessariamente maior do que essa instância de angústia íntima, particular, que nesses dias de miséria egocêntrica faz interromper o giro do mundo com um grito afetado que diz PAREM JÁ O BENDITO BONDE QUE EU QUERO DESCER!

Retificando! Ontem estivemos maravilhosos, nós, atores, e eles, a plateia!

Viva o teatro!

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quinta-feira, 17 de agosto de 2017

Saber-se ridículo livra você de ser um completo idiota. É essa, somente essa, a ética mais importante do ator. E assim o é porque cumpre duas fundamentais funções: a do palco e a da vida.

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Sentar-se num banquinho de madeira no centro de um palco vazio é coisa dificílima de se fazer... Um ator que faz isso sem exigir qualquer direito de existência faz qualquer coisa, qualquer personagem, vai da tragédia grega aos dramas contemporâneos, mastiga bifes intermináveis e povoa silêncios de precisão milimétrica. Porque a razão da coisa está justamente no banquinho e no palco vazio. É deles de que se trata, nunca do ator. Se o ator senta-se no banquinho num palco vazio é porque o palco vazio e o banquinho disseram à ele: sente-se. Só isso. E já é dificílimo de se cumprir. Agora, a pergunta pertinente é quando é que o palco vazio e o banquinho no centro do palco vazio convidam o ator a se sentar? Um sentar num banquinho sem ser convidado para tal configura que tipo de qualidade se presença? Me parece que o método mais justo de interpretação dramática para os tempos que seguem - tempos de vaidade, de auto-promoção, de maquiagem corretiva nos olhos - é esse mesmo: o do banquinho de madeira no centro de um palco vazio. Quem sobreviver a isso sobreviverá ao que vier a seguir.

Viva o teatro!

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domingo, 13 de agosto de 2017

Todo mundo deveria fazer teatro. Mas não para fazer teatro como fazemos nós, esses que insistem em reivindicar uma importância ao despropositado ofício de fingir quem não se é e fazer disso uma teimosia quase diária e ininterrupta - nem todos precisam carregar o fardo de tamanha loucura! -, mas tão somente para se ter uma mínima sensação e consciência elevada do que é convergir um esforço descomunal para algo que sabemos efêmero, passageiro, instante rapidamente engolido pelo tempo. Essa qualidade de existir para uma coisa que não dura, para um mínimo de minutos e segundos que escoam inexoravelmente através dos dedos, é de uma pedagogia fundamental para entender qualquer espécie de atividade fora do teatro. Porque dedicar tamanha atenção a algo que termina é também questionar-se a razão de existirmos, uma vez que para qualquer coisa que fazemos inevitavelmente é regra gastar energia com o que não podemos dominar. O ínfimo minúsculo do teatro, o foco fechado e difuso do refletor que ilumina um microcosmo nada importante, é também o exercício de celebrar o mistério de persistirmos nesse eterno esforço que é reconhecermo-nos falhos e incapazes e ainda assim seguir adiante com a próxima cena. Hoje, durante o espetáculo, vendo tantos bons atores ao meu redor, todos suando em bicas para uma coisa que dali a instantes deixaria de existir, testemunhando esse ridículo bailado coreografado mas que ganha uma dose gigantesca de dignidade diante dos olhares alheios, penso que o teatro cumpria com a sua maior função, que é exatamente a experiência concreta da enorme interrogação que nos move adiante sem que haja desejos de olhar para trás. É esse mistério que faz o abrir e cerrar das cortinas, e que nada mais é do que uma celebração coletiva dos nossos risos infinitos misturados às lágrimas que tampouco conseguimos deixar de verter. Já dizia o poeta que há mais coisas entre o céu e a terra do que pode sonhar a nossa vã filosofia. O teatro é só o canal disso tudo, sem querer nada ensinar ou explicar.

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quinta-feira, 10 de agosto de 2017

Repare que os nossos grandes atores tiveram uma escola essencial e que hoje nos falta: o rádio. Ator tem que saber falar. A assertiva é um tanto óbvia, mas não tão óbvia assim. Nossa geração é uma geração de gente que não sabe falar porque acostumou-se a se ver através da imagem, e dela fez o seu cavalo de batalha. O rádio exercia, pela própria indumentária de seu funcionamento, o que a máscara era nos tempos em que reinava como ferramenta poética: a função de esconder o ator. O que ultrapassa esse véu concreto e físico é a voz - até mesmo o corpo é consequência da emissão do verbo (creio profundamente nisso e discordo daqueles que pensam que corpo e voz andam juntos. A voz vai na frente! No princípio era o verbo e o verbo era Deus!) A nossa tragédia dos dias que seguem é só essa: sabemos como ninguém as regras de como pentear nosso topete, e, em contrapartida, somos frouxos, flácidos, sem energia alguma para emitir uma única frase com os desenhos sonoros que ela, em sua própria estrutura, nos convoca.

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domingo, 6 de agosto de 2017

Primeiro o teatro, depois o ator. Primeiro o aquário, depois o peixe. O ator não é o protagonista do teatro, assim como de nada adianta um peixe sem aquário... E se o peixe estiver no mar, tanto faz, ele não será notado, é como se não existisse para nós. O assunto do teatro é o homem, mas o homem concentrado, redimensionado, portanto, não é o homem da rua o que interessa ao teatro, é um homem ideal, forjado, inventado, exatamente como o peixe do aquário, que só é possível existir se houver um aquário. De nada adianta um método que jogue luz no ator para que ele seja verdadeiro no palco. O aquário é nitidamente um mar falsificado, e é justamente pela sua falsidade que o peixe dá conta de sobreviver. Se a água do mar fosse despejada num recipiente de vidro e o peixe jogado dentro, o peixe morreria. Há todo um sistema artificial de simulação da qualidade da água do mar. Por isso o peixe sobrevive, um peixe que não pode ser um peixe do mar.

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segunda-feira, 24 de julho de 2017

A pior sentença que um ator pode receber vem da imagem impressa na tela. Porque a imagem é redutora. E reduz porque atribui uma identidade ao ator. Ou melhor, reduz a personagem ao ator. E o que sobra dessa equação também já não é mais o ator ele próprio, é outra coisa, talvez uma máscara sempre congelada naquela expressão de graça típica dos atores que frequentam a imagem. E essa máscara impressa pela imagem cobra do ator uma certa responsabilidade pela manutenção de um sorriso, de um estado artificial de entusiasmo. Essa é a diferença do teatro para a imagem. No teatro não há qualquer chance do ator ser o centro das atenções. E ainda que o seja, ele só o é porque sabe que está respondendo a uma instância infinitamente maior que ele que o impede de celebrar a si próprio. E quando tudo acaba, o ator também sai acabado, pagando um preço alto pelo esforço a que se permitiu debaixo do refletor. O entusiasmo é coisa que acaba junto com a cortina que se fecha. E é preciso que seja assim porque não há outra maneira de ser de outra forma. E é só por isso que fazer teatro vale a pena, porque já não há qualquer defesa de uma falsa identidade possível depois de ser atropelado por essa espécie de exposição pública. O ator de teatro não precisa dar-se ao trabalho de fazer a manutenção de uma máscara pública, e talvez por isso mesmo que ele seja perigoso, porque se a mentira é seu ofício e não um charme particular, fora dela já não há mais a necessidade de congelar o rosto em expressões artificiais.... e o que sobra é a verdade. Quer perigo maior do que dizer a verdade num mundo casa vez mais adepto dos piores disfarces?

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Ator que diz que encontrou consigo sendo ator encontrou com tudo, exceto com a coisa que é ser ator.

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Falta de imaginação = ausência de mistério. Quando qualquer arte age para localizar, quem fica mais pobre é a própria arte. Quem faz reportagem é jornalista, quem faz política é político, quem se cura faz terapia, quem faz benfeitorias é agente social. Arte produz poeira cósmica, pó de pirlim-pim-pim, coisas impalpáveis e de difícil apreensão, de quase nenhuma utilidade prática. E se tudo isso soar prepotente, é porque toda arte que se valha da sua real função é prepotente mesmo, e no último grau.

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quarta-feira, 12 de julho de 2017

Acho que e a gente só é ator para aprender a gastar as palavras pela garganta no espaço afora, e quando já estivermos com a goela cansada, convictos de que não resta mais nada para dizer, aí sim descobrir que sobraram umas poucas palavras no silêncio quieto da imaginação. E ao invés de desperdiçá-las aos ventos, escrever. Acho que é só por isso que vale a pena ser ator, pelo reverso da moeda. Só depois que Hamlet diz 'O resto é silêncio' é que a coisa realmente pode começar.


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segunda-feira, 10 de julho de 2017

Elogio à mentira!
Tudo o que me acontece é motivo dramático, mas só porque eu aumento 100 vezes o que me aconteceu, ou diminuo outras tantas 1000 vezes o que era, no princípio, um fato real. A vida não me interessa nem um pouco, ela é, por mérito ou defeito de nascença, chata e previsível até a raiz da medula. Meu depoimento pessoal não interessa a mim e nem a ninguém que possa vir a ouvi-lo. O que interessa é o quão habilidoso eu sou para deturpar o que é comum a mim e a todos. Eu estico ou contorço a massa, ou as duas coisas. São as formas criadas que fazem brilhar meus olhos, nunca a substância da coisa em si. Agindo assim, a minha personalidade, aquilo que é íntimo meu, desaparece em função de uma máscara especialmente forjada. O mentiroso não é tanto um fabulador original quanto um hábil dissimulador daquilo que existe. Sou desses. A vida só me faz sentido se dela puder extrair esse substrato de aspecto moldável. E procedo dessa forma também por uma vaidade latente que faço questão de preservar: a de me esconder por detrás das falcatruas que conto para vislumbrar se você, que não as conhece, cai na armadilha.


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domingo, 9 de julho de 2017

Arte é uma celebração à impossibilidade de apreender a vida. E é dessa falha que surge a potência da expressão. A arte existe porque a vida basta. Não fazemos arte para compreender ou emendar a vida. Fazemos arte porque é preciso fazer arte, e também porque é impossível compreender ou emendar a vida. Arte não serve para. Arte é o fruto de esgotamentos voluntários ou inconscientes. E é só por isso que a arte pode se comunicar com a vida, porque arte nenhuma deve responsabilidades à vida.

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sábado, 8 de julho de 2017

Ator não se transforma na personagem. Ator apresenta a personagem. Nessa equação, o papel de transformação cabe à plateia. Que é a razão pela qual se faz teatro: oferecer ao outro a possibilidade de haver alguma transformação. Dizer que o ator se transforma na personagem é o mesmo que armar uma festa, distribuir os convites, botar a música na caixa de som... e mandar todo mundo embora na hora de fatiar o bolo.

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sexta-feira, 7 de julho de 2017

Pode tudo no palco e igualmente pode tudo na plateia. O que não pode é a gente do palco medir o discurso pelo julgamento de quem está na plateia. Interromper um espetáculo não me parece grave. Grave é o espetáculo deixar de ocorrer nos dias subsequentes porque houve na plateia quem o interrompesse. Se a plateia, ou parte dela, tem o total direito de se manifestar pela não aceitação do espetáculo, por que quem está no palco baixa a guarda e diz: perfeitamente, o espetáculo deixará de ocorrer? Ainda que isso seja possível, que os artistas da cena entendam por bem não levar adiante o trabalho (a resposta da plateia me parece sempre uma justa medida do real sentido daquilo que o ator faz debaixo do refletor), o perigo que se cria é muito maior do que essa aparente troca civilizada de vozes: é haver uma jurisdição anterior a qualquer exercício poético, espécie de tribunal prévio a que o artista deve necessariamente se submeter para que possa ele exercer o seu ofício de expressão. E já há precedentes que indicam que isso anda ocorrendo. Eu não fico tão indignado com o comportamento de parte da plateia que interrompe um espetáculo (mesmo que essa interrupção implique, para mim, numa espécie bastante evidente de burrice para aquilo que significa a cena num palco ou espaço teatral), mas fico furioso com nossa própria turma, que recebe uma pancada dessas e se cala, ou pior, abre as portas de casa e monta uma mesa de chá para se discutir uma infinidade de questões, dessas questões que poderiam perfeitamente ser discutidas numa assembléia legislativa. Acho eu que transformar o teatro numa assembléia legislativa é, no mínimo, de uma pobreza de imaginação e de criatividade que se compara a abrir um brinquedo e passar mais tempo lendo as instruções do que descobrindo como se brinca.
Daqui a pouco iremos demitir o pobre do Dionísio e tomar o lugar daquela senhora vendada (ou não?) que segura aquela balança enferrujada com uma das mãos, e uma espada torta na outra. De minha parte, prefiro ser completamente louco a um arauto da justiça de qualquer um.


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Adoro palmito. Daqueles palmitões em conserva (olha a mensagem subliminar!). E palmito é bom porque não tem nada a ver com uma dieta básica, dessas que são essenciais para o organismo manter-se erguido em sua plena saúde. Come-se palmito pelo prazer de comer palmito, e só! Eu, por exemplo, abro uma lata de palmito escondido dos outros, para comer só eu, sem ter que dividir com ninguém! Ai de quem pedir um palmito emprestado! Não dou! Acho o teatro exatamente a mesma coisa do palmito. Teatro é o palmito da dieta. Não é nada essencial, e é por isso - e só por isso! - que ele é coisa urgente e necessária. Não se pode comer um palmito como se come arroz e feijão. É um desperdício do palmito querer dele o que o arroz e feijão faz por nós. Não, não! Se o arroz e feijão são fundamentais, o palmito é comprovadamente supérfluo. E também é a prova de que vivemos para o supérfluo, já que é impossível de fugir do que é fundamental. Que vida desgraçada seria a de viver somente para o fundamental... Isso os animais já fazem. Somos especiais porque vivemos para o que é aleatório, marginal, ou seja, para o que nos satisfaz sem esperar de nós resposta alguma. O teatro é o palmito da dieta! Tirem o teatro do cardápio do PF, para o bem do teatro, e para o bem da nossa saúde!


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segunda-feira, 3 de julho de 2017

Acho que o protagonista do teatro é o acontecimento, não o ator. É possível um ator maravilhoso naufragar num acontecimento nenhum. Como também é possível um ator sem tantos recursos brilhar na carona de um acontecimento maravilhoso. Agora, quem gera o tal do acontecimento ou a falta dele? Acho que também é o ator, mas em parceria (ou recusa) com o que está ao seu redor. O acontecimento iluminado é aquele que acontece, ou pode acontecer, quando o ator desiste dessa coisa de defender a sua personagem e sobe ao palco acompanhado do precipício que é a própria exposição (um acontecimento iluminado é sempre um estado que inevitavelmente mergulha o ator num estado de desespero). O acontecimento nenhum é esse que propõe um nada de acontecimento quando o ator acredita que ele é o teatro, que a sua personagem é o que interessa, e que não há outra coisa a se prestar atenção senão ao seu sentimento extravasado a olhos vistos (o acontecimento nenhum, por sua vez, é coisa para lá de reconfortante para o ator, e também para o público..., sensação próxima a do sono).

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sábado, 1 de julho de 2017

Discordo dessa ideia de que falta direção aos atores, aliás, sou da opinião contrária: o que não falta é atenção aos atores, tanta atenção que hoje chegamos ao patamar de encontrar atores que sobem ao palco para contar ao público que são atores, e que a história que irão contar é a história deles próprios, e a partir deles mesmos (RIP Dionísio). E isso se deve a uma razão bastante simples: estamos na era que preza por mimar os atores, e a tal ponto que tudo vira em função do ator: a personagem só funciona se o ator descascar as suas emoções, emitir as suas opiniões, colocar-se por inteiro a serviço daquilo que ele é para que alguma coisa possa acontecer. E quase sempre nada acontece, evidentemente. Ou o que acontece poderia muito bem acontecer distante dos olhares alheios e no conforto do divã de um psiquiatra. E a reboque disso aparecem os coachs ou preparadores de atores que só estão lá para funcionar feito séquitos dos atores, para facilitar ao ator a ser quem ele já é e sempre foi, ajudá-lo a escarafunchar no mergulho íntimo do si-mesmo, e tudo chancelado pela etiqueta da expressão autêntica. Não! Não! Não faltam diretores de atores, falta é gente que mande os atores irem pastar e preocupem-se com o espaço, com a indumentária, com a dramaturgia, com a música, com a arquitetura de tudo aquilo que compreende o teatro, incluindo aí também o ator. Se o ator é importante é só porque ele necessariamente engendra e junta todos esses elementos, somente por isso. Os melhores diretores que tive ao meu lado foram essencialmente artistas da encenação. Encenadores que legavam a mim a responsabilidade de canalizar aquilo que criavam na minha periferia para que a personagem surgisse dessa equação de soma dos elementos concretos e palpáveis que o teatro oferece como linguagem. Eu nunca sei o que é a personagem que represento em cena, e não sei porque preciso não saber para que eu possa poder agir com as ferramentas que me são dadas e aquelas que eu devo oferecer como interprete que sou. A personagem é de responsabilidade do público, não minha. Aliás, é minha também, mas só é minha porque dela eu não faço nenhuma questão de me ocupar. A personagem aparece porque eu empresto-me ao exercício da expressão, e não porque a personagem é expressa pelo meu esforço em expressá-la. Não existe nada mais desanimador do que pensar o trabalho do ator como um exercício de preenchimento de uma ideia de vida possível - a personagem. Ao contrário! O trabalho do ator é maravilhoso porque ele necessariamente deve se esvaziar dessa tentação de ser alguém. É de uma pretensão estúpida e fadada ao fracasso querer ser Hamlet, e igualmente é de uma idiotice sem tamanho convocar uma plateia para reafirmar que você é você mesmo.


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terça-feira, 27 de junho de 2017

'(...) Sir Henry Irving, como ator, possuía uma estranha e deliberada artificialidade em cena. Seus personagens eram construídos privilegiando uma construção "racional" e detalhada de seus movimentos, e não emotiva como era costume em sua época. Sua gestualidade "artificial" não condizia em nada com a tendência naturalista ou com a tradição romântica (...) Gordon Craig cultivará por toda a vida uma admiração fervorosa por Irving, citando seu nome, inclusive, como um exemplo vivo para seu Uber-marionette:

'Insisto, Irving era natural e, ao mesmo tempo também altamente artificial (...) Irving era artificial como uma orquídea, como um cacto, exótico e majestoso, ameaçador e de composição tão curiosa que quase poderíamos definí-lo como arquitetural, e atraente como são todas as coisas bem definidas' (GORDON CRAIG)...'
Extrato do excelente livro GORDON CRAIG, A pedagogia do Uber-marionette, de Almir Ribeiro. Editora Giostri


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segunda-feira, 26 de junho de 2017

Há uma ambivalência! Expressão = máximo de esforço até a última gota de suor, e zero de testemunhos pessoais. Uma personagem não é o resultado da tradução que o ator faz dela, mas da ausência de opiniões que o ator tem dela. Não há uma versão da personagem assinada pelo ator. Há sim uma personagem erguida através de uma assinatura anônima, sem registros, invisível aos olhos. A personagem, enquanto substância humana, não é coisa tangível ao ator, pelo menos não no exercício de sua função de ator. A personagem é uma trajetória, uma linha, um vetor. E é incrível como o esforço de qualquer ator na tentativa de se sobrepor à essa linha, trajetória ou vetor, resulta numa completa caricatura formal daquilo que deveria ser vivo e pulsante. E, ao invés disso, quando a personagem é tomada desde o início como contorno ou forma, o que o espectador vê não é nada mecânico ou enferrujado pela técnica, mas a perfeita elaboração daquilo que nos é comum como seres humanos.


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quinta-feira, 22 de junho de 2017

O bom jogador de futebol não retém a bola, isso é quase regra. O belo drible é feito pelo jogador que dá à bola um movimento inesperado. O seu próprio movimento é coisa indiferente se ele não direciona a atenção à trajetória da bola. Garrincha praticamente sambava diante do adversário confundindo-o enquanto a bola permanecia imóvel perto de seus domínios. E o samba só era espetacular não porque sambava, mas pelo fato do samba convocar a bola a permanecer quieta onde estava. A bola inerte é que era espetacular no drible do Garrincha - e o não movimento já é um movimento espetacular. Acho o mesmo com o ator. Ator bom é ator ligeiro, aquele que não gasta tempo a toa retendo nada. Bom ator sabe que sua performance está condicionada ao quanto de movimento ele consegue imprimir ao que está ao redor dele, em seu perímetro. A bola do bom ator nunca está com ele, repare! Ela é sempre inatingível para o bom ator. Há um senso de urgência no bom ator, que é o mesmo senso de ritmo que o bom jogador tem consigo. O mal jogador nunca é aquele que chuta a bola para o mato, mas o outro, que torna o futebol um argumento para aplaudí-lo sem prometer qualquer perigo ao gol adversário.


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Adoro cortina antes de começar a peça. E quando termina a peça também. Adoro palco italiano. Teatro é encantador pelo que ele propositalmente esconde. Mais encantador ainda do que aquilo que é revelado. É como um livro. Livros realistas demais que descrevem todo o cenário para que o leitor possa ver tudo o que o autor quer que ele veja são livros tediosos, insuportáveis. Livro bom é aquele que imprime palavras só para esconder um tanto enorme de outras palavras, não escritas, mas lidas pela imaginação e curiosidade do leitor. Kafka é um milhão de vezes melhor que Eça de Queirós, por exemplo. Teatro é uma maravilha porque o ator some dos olhos do espectador, ou aparece sem explicar por onde é que andou tão sumido. Não consigo compreender quem retira esse elemento essencial do teatro para torná-lo todo iluminado e visível, sem bastidores escuros. Mesmo quando a peça acaba e o público já está no hall do teatro preparando-se para ir embora, acho um crime inafiançável o ator que aparece em seu traje à paisana entre os espectadores. Ou aquele espectador que espera o ator sair só para tirar a prova de que era ele mesmo quem estava debaixo dos refletores há pouco. Deveria haver um pacto de cordialidade entre público e ator: um pacto de distância, de pelo menos um respeito ao mistério que ainda se prolonga daquilo que acabou de ser testemunhado por todos. Teatro é mais próximo da magia que da tese acadêmica, para esse último departamento existem os chatos. Para o primeiro, os loucos.

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segunda-feira, 19 de junho de 2017

Tem coisa melhor que erguer castelos de cartas que desmoronam ao menor sopro ou lufada de vento? Teatro é justamente isso. Só que ao invés de cartas de baralho, gente de carne e osso. Um empurrãozinho e cai tudo, sem dó nem piedade. E se for para remontar, só vale a pena se for pela memória do fracasso do equilíbrio anterior que levou tudo abaixo. E é essa memória que qualifica a coisa toda. Não se recompõe uma peça de teatro pela meta do equilíbrio, do sucesso alcançado, mas pela certeza do seu iminente desmoronamento, ou da lembrança das cartas ao chão. O artista do palco é um exímio experimentador do fracasso. E é por isso que o teatro é pedagógico, porque ele não poupa ninguém, nenhum trono se mantém intacto, nenhum império se consolida, nenhuma dinastia lega herdeiros. E a pedagogia não é só poética, é ética também para além da cena. Já imaginou o quão melhores seríamos se carregássemos a consciência de nossa pequenez para cada gesto público e diário?