sexta-feira, 24 de julho de 2015

Tenho medo da plateia. Sempre tive medo de plateias. A boa plateia é aquela que está lá, sendo plateia, mas bem longe das minhas vistas, mergulhada no completo escuro da sala escura. Mesmo essa plateia me dá calafrios. Mas, então, o que dizer daquela plateia que é plateia bem ao seu lado, quase que iluminada na mesma proporção que você, vizinha das suas aflições de ser acometido pela certeza de uma exposição explícita? Tenho pavor de plateias próximas, dessas plateias que estão a um palmo de distância, com aqueles olhares de plateia a me observar, perscrutar, dissecar. O que dizer então dessa outra plateia, uma plateia ainda mais cruel, que está em todos os cantos, na frente, atrás, lado esquerdo e lado direito, perto e longe? O teatro é uma arena de gladiadores, assaltada pelas garras afiadas... da plateia!


...



...
Todo ator que se dê ao trabalho de olhar atentamente para o seu ofício é niilista. O ato de vestir e desvestir máscaras confere um profundo sentimento de amor a tudo o que é humano, e uma carga de desesperança em igual proporção. Compreender que o mundo é um palco, como já dizia Shakespeare, é resignar-se deliciosamente com o amargo dessa farsa chamada vida.


...



...

domingo, 19 de julho de 2015

A respeito daquilo que fazemos, não se deve amar o que escolhemos fazer. Aliás, de nada serve amar o que se faz. Os artistas de hoje dizem que fazem o que fazem porque amam o que fazem. São artistas menores. Ou melhor, podem ser tudo, exceto artistas de fato. Artistas dessa indústria do 'precisamos ser felizes', artistas do amor pela ideia de ser artista. Nada a ver com o ofício de ser artista. Há uma equação errada aí que afirma que fazer bem algo pressupõe amar a esse algo a ser feito. Ninguém que faz bem alguma coisa tem isso na cabeça, essa ideia de que é preciso amar aquilo a qual se dedica esforço, tempo e paciência. Quem faz bem alguma coisa o faz porque sabe, por alguma razão, que é preciso fazer bem essa tal coisa. É necessário fazer bem. É imperativo que se faça bem. E ponto final. E é essa força que move alguém a fazer bem algo. Não o amor por esse algo. O artista verdadeiro não morre de amores por aquilo que faz. O artista verdadeiro padece de preocupações profundas para dar conta de fazer aquilo que é preciso ser feito. Há muito mais um sentimento de crise, de insatisfação, de medo, de desespero no artista verdadeiro, do que essa ideia de que ele é impelido por alguma espécie de amor idílico. Pensando bem, é bastante provável que um artista verdadeiro esteja mais imbuído de ódio por aquilo que faz do que por amor. Ser artista é uma condenação, não um estado de espírito. Era melhor não ser artista. Mas, não havendo escolhas, é preciso agir. O artista verdadeiro é feito à imagem e semelhança de Hamlet. Hamlet enxerga o mundo, e isso o paralisa numa consciência de dor. Mas é uma paralisia que antecipa uma ação fundamental, uma ação que irá desembocar no sacrifício de si próprio em favor da verdade. Ambos, Hamlet e o artista, são suicidas exemplares. Nada de amor nisso. O artista faz porque é preciso fazer. Seu ódio é combustível, sua dor é motivação para agir. O ofício de fazer algo demanda uma ação concreta, direta, e não uma imagem romântica do amor que está embutido nesse ato de fazer. Não há amor algum. Há ação. Somente ação. Todas as vezes em que alguém diz que ama o que faz é porque não faz o que é feito da maneira correta, ou, talvez, o faz para si, e, sendo algo para si, já lhe basta fazer o que se faz. Ama e deixa-se amar pelo ato de fazer, mas só o faz para si. É a condenação desse mundo atual onde vivemos: busca-se o amor, e o amor autorreferente, o da satisfação própria, o estar feliz consigo próprio, e esquece-se da ação, do verbo, do agir. A ação significa esquecer-se de si próprio e dedicar-se a algo a ser feito. Pode haver tudo nesse ato: dificuldade, tensão, estratégia, risos, lágrimas, suores... tudo, exceto amor.

...



...

quarta-feira, 15 de julho de 2015

A miséria da qual padece o ator de teatro é coisa benfazeja, é uma sorte imensa até. Porque desde o princípio o ator de teatro move-se por outra coisa que não é o dinheiro, não é o desejo de traçar um plano de carreira que o faça milionário aos 30 anos. Tampouco o ator de teatro gasta energia preocupando-se em galgar postos dentro de uma empresa até chegar ao cume de poder chefiar os outros, de ser admirado pelos outros. Não! O ator de teatro parece frequentar outro terreno que não é esse da ostentação material ou abstrata. O seu próprio ofício o ensina a jogar fora a tentação por apegar-se ao que quer que seja, a desconfiar dos prêmios e dos fracassos, a saber entender que viver é da mesma qualidade repetitiva daquilo que ocorre em cima do palco, afinal, por pior que tenha sido o dia de hoje, amanhã o sol haverá de despontar novamente no horizonte. Um tropeço hoje sobre as ribaltas é anulado pela sessão da noite seguinte. E assim por diante. E assim sucessivamente. O instante para o ator de teatro é coisa cara. Só o instante, e nenhuma outra promessa de eternidade, futuros de glória ou naufrágios iminentes, é capaz de arregimentar as energias do ator de teatro. Porque a consciência de morrer logo, de ser coberto pela escuridão do palco, lhe injeta vida na alma. A miséria da qual padece o ator de teatro, a miséria de não ter muitas vezes onde se agarrar por motivo de tantas lacunas que o próprio ofício lhe impinge, é isso mesmo que o permite aprender o imenso valor do descaso para tudo o que é impossível de fazer reverberar dentro de si. O ator de teatro, só o ator de teatro, e a despeito de todas as sofrências inerentes à sua labuta, ganha o que é de mais precioso ganhar nessa vida: a liberdade espiritual. E a consegue porque decide fincar suas raízes na margem, na periferia do burburinho coletivo, das notícias, da evidência dos assuntos, departamentos sempre tão importantes quanto imprestáveis.

...


...