quarta-feira, 16 de maio de 2018

É lugar dos disfarces, mas, sobretudo, também da revelação. Talvez o teatro seja o terreno por excelência da sinceridade. Ou se é ator, ou não se é ator, e finitto. Minto. As artes artesanais também são dessa alçada. Mas gosto do paradoxo verdade-mentira, que é matéria própria do teatro e de nenhum outro território. Ator verdadeiro mente tão verdadeiramente bem que recebe sua justa gratificação por isso. Ator ruim luta tão verdadeiramente bem para ser verdadeiro consigo que  nunca consegue esconder a sua genuína ruindade. Isso no teatro, evidentemente. Porque fora do teatro há um elenco tão numeroso quanto a torcida do Flamengo que se passa por atores, e nós acreditamos que assim o sejam, porque fora do teatro a burrice ganha atributos de louvor ao nada, e para a qual dobramos a espinha em sinal de profunda reverência, ou descabelamos a peruca em manifesta histeria. E há plateias ruins também no teatro, mas elas também não conseguem nunca disfarçar a sua retumbante burrice (já imaginou um único lampejo de inteligência que houvesse por milagre do Padinho Ciço invadir os miolos dos componentes do auditório do Faustão? Orelhas de asno pós-doc em Harvard imediatamente brotariam em todos os convivas, e, imagino, um silêncio sepulcral de vergonha admitida reproduziria a cena seminal do Adão e da Eva reconhecendo ambos - um ao outro - as suas partes pudendas). Ao passo que, voltando ao teatro, a platéia boa sabe perfeitamente repudiar o ator ruim e combinar-se com o bom ator. E todos esses lados são translúcidos, claros como um cristal. Curioso! O teatro nunca engana, nem para um lado, nem para o outro. Se é ruim, é ruim para valer (é uma experiência maravilhosa testemunhar péssimo teatro, coisa pedagógica!). Se é bom, é bom de cima abaixo.


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Quem prepara elenco é o diretor. Essa figura up-to-date chamada de 'preparador de elenco' nada mais é do que um jeito bonito de se terceirizar o que é da esfera íntima do ator e do diretor, e de mais ninguém. Quem prepara o ator é a formação prática e intelectual (lê-se: acadêmica!) do ator, que, inclusive, serve tremendamente bem para separar picaretagem de trabalho criativo. Esse negócio de COACH, do sujeito que não sabendo fazer outra coisa nasceu para lhe soprar frases motivacionais no ouvido, ou então convencê-lo de que mamãe lhe era maligna na infância, razão pela qual seu olho esquerdo pisca mais rápido que a pestana direita, esse fulano, enfim, deveria ser extraditado prum arquipélago no meio do Pacífico de posse da obra completa do Paulo Coelho.
Nessa onda de privatizações, vão privatizar a vovózinha de vocês, e deixem meus miolos comigo que eu dou super conta.


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A personagem não existe. Olha que coisa libertadora? A personagem deve ser inventada, porque é de praxe das coisas que não existem não encher a nossa sacrossanta paciência com demandas do tipo faça isso meu filho que será para o vosso bem. Digo, as personagens boas não existem, porque sempre haverá aquela personagem que por ser péssima personagem não arredará o pé do seu ouvido exigindo que você se aproxime dela, lamba o prato de feijão como ela costuma lamber, que solte um gritinho de pavor com o mesmo timbre que ela grita de pavor quando vê uma barata atravessar a sala. As péssimas personagens sempre exigem a sua cumplicidade para com elas, pode reparar! 
Mas olha que paradoxo gostoso? As boas personagens existem também. Hamlet, por exemplo, existe há muito mais tempo que eu e você juntos e somados. E é da qualidade das boas personagens que existem não fazer nenhuma questão que você e eu existamos também. As boas personagens carregam essa indiferença monumental para conosco. Elas pedem que sejam inventadas, mas só são inventadas porque existem de fato, uma existência ali, na concretude das palavras impressas, na urdidura de uma trama que não quer a sua ou a minha anuência. As boas personagens estão sempre distante de nós, não permitem nenhuma cumplicidade, são estrangeiras a qualquer intimidade nossa, estão pouco se lixando para a nossa vocação sentimental de emprestar nossas lágrimas verdadeiras a emoção delas. Aliás, personagem boa nenhuma pede empréstimo de emoção. Exige, ao contrário, um contrato feito as claras: você me deixa em paz com os seus choramingos, que eu prometo não comprovar a tua miséria minúscula em relação a mim.

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