quarta-feira, 16 de maio de 2018

A personagem não existe. Olha que coisa libertadora? A personagem deve ser inventada, porque é de praxe das coisas que não existem não encher a nossa sacrossanta paciência com demandas do tipo faça isso meu filho que será para o vosso bem. Digo, as personagens boas não existem, porque sempre haverá aquela personagem que por ser péssima personagem não arredará o pé do seu ouvido exigindo que você se aproxime dela, lamba o prato de feijão como ela costuma lamber, que solte um gritinho de pavor com o mesmo timbre que ela grita de pavor quando vê uma barata atravessar a sala. As péssimas personagens sempre exigem a sua cumplicidade para com elas, pode reparar! 
Mas olha que paradoxo gostoso? As boas personagens existem também. Hamlet, por exemplo, existe há muito mais tempo que eu e você juntos e somados. E é da qualidade das boas personagens que existem não fazer nenhuma questão que você e eu existamos também. As boas personagens carregam essa indiferença monumental para conosco. Elas pedem que sejam inventadas, mas só são inventadas porque existem de fato, uma existência ali, na concretude das palavras impressas, na urdidura de uma trama que não quer a sua ou a minha anuência. As boas personagens estão sempre distante de nós, não permitem nenhuma cumplicidade, são estrangeiras a qualquer intimidade nossa, estão pouco se lixando para a nossa vocação sentimental de emprestar nossas lágrimas verdadeiras a emoção delas. Aliás, personagem boa nenhuma pede empréstimo de emoção. Exige, ao contrário, um contrato feito as claras: você me deixa em paz com os seus choramingos, que eu prometo não comprovar a tua miséria minúscula em relação a mim.

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