quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Uma peça de teatro é só uma peça de teatro. Se fosse uma ponte, deveria precaver-se de não ruir. Se fosse um prédio, que fosse sólida o suficiente para não desmoronar. Um veículo de transporte? Então haveria de sustentar as engrenagens e assim evitar enguiçamentos. Uma peça de teatro não é nada disso. Não responde a urgências ou utilidades concretas. Uma peça de teatro não responde a utilidade alguma. É só e tão somente uma peça de teatro. Não carrega expectativas prévias, não promete soluções futuras, não traz consigo manual algum de funcionamento. Uma peça de teatro é só uma peça de teatro que começa, dura, e acaba. É nessa transitoriedade efêmera onde finca o seu direito de existência. Não é preciso conferir outro grau de necessidade e importância a uma peça de teatro do que aquele materializado num sopro que se dissolve no ar. E caso imaginamos que um sopro que se dissolve no ar é pouco para uma peça de teatro é porque ainda não entendemos o que é um sopro, tampouco entendemos o que é uma peça de teatro. A rigor, tudo isso tem a ver com uma certa consciência do que é a vida. Uma peça de teatro é uma pequena caixinha de música que recupera concretamente a insignificância da nossa importância. O sopro é dessa qualidade. Não somos solistas de orquestra alguma. Não somos protagonistas de nada. Não temos direito a reivindicar monólogos ou plateias que nos aplaudam. Uma peça de teatro é só uma peça de teatro. E a sua relevância está justamente em provar que é apenas um sopro que se desmancha no ar. O ator é feito dessa matéria de consciência da sua inutilidade, de ser ele, o ator, mais uma minúscula haste metálica no meio de uma igualmente minúscula caixinha de música.



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segunda-feira, 28 de setembro de 2015

No fim da tarde, há pouco, ligam-me de uma agência publicitária cujo nome ao certo não me recordo mas que parecia, certeza absoluta!, invocar a marca de algum chiclete tutti-frutti com cheirinho gostoso, perguntando se eu aceitaria fazer um teste para emprestar a minha voz para o cliente do produto X do ramo das necessidades contemporâneas Y (porque, veja bem, é preciso encontrar a voz certa para o produto X do ramo das necessidades contemporâneas Y). Como descobriram o meu contato eu não faço ideia. Recusei. Insistiram na ideia ao revelar o quanto eu ganharia de cachê caso fosse aprovado (porque, veja bem, não basta fazer o teste para o produto X do ramo das necessidades contemporâneas Y, é preciso ser aprovado!). Recusei uma segunda vez. Lembraram, então, que havia um cachê teste de 100 reais (porque, veja bem, há quem empreste a voz, ainda que a voz não seja aprovada no teste para o produto X do ramo das necessidades contemporâneas Y, pensando somente em abocanhar os 100 reais do cachê teste). Recusei pela terceira e última vez. Agora, aqui no shopping onde estou para assistir a um filme, e cujo mesmo prédio abriga uma conhecida escola de formação para atores (porque, veja bem, fazer compras e pensar em arte são coisas que devem caber perfeitamente na mesma sacola) vejo, então, um anúncio de 2 atores - desses atores de rosto hidratado, símbolos perfeitos da saúde folhetinesca das telas de TV - estampados em fotos enormes e trajados cada qual com uma camiseta em que a seguinte inscrição aparece em letras garrafais: 'Escola X, EU FIZ'. Ao lado do referido anúncio, um outro anúncio faz propaganda do que está atualmente em cartaz no teatro que habita a mesma instituição de ensino (que habita o mesmo prédio que o shopping, ou que é o próprio shopping): uma peça escrita pelo dramaturgo Gabriel Chalita.
Neste instante, aqui onde estou, sorvendo um café antes de entrar na sala de exibições para assistir ao filme, penso cá comigo se eu não deveria fazer um workshop com algum boneco de posto de gasolina (daqueles infláveis que se erguem pela base através da ventoinha poderosa de ventiladores gigantes) para aprimorar, enfim, as minhas parcas habilidades de intérprete dramático.

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Olha, faz tempo que aprendi a desconfiar de tudo quanto é conceito. Adoro filosofia. E adoro filosofia justamente porque a filosofia é um balaio de gatos danado, um criando um conceito diferente do outro, e salve-se quem puder. Uma eterna nuvem de abstração tormentosa entre Palmeiras versus Corinthians. Mas, por alguma razão, os filósofos são os primeiros a desconfiar de que o conceito que defendem consegue, de fato, resumir uma mínima possibilidade de alcançar a verdade. E lá se vão eles em busca de novos conceitos, contrariando, às vezes, até mesmo a si próprios, aos conceitos que criaram como ponto de partida no início de suas empreitadas. Os filósofos são essas máquinas invejáveis de criar conceitos e de destruir conceitos. Vivem, os filósofos, sempre nesse intervalo de desconfiança eterna, arquitetos do edifício que eles mesmos dão conta de por abaixo. Por isso que a filosofia é bastante irmã de outro terreno não menos barulhento e insolúvel: a arte. Ambas, arte e filosofia, são laboratórios de consciência. Produzem conceitos e universos que se desmancham no ar tão logo aparecem. E nada interferem na vida. E é por essa razão que arte e filosofia são departamentos que me enchem os olhos. Porque ambas sabem, a arte e a filosofia, que a vida corre o seu fluxo natural, e que tentar domá-la, doutriná-la com conceitos forjados pela imaginação, razão ou ignorância, que reorientar o curso natural da vida, dos desejos e pulsões imanentes à vida, é, enfim, de uma estupidez espantosa. E quando vejo um tantão de gente preocupada com a legitimidade de um conceito enquanto espelho de determinado ideal concreto de comportamento, seja ele o conceito de família ou do raio-que-o-parta, ocorre-me uma vontade maluca de oferecer aos donos dessa contenda inútil um pirulito de tutti-frutti para lamber. Porque, no frigir dos ovos, a idade da creche ainda não foi superada. Idos anos em que sujar a fralda, parece-me, não serviu de exemplo algum para que o cérebro de hoje soubesse aguçar os sentidos e saber separar aquilo que é fedorento daquilo que não é.



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A boa personagem obriga o ator a dançar...


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sábado, 26 de setembro de 2015

Ser ator tem infinitamente mais a ver com arquitetura do que com o talento para escarafunchar a alma humana. Quem faz esse papel é o dramaturgo, os poetas, os filósofos. Nós, atores, somos no máximo peões de obra. O que já é de uma beleza sublime.



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Senhores? Serei franco. Tenho desejos inconfessos de pendurar de cabeça para baixo e servir para os abutres almoçarem quem usa o termo 'nasceu' na ocasião de uma estreia de peça de teatro. Senhores? Convenhamos! Uma peça de teatro não nasce, só estreia mesmo. E quando acaba, não morre não, só vira purpurina. Porque essa coisa de 'nascer' remete imediatamente a rebentos remelentos, que choramingam e sujam as fraldas minuto sim minuto não. Senhores? Querendo procriar, que procriem! Mas deixem o teatro longe da maternidade das vossas querências. Ou melhor! Não procriem não! O que não falta nesse palco da existência são bípedes falantes iguaizinhos a vós que estais aí a matar o tempo ao ler essa nota de profunda relevância. E, lembrem-se: ao subir ao palco, não nasçam! Pelo amor de Deus Pai!



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Sentado aqui onde estou, numa cadeira vazia dentre tantas outras cadeiras vazias da plateia do teatro onde em breve as luzes se acenderão para mais uma sessão da peça em que participo como ator... O palco também está vazio. Tudo silencioso e sem vida. Somente eu e mais ninguém. E penso cá comigo quantos outros tantos atores como eu já pisaram nessas mesmas tábuas. E quantos outros tantos hão de me suceder nesse simples ato de pisar nessas mesmas tábuas. E para quantos outros personagens servirão de intérpretes como eu o faço agora. Talvez, quem sabe, o mesmo personagem que hoje cabe a mim representar e que lá atrás já foi vestido por outros. A grandeza do teatro, parece-me, não está tanto nesses instantes em que algo acontece - a encenação propriamente dita -, mas nessas fissuras ocas de tempo, feito sincopas, nas fronteiras de um antes e um depois, quando a espera de que algo aconteça, ou o luto de escuridão que sucede o acontecido, inaugura uma consciência especial: a de que somos igualmente minúsculos e poderosíssimos, parte ínfima e integrante de um todo eterno e a própria materialização dessa força de potência eterna. Aí está o vínculo espiritual do teatro. É preciso que haja um templo para que se perceba isso. E o templo já é o teatro na sua arquitetura de teatro. Só o teatro, e basta. Quando Shakespeare diz que o mundo é um palco, reiterando que somos nós personagens de um enredo cuja vida atualiza toda vez em que o sol desponta no horizonte, deveria ele ter completado a sentença invertendo os termos, assim: o palco já é o mundo. Porque toda a infinita grandeza da natureza humana está condicionada à certeza de que somos marionetes articulados por sabem-se lá quais fios invisíveis. Se o grande está contido no pequeno (o mundo é um palco), o pequeno (o palco) é o responsável por engendrar o que em nós não pode caber no interior de qualquer dimensão concreta.


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quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Uns fingem que são atores
Outros são atores porque fingem
Os primeiros vem em baciada
Os últimos, a granel


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quarta-feira, 23 de setembro de 2015

Às vezes a personagem sou eu. Às vezes sou eu quem sou a personagem. Às vezes somos dois, eu e a personagem, e o que me resta habitar é o intervalo entre ambos. Um abismo inteiro de silêncio e vazio.


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segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Ser ator é de uma maravilha sem tamanho porque devolve-me em dobro o desejo que recorrentemente guardo comigo de virar monge, de galgar o cume rarefeito do Tibete e por lá ficar, sereno, para todo o sempre. Ser ator é conviver com essa paradoxal equação: quanto mais se gasta o verbo, mais vontade há de silenciá-lo.


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domingo, 20 de setembro de 2015

Todas as vezes em que alguém elogia um ator dizendo que ele 'se entregou ao personagem' e que 'a coisa veio lá de dentro' eu imediatamente tenho uma vontade doida de largar tudo e me candidatar a caixa de supermercado...



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Senhores? Sejamos francos... Não há essa história de personagem real. E se a personagem é real é porque é uma péssima personagem. E se o ator é suficientemente talentoso para tornar a personagem real é porque ele, o ator, e a personagem, são, ambos - além de super reais -, igualmente {e ao quadrado}, super ruins, desse tipo de ruindade de dar dó na alma.



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Ficaremos na história como a espetacular era dos atores-sem-graça, patéticos, mimados ao extremo e em constante busca por atenção. Somos igualmente representantes dessa era composta por aplaudidores-de-atores-sem-graça, plateia imensa e polvilhada de fãs histéricos, barulhentos e de inteligência equiparável à soma das ervilhas duma lata de conservas. Somos dessa era do naufrágio completo das personagens, das grandes máscaras míticas, dos textos de alcance cosmológico. Somos pertencentes a esse tempo mixuruca, adepto do valor supremo ao ego inflamado de intérpretes todos talhados pela mesmíssima moldura da afetação televisiva. É como se estivéssemos todos, agora e nesse exato instante, chupando os dedões, enfiados em fraldas com cheirinho tutti-frutti, habitantes de uma gigantesca creche lotada de adultos barbudos e retardados.


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quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Sabe por que ser ator (de teatro) é a melhor profissão do mundo? Porque não há empresa que financie o suor que pinga da sua testa quando os refletores são acesos. Pode haver um milhão de patrocinadores envolvidos para que a empreitada aconteça, mas no instante em que a coisa de fato acontece, não há jeito de atar o rabo do ator com nenhum empresário, nenhuma ideia prévia, nenhum contrato carimbado ou desviado por debaixo do tapete. Ou o ator é um náufrago, um doido solitário em sua solidão por encontrar um interlocutor, ou não é ator, ou não é teatro. Em tempos de discussão sobre financiamento de políticos, sou eu um eterno privilegiado, desde sempre livre, longe de qualquer compadre ou comadre que me queira bem...



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segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Não há nada mais indigno do que um ator fazer uso de seu ofício para revelar o que sente na sua intimidade. Não há verdade alguma em torcer as entranhas atrás da legitimidade de uma emoção. Isso chama-se corrupção. Um ator que revela a si próprio é sempre um ator corrupto. Não há nada mais indigno do que um ator fazer da sua prática uma vitrine daquilo que ele é...

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Lidar com as banalidades imediatas. Com os pequenos gestos. Prestar atenção numa única respiração. Ajustar um passo, ou no máximo dois. Recolher ao invés de estender. Olhar para lá quando só se olhava para cá. Existir em pequenas dimensões concretas. Essa é dimensão infinita do trabalho do ator. E já é muito, muitíssimo! Trabalho para uma vida inteira! As grandes filosofias, a enxurrada de emoções, a epopeia de um pensamento formulado. Todas essas margens abstratas são como o oceano. Navega-se nele sem precisar pensar que se navega. O necessário é ficar atento ao leme, aos ventos, ao menor sinal de terra à vista. Somos nós, atores, muito mais marujos do que filósofos, poetas, demagogos, ou o que quer que o valha.


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domingo, 13 de setembro de 2015

Evidente que o único cenário possível de Elsinore é um teatro. Evidente que Hamlet é um ator. Não há exercício metalinguístico algum na peça dentro da peça. Tudo é peça desde o início. Tudo é teatral do princípio ao fim. Explicitamente teatral. A única diferença entre Hamlet e as outras personagens da peça é que Hamlet sabe que é um ator. As outras personagens, ainda que sejam igualmente fingidoras tal qual Hamlet mostra-se ser, ignoram que o são. Acham que Elsinore é Elsinore e não uma Elsinore cenográfica. O mundo como um palco só faz sentido para Hamlet. E é precisamente essa consciência, a do mundo como um enorme teatro, que forçosamente torna Hamlet um condenado. Fora Hamlet, as demais personagens creem ser quem são, ou acham que são quem são. São como esses atores fajutos formados pelos métodos Fátima-Toledo da vida. Passam uma eternidade tentando virar a personagem, ou acreditando que são quem acham que são, e pouquíssimo ou quase nada enxergam a si próprios. Pouco ou nada desconfiam de que a única coisa certa da profissão de ator é a dor e a impossibilidade de virar coisa alguma, de ser coisa alguma senão um renomado fingidor. Hamlet só é o principal personagem da história da dramaturgia porque Hamlet é um ator. Um ator que sabe que é um ator. E é essa, tão somente essa, a sua fatal condenação.



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sábado, 12 de setembro de 2015

O bom personagem sempre diz ao ator: 'cale o bico! Não emita opiniões! Seus sentimentos são indiferentes! O que viveu antes não importa em nada! Nosso trato é o seguinte: macaqueie! Mas macaqueie somente o suficiente - sem exageros!, faça vibrar essas benditas cordas vocais, e, por fim, caso sinta uma vontade insuportável de espirrar, espirre oras!... O restante é todo comigo.'

- Os bons personagens sempre assassinam os atores. Esses são os bons personagens. Os excelentes atores, por sua vez, são vítimas exemplares. Os péssimos personagens e os péssimos atores dão-se sempre as mãos. São ambos, os péssimos personagens e os péssimos atores, enamorados eternos.


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sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Como o vento. 
Shakespeare é uma enorme árvore cujas palavras pairam penduradas em cada um de seus galhos. Nós, atores, somos o vento. Como se fôssemos o vento, percutimos as extremidades dessa enorme árvore, fazendo, então, uma enxurrada de verbos, adjetivos, substantivos, conjunções mil, interjeições infinitas, rimas e sentenças, enfim, vibrarem na mesma potência com que o vento, invisível, fere o cume dos eucaliptos em dias de ventania. Nós, atores, somos como o vento, invisíveis em sua forma habitual, sem identidade própria, escondidos por detrás da proteção da máscara. Se aparecemos, é para repetir a força do vento, para fazer a folhagem farfalhar, para dar passagem ao turbilhão de textos dessa frondosa e espetacular árvore shakespeariana...


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quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Estou num cartório. Num desses cartórios onde as pessoas entram para carimbar papéis e provarem que são de fato quem dizem que são. Entrei no cartório sem motivo algum. Sou quem sou e não tenho papel nenhum para carimbar e provar que sou esse, de fato, quem escreve essas linhas imprestáveis. Ao menos até quando me provarem o contrário, sou esse mesmo. Continuo sendo esse mesmo. Quando sinto que sou um miserável, que não valho um vintém furado de latão enferrujado, eu costumo fazer exatamente isso: levar as minhas pernas até o cartório mais próximo, sentar numa cadeira, e deitar os olhos nessas pessoas que carimbam papéis para outras pessoas que como eu precisam provar que são quem de fato são. Hoje eu não preciso provar patavinas nenhuma. A única certeza é a de que eu não sou tão miserável quanto pensava que era. Isso eu consigo provar. Mas só agora. Só depois de ter levado as minhas pernas a esse digníssimo estabelecimento onde as pessoas carimbam papéis para darem aos outros o nobre direito de existir com a legitimidade que toda alma nobre merece...



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O violino está para a personagem assim como o arco está para o ator. E assim como o arco já é o próprio violino, o ator já é a própria personagem. O erro é querer tocar o violino. O erro é querer interpretar a personagem. O arco e o ator, é aí que é preciso investir atenção. O violino e a personagem já estão, desde o princípio, prontos.




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sábado, 5 de setembro de 2015

O ator se salva pela repetição. O ator repete-se sempre. É através da repetição que o sentido maior do seu ofício se realiza. É ele, o ator, uma máquina de incansáveis repetições. Hoje as luzem apagam-se para o mesmo espetáculo repetido ontem. O mesmo espetáculo que amanhã irá repetir-se uma vez mais. E terminada a semana, uma repetição da semana anterior, a semana seguinte promete seguir repetindo o mesmíssimo espetáculo, e assim sucessivamente, e até que o conjunto dos meses formem um apanhado geral de repetições. Uma temporada de espetáculos para o ator é uma coleção repetida de repetições. É evidente que há quem diga que tudo isso é falso, que não há repetição alguma, que cada noite é uma noite, que o ator nunca carrega o mesmo de si para todas as sessões. E é evidente que isso é verdadeiro. Mas só é verdadeiro porque há uma moldura única onde encaixa-se um mundo completo de contornos imutáveis. O ofício do ator compreende precisamente esse esforço de recuperar e manter uma estrutura prévia, bem acabada e ensaiada. Naufraga, evidentemente. E naufraga porque sua tarefa é sempre impossível, uma vez que é impossível engendrar uma repetição perfeita daquilo que se imagina um espetáculo ideal. Mas o ofício é justamente esse: o de permitir-se naufragar recorrentemente pela recuperação das fundações de um ideal inalcançável. É por isso que a repetição para o ator tem peso igual ao de um mantra espiritual. É na repetição que o ator se agarra. É sempre um desejo de tornar-se o que era, ou o que foi. O tempo do ator não é o tempo do presente ou do futuro. É um tempo de passado, mítico, de lembrança pura, sem contaminações com as intercorrências do instante em que aparece ao vivo aos olhos do espectador. E é evidente que aqui ele naufraga mais uma vez. Porque é imperioso que o ator saiba lidar com aquilo que lhe apresenta o instante. E é nesse intervalo entre o que era e o que é preciso ser que o ator desequilibra-se... Mas desequilibra-se como o faz qualquer um na vida. A repetição dos dias nada mais é do que uma metáfora maior daquilo que se repete dentro do teatro. O ator se salva porque experimenta na segurança do campo simbólico aquilo que o cenário dos dias muitas vezes cega aos olhos do cidadão comum. A repetição feito ladainha, reza sistemática, cenas sucessivas, é uma espécie de revelação do nosso real tamanho - dentro e fora da cena -, sempre menores frente àquilo que previamente sobrevive a nós... Repare nas carpideiras! A grandeza das carpideiras não está em chorar por defunto algum, mas em repetir sistematicamente as mesmas lamentações. É a métrica que salva a alma! 

Ser ator é sobretudo um exercício ético e filosófico. A estética é consequência.

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quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Foi me dado o talento, ou o azar, de emocionar-me com as coisas que não existem. Um movimento de uma sinfonia, as cores impressas na paisagem pintada de um quadro, o parágrafo de um livro, a tristeza de um palhaço, um movimento de dança... Tudo isso me é fulminante. Sinto dor no coração com tudo aquilo que me convida a afastar-me da vida. As minhas lágrimas são fruto de metáforas. O meu riso igualmente é medido por contornos que não interferem em nada no fluxo ordinário dos dias. Eu mesmo escolhi como ofício a prática daquilo que nos convida a esquecer das fronteiras miseráveis de nossa existência. Tornei-me ator. E tenho absoluta certeza de que sou ator não por haver escolhido tornar-me ator, mas por falta completa de escolha. É um fardo ser ator. Mas um fardo maravilhoso. Ter o direito inalienável de gozar das intermitências daquilo que já veio a nós como contrato assinado é coisa que não cabe em valores financeiros. Crise econômica nenhuma abala um ator. Nossa vida é outra vida. A vida, essa primeira vida conhecida por todos, incluindo nós, atores, ela própria, a vida que somos obrigados a viver, sempre me pareceu um equívoco bastante suficiente para que eu pudesse importar-me com as suas recorrentes tragédias. Mas, e quando as pontas dos dois extremos aproximam-se de tal maneira coincidente que a dureza da realidade ameaça a mais pura das belezas de não conseguir alçar voo? Amanhã volto ao teatro para mais uma semana de Tempestade, o último e incrível texto escrito por Shakespeare. A história de um mago demiurgo que provoca um naufrágio de mentira. Próspero arma um teatro em busca da sua redenção através do perdão daqueles que no passado o fizeram mal. O mundo é um palco. Os ponteiros acertam-se na brincadeira de fingir um desastre. O mundo fora dos eixos de Hamlet é equacionado pela força da paz e pelo perdão. Shakespeare despede-se do teatro dando um voto de confiança e amor ao homem. O mesmo homem que por tantas peças o inspirou a derramar sangue na pele de personagens tirânicos. Mas tudo, enfim, parece correr para um destino comum. A vida é um sopro soprado pela boca de um idiota e sem sentido algum. Ou talvez sejamos todos feitos da mesma matéria efêmera e etérea dos sonhos, desmanchando-nos no curto período que dura um estalar de dedos. Nesse dia de hoje, impossível não lembrar-me de Adorno quando o filósofo pergunta-se sobre as chances da poesia sobreviver à Auschwitz. Impossível não lembrar-me do menino sírio de apenas três anos afogado na praia. Afogado de verdade. Impossível não pensar em mim, que tenho por dever inventar afogamentos diários. O que sou eu? Um canastrão distante dos acontecimentos que deveriam arrebatar-me? Ou já sou eu, sem o saber, um arrebatado desde o princípio? Quem domina quem? A vida a mim, ou eu à vida?

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Suassuna e Shakespeare são irmãos. O sertão do primeiro é 'o mundo é um palco' do segundo. Ambos são artistas da materialidade do teatro, da poesia forjada na mentira das tábuas do palco. O medievalismo de Suassuna repete-se nas fábulas sempre circulares e fantásticas do Bardo inglês. Há um microcosmo mítico latejando em ambos os autores, acompanhado por personagens arquetípicos que transcendem qualquer psicologismo ou tentativa de aproximar a vida da arte. A arte vence em ambos. E só vence porque alcança a vida, senão a particularidade imediata dela, a sua essência interior, imutável. Suassuna e Shakespeare são dois monumentos teatrais. São, ambos, teatro puro. E deveriam, ambos, ser exercício obrigatório para artistas dessa nossa geração tomada pela baboseira da intimidade, do eu-afetado, do preenchimento de uma individualidade que é sempre ínfima e desimportante frente a qualquer máscara poética.


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terça-feira, 1 de setembro de 2015

Há uma ética fundamental no distanciamento, nessa prática de não identificar-se, de estar à margem para ver e sentir o que há do lado oposto à margem onde se está. É como o ator que entende a sua personagem como um monumento artificial, estrangeiro a si próprio. Esse intervalo entre um e outro, como a distância entre uma margem e outra, é o que permite o verdadeiro conhecimento, aquele que usa o coração não para tudo deglutir e apropriar, mas para reconhecer que só quando há oposição é que é possível saber o que há de comum, aquilo que pertence ao meio. Afinal de contas, o rio não seria um belo rio, sequer um rio qualquer, não houvesse duas margens opostas e contrárias que o emoldurasse e fizesse correr suas águas...



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Meus impérios todos são de carta-de-baralho. Desmoronam fácil... Mas erguem-se tão rápido quanto tombam. Vario entre o Rei de Copas e o Valete de Espadas... Às vezes faço as vezes de Dama de Ouros também, mas só quando o mar está para peixes. O Ás eu sou sempre - seja de qual naipe for! Vivo ou morto, sou uma canastra real.



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Penso naquelas profissões que distribuem tristezas e alegrias em doses homeopáticas até o instante em que o tempo esgote tantas temporadas de risos e prantos. E penso agora no ofício do ator, que a cada santa noite, após o apagar das luzes, faz drenar todas as energias até a última gota de suor. O ator sai de cena desejando aposentar-se imediatamente. Nunca mais existir depois de tanta existência concentrada. E é essa enxurrada de tantos anos em poucas horas, um viver à vista e nunca em prestações, o que precisamente lhe confere uma dignidade única.



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