sábado, 10 de dezembro de 2016

Uma vez eu fiz um espetáculo inteirinho com uma vontade fulminante de fazer xixi. Foi uma lição de vida. Me ensinou o que considero a função mais nobre do ator:

- Diante da plateia, faça rápido o que você tem que fazer, e depois vá resolver as suas urgências íntimas longe dos outros.



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Não se estuda 'passado' nem referências 'sociais' de personagem nenhuma. Puxar a árvore genealógica da personagem também não é de grande ajuda. Imaginar o que a personagem jantou antes de existir ao olhos da plateia, me parece, é de uma estupidez ímpar. Que tal pensar, ao contrário, que a personagem acontece quando o ator também acontece? E que ambos acontecem ali, no presente imediato do abrir das cortinas? E que a personagem não dura. Acaba quando o ator acaba de representá-la? Que tal não abrir mão da coisa mais preciosa que o teatro tem a nos oferecer: É TUDO DE MEN-TI-RI-NHA?


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A perda da capacidade de narrar uma história é coisa significativa dos tempos atuais. É a perda igualmente de uma ética, de um trabalho para além do indivíduo. Hoje, governa tudo o que é dramático e esquecemos do épico, daquela atitude de estar diante de uma audiência com a tarefa de contar algo. Hoje, o bom ator é aquele que chora, que torce as tripas, que se debate no chão em dor sentimental. O ator típico da TV, enclausurado em seu Close-UP de emoções em ebulição. Queremos saber tudo dele, e ele se dá ao direito de contar tudo sobre si. A capacidade perdida de contar uma história é um outro terreno: o da razão e, sobretudo, o da imaginação. E isso também implica em um prejuízo político aos tempos atuais. Porque tudo o que é sentimental é mais fácil de ser manobrado. Perde-se a capacidade de pensar, de imaginar, de contribuir enquanto indivíduo para uma sociedade mais inteligente. Quem nasceu para o teatro hoje já nasceu para resistir.


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domingo, 4 de dezembro de 2016

Shakespeare é teatro, e, sendo teatro, basta que assim seja. Porque é de praxe incutirmos um milhão de análises sociológicas, antropológicas, pisco-fisiológicas, humanistas e umbandistas nas personagens shakespearianas. Que são só personagens de uma trama de teatro. E, sendo assim, assim está ótimo que continue sendo. E deveria ser assim também, dessa mesma forma, para o ator que representa uma personagem de Shakespeare: basta subir ao palco para representar uma personagem de Shakespeare. E as personagens de Shakespeare, maravilhosa vantagem!, já vem prontinhas, saídas direto do forno para serem representadas, sem a necessidade dos seus laboratórios pessoais, das suas sessões de terapia, dos seus mergulhos em pesquisas íntimas. Mas, então, se tudo é tão raso assim, por que raios é tão difícil representar uma personagem de Shakespeare? Talvez porque as personagens de Shakespeare já tenham nascido assim, com essa natural dificuldade em serem representadas. Porque, definitivamente, não será a sua tentativa de decifrar as personagens de Shakespeare o que as tornará interessantes à plateia. Por incrível que possa parecer, Shakespeare ainda é mais interessante do que eu e você, e o nosso esforço hercúleo de fazê-lo mais visível do que ele já é, e sempre foi, e muito antes que eu e você, juntos e somados, imaginássemos ser alguma coisa nesse mundo.



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sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Eu comecei gostando de teatro imaginando o que é que o ator estaria fazendo na coxia, longe das minhas vistas. A presença do ator no palco sempre me encantou na mesmíssima medida de seu sumiço para fora dele.



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Viva o nosso Peer Gynt!

Uma das cenas de que mais gosto de fazer é a de uma cantoria coletiva regida por um maestro. E dura pouquíssimo, segundos acho. Estamos todos do elenco na cena, e todos condicionados a uma métrica musical, perfilados, trajados com figurinos e debaixo de luzes fortes. Não há chances de interpretar nada. Não há espaço para se dar uma versão pessoal de nada. Só estamos ali, cercados por tanta coisa, emoldurados por tantas referências, que a própria ideia de personagem some, desaparece. E a canção nos orienta a seguir por ela. O maestro guiando nossas vozes. Já não somos individuais, o único destaque que existe é o do corpo coletivo que aparece com força. Somos então uma trupe. E de cara limpa fincamos os pés no chão para cantar e contar o que se canta. É só isso. Nada dramático, só épico. Daquele tempo em que teatro era de fato um exercício de olhar para a plateia e contar uma história para a plateia. E dá um prazer danado. Acho que há uma ética na estética. E essa cena traduz o que penso de teatro. Se não houver a força de uma trupe, não há terreno aberto para ninguém atravessar o palco com as próprias pernas. Em tempos de choramingos melodramáticos e crises emocionais de toda espécie, de elegia ao ator-sensação do momento, de babação de hormônios aos astros-da-imagem, do culto ao EU, o teatro sobrevive resgatando a sua origem: evento público e coletivo. O grupo sobrevive. Sortudo sou eu. Sortudo somos nós. Viva!


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