quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Acho o aspecto emocional uma ferramenta poética importantíssima para o ator... justamente porque ela não serve para coisíssima nenhuma quando ele é ator. Não é uma maravilha ter uma coisa e saber que ela não serve para coisíssima nenhuma no exercício do seu ofício? É como se o tenista tirasse da sua mochila uma raquete de tênis e um macaco hidráulico desses de trocar pneu de carro. O tenista guarda de volta o macaco hidráulico e fica com a raquete de tênis. O que não serve justamente tem serventia para escolher o que deve servir. Eu acho uma pérola da descoberta saber disso. Por isso que eu guardo comigo a sete chaves todas as minhas lamúrias sentimentais, porque sei que se elas resolverem se dar ao luxo de sair por aí para dar uma volta, quem empobrece sou eu, ou o ator que imagino que sou.


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Um slogan de uma escola de formação de atores que diz que 'ser ator é sentir' explica sem defender tese nenhuma a razão pela qual a Susana Vieira é o nosso exemplo maior de atryz... Já tivemos Cacilda Becker nesse posto, já tivemos Sérgio Cardoso, Paulo Autran, Bibi Ferreira, Marco Nanini... E pouco adianta contrariar meu argumento evocando o nome da Fernanda Montenegro. Ela é reconhecidamente e merecidamente uma sumidade. Mas é entre nós, gente do ramo. Falo da ideia geral do que se pensa sobre o ator. Do povo em geral que associa o RG à pessoa. Não é a toa que Janaína Paschoal é personagem do nosso tempo, que Marcelo Serrado esteja nos píncaros da fama ao interpretar um juizeco que advoga em favor do seu próprio sentimento. Assim como não é a toa que exista por aí campanhas de polvilhar  pelas esquinas. Admitamos: pertencemos a uma geração tapada até a tampa. Que idolatra tapados, faz propaganda de gente tapada, e forma gente tapada elogiando o ser tapado que podemos, com árduo esforço (porque não há nada que demande mais suor que a burrice), vir a nos tornar.


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segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Discordo totalmente de quem sobe ao palco e pauta o que diz dizendo que a vó Tereza da última fileira deve entender o que se passa debaixo do refletor... A vó Tereza deve se interessar pelo que acontece debaixo do refletor, isso sim. Se a ideia é educar a vó Tereza, então que a vó Tereza seja gentilmente matriculada num cursinho de emancipação das qualidades cognitivas do intelecto, ou então conduzida para diante da televisão para assistir a um melodrama bíblico ou coisa afim. Aliás, as peças de que eu mais gosto são aquelas em que eu subo ao palco e eu mesmo não faço a menor ideia do que está de fato acontecendo. Se a plateia entender alguma coisa, que ela faça o favor de me explicar depois...
Viu, vó Tereza? Seremos colegas de curso!


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quarta-feira, 23 de agosto de 2017

Personagem não 'se constrói', personagem já existe construída. O esforço é não destruí-la achando que é tarefa sua dar existência ao que já nasceu existindo. Repare que todas as vezes em que o ator diz haver 'construído' a personagem quem aparece é o ator, nunca a personagem 'construída'. A personagem aparece em primeiro plano quando o ator não perde tempo em se referir a ela, quando o ator sabe que é inútil acreditar que há uma personagem construída fruto de seu esforço íntimo e particular. Mas isso diz respeito às boas personagens e aos bons atores, evidentemente. Há um contingente gigantesco de péssimas personagens e péssimos atores que firmam exatamente essa parceria desastrosa: por um lado a personagem exige do ator o seu direito de existência como se fosse um protótipo de criança mimada, por outro, o ator crê piamente que é tarefa sua tomar para si as dores dessa mesma personagem carente de vida.

Adoraria ser uma mosca para testemunhar o que Hamlet faria com um desses atores tarimbados na geração da lágrima dramática, os mesmos atores que acreditam que representar é viver ou dar direito de vida à personagem.

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segunda-feira, 21 de agosto de 2017

Ontem, no teatro, nada emplacava. Estávamos todos sem talento, plateia e elenco. Mas persistirmos até o final, a plateia na sua função de ser plateia, e nós, atores, na função de sermos atores diante da plateia. E isso já é um talento e tanto. Plateia e atores insistindo em persistir, e até o final. E, ufa!, chegamos até o final! Essa é uma das maravilhas do teatro. Haja o que houver, é imperativo que se chegue ao final. Quem experimenta essa sensação experimenta também a certeza de que há algo necessariamente maior do que essa instância de angústia íntima, particular, que nesses dias de miséria egocêntrica faz interromper o giro do mundo com um grito afetado que diz PAREM JÁ O BENDITO BONDE QUE EU QUERO DESCER!

Retificando! Ontem estivemos maravilhosos, nós, atores, e eles, a plateia!

Viva o teatro!

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quinta-feira, 17 de agosto de 2017

Saber-se ridículo livra você de ser um completo idiota. É essa, somente essa, a ética mais importante do ator. E assim o é porque cumpre duas fundamentais funções: a do palco e a da vida.

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Sentar-se num banquinho de madeira no centro de um palco vazio é coisa dificílima de se fazer... Um ator que faz isso sem exigir qualquer direito de existência faz qualquer coisa, qualquer personagem, vai da tragédia grega aos dramas contemporâneos, mastiga bifes intermináveis e povoa silêncios de precisão milimétrica. Porque a razão da coisa está justamente no banquinho e no palco vazio. É deles de que se trata, nunca do ator. Se o ator senta-se no banquinho num palco vazio é porque o palco vazio e o banquinho disseram à ele: sente-se. Só isso. E já é dificílimo de se cumprir. Agora, a pergunta pertinente é quando é que o palco vazio e o banquinho no centro do palco vazio convidam o ator a se sentar? Um sentar num banquinho sem ser convidado para tal configura que tipo de qualidade se presença? Me parece que o método mais justo de interpretação dramática para os tempos que seguem - tempos de vaidade, de auto-promoção, de maquiagem corretiva nos olhos - é esse mesmo: o do banquinho de madeira no centro de um palco vazio. Quem sobreviver a isso sobreviverá ao que vier a seguir.

Viva o teatro!

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domingo, 13 de agosto de 2017

Todo mundo deveria fazer teatro. Mas não para fazer teatro como fazemos nós, esses que insistem em reivindicar uma importância ao despropositado ofício de fingir quem não se é e fazer disso uma teimosia quase diária e ininterrupta - nem todos precisam carregar o fardo de tamanha loucura! -, mas tão somente para se ter uma mínima sensação e consciência elevada do que é convergir um esforço descomunal para algo que sabemos efêmero, passageiro, instante rapidamente engolido pelo tempo. Essa qualidade de existir para uma coisa que não dura, para um mínimo de minutos e segundos que escoam inexoravelmente através dos dedos, é de uma pedagogia fundamental para entender qualquer espécie de atividade fora do teatro. Porque dedicar tamanha atenção a algo que termina é também questionar-se a razão de existirmos, uma vez que para qualquer coisa que fazemos inevitavelmente é regra gastar energia com o que não podemos dominar. O ínfimo minúsculo do teatro, o foco fechado e difuso do refletor que ilumina um microcosmo nada importante, é também o exercício de celebrar o mistério de persistirmos nesse eterno esforço que é reconhecermo-nos falhos e incapazes e ainda assim seguir adiante com a próxima cena. Hoje, durante o espetáculo, vendo tantos bons atores ao meu redor, todos suando em bicas para uma coisa que dali a instantes deixaria de existir, testemunhando esse ridículo bailado coreografado mas que ganha uma dose gigantesca de dignidade diante dos olhares alheios, penso que o teatro cumpria com a sua maior função, que é exatamente a experiência concreta da enorme interrogação que nos move adiante sem que haja desejos de olhar para trás. É esse mistério que faz o abrir e cerrar das cortinas, e que nada mais é do que uma celebração coletiva dos nossos risos infinitos misturados às lágrimas que tampouco conseguimos deixar de verter. Já dizia o poeta que há mais coisas entre o céu e a terra do que pode sonhar a nossa vã filosofia. O teatro é só o canal disso tudo, sem querer nada ensinar ou explicar.

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quinta-feira, 10 de agosto de 2017

Repare que os nossos grandes atores tiveram uma escola essencial e que hoje nos falta: o rádio. Ator tem que saber falar. A assertiva é um tanto óbvia, mas não tão óbvia assim. Nossa geração é uma geração de gente que não sabe falar porque acostumou-se a se ver através da imagem, e dela fez o seu cavalo de batalha. O rádio exercia, pela própria indumentária de seu funcionamento, o que a máscara era nos tempos em que reinava como ferramenta poética: a função de esconder o ator. O que ultrapassa esse véu concreto e físico é a voz - até mesmo o corpo é consequência da emissão do verbo (creio profundamente nisso e discordo daqueles que pensam que corpo e voz andam juntos. A voz vai na frente! No princípio era o verbo e o verbo era Deus!) A nossa tragédia dos dias que seguem é só essa: sabemos como ninguém as regras de como pentear nosso topete, e, em contrapartida, somos frouxos, flácidos, sem energia alguma para emitir uma única frase com os desenhos sonoros que ela, em sua própria estrutura, nos convoca.

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domingo, 6 de agosto de 2017

Primeiro o teatro, depois o ator. Primeiro o aquário, depois o peixe. O ator não é o protagonista do teatro, assim como de nada adianta um peixe sem aquário... E se o peixe estiver no mar, tanto faz, ele não será notado, é como se não existisse para nós. O assunto do teatro é o homem, mas o homem concentrado, redimensionado, portanto, não é o homem da rua o que interessa ao teatro, é um homem ideal, forjado, inventado, exatamente como o peixe do aquário, que só é possível existir se houver um aquário. De nada adianta um método que jogue luz no ator para que ele seja verdadeiro no palco. O aquário é nitidamente um mar falsificado, e é justamente pela sua falsidade que o peixe dá conta de sobreviver. Se a água do mar fosse despejada num recipiente de vidro e o peixe jogado dentro, o peixe morreria. Há todo um sistema artificial de simulação da qualidade da água do mar. Por isso o peixe sobrevive, um peixe que não pode ser um peixe do mar.

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