quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

A personagem existe e também não existe. Existe porque é uma função, algo a ser cumprido. Não existe porque personagem nenhuma é psicologia, emoção, coisa abstrata que nos aproxime dela como se ela existisse e coubesse a nós uma aproximação. A personagem existe exatamente para não precisarmos nos ocupar dela, para haver uma distância entre nós e ela. Existe porque a fazemos existir, e existir não para nós, atores, mas para a plateia que a enxerga justamente porque não fazemos questão de enxergá-la. Mas precisamos da certeza de que a personagem existe, porque a personagem é um acontecimento, é verbo, é movimento para adiante. Eliminar essa certeza é fazer do ator o centro do espetáculo, e isso já é apostar numa paciência excessiva da plateia, imaginando que ela saiu de casa para ver quem somos, e não a personagem, o que fazemos, o teatro feito teatro, enfim.


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sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

Uma boa personagem nunca se presta ao desejo de proximidade do ator. A boa personagem sempre está a milhas de distância do ator. E o bom ator é aquele que faz a perfeita manutenção dessa distância.


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Na saída do nosso Boca de Ouro alguém me intercepta no hall do teatro e diz 'que maravilha que é o teatro que não mente que é teatro'. Concordei. E concordei efusivamente. E fui para casa pensando: mas nós mentimos o tempo todo, e descaradamente! O trabalho de composição de uma personagem pede a nós o máximo de recursos para distanciar-nos da vida, da realidade, para dar fôlego aquilo que só é possível debaixo do refletor e só debaixo de um refletor. Mentimos o tempo inteiro, e somos portadores da mentira o tempo inteiro. Então, o teatro que não mente que é teatro é, por princípio, um teatro da mentira. Acho que sim, mas também penso que esse empreendimento de mentir escancara o ator que mente. Assim: ao colocar-se diante do espectador como um perfeito mentiroso, o ator revela-se, senão por inteiro, ao menos nos intervalos em que é preciso tomar fôlego para emendar outra composição de gestos, para ter tempo de subir numa cadeira e colocar a voz no timbre do timbre mentiroso que a personagem o exige. Quem aparece é o ator, e aparece verdadeiramente, sem plágios forjados, na condição de interprete, absolutamente sincero quanto ao seu trabalho de montar e desmontar, talvez como o mágico que mostra os segredos do seu truque antes da execução do truque, e que o executa mesmo assim, e que, ainda assim, angaria olhares de estupefação por parte da audiência. Não é interessante isso? Sem preocupação alguma de simular que não é um fingidor, o ator revela a todo instante a sua condição de mentiroso, e é por aceitar essa condição que o espectador embarca na mentira sabendo que está sendo redondamente enganado. E o ator diverte-se com isso, com essa atenção ingênua do espectador que foi ao teatro para ver teatro, e não a vida - que também é igualmente mentirosa, mas, por orgulho nosso ou fraqueza de espírito, tanto faz, atribuímos verdade ao que já nasceu fadado a canastrice suprema. 
Numa noite dessas, durante o espetáculo, peguei-me de surpresa diante de uma colega minha de cena que contracenava com outro colega nosso de cena. Lá estava eu, diante da cena que não era a minha cena, mas que contemplava o meu olhar de quem está diante da cena. Quem era aquele que olhava? Era eu, ator, olhando para a cena e me divertindo com ela, ou, ao contrário, era a personagem que eu faço que tomava um respiro para aguentar a cena seguinte quando seria eu, ou a personagem, ou os dois juntos, quem ocuparia o centro do palco para dar continuidade a tudo? Qual a porcentagem de eu mesmo comigo mesmo, e qual a parcela que empresto para mentir que eu não sou eu, mas aquele que finjo ser, diante dos olhares alheios? 
Não é curioso que o teatro que não mente que é teatro é justamente esse teatro que dá a chance de não mentir sobre a única razão última do nosso ofício, a dúvida fundamental sobre QUEM RAIOS É ESSE QUE SOU EU NESSE EXATO INSTANTE EM QUE FAÇO ESSA BENDITA PERGUNTA?


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Houve um tempo em que a personagem era uma máscara. O ator era aquele quem respeitosamente oferecia-se para vestir a máscara. Havia uma distância entre o rosto do ator e o objeto-máscara, um pequeno vão de respiro, um espaço mínimo mas fundamental. Misturavam-se, ator e máscara, sem se misturar. Depois, com o passar do tempo, na predominância dos interesses burgueses e das linguagens realistas, o ator entendeu por bem encontrar uma empatia com a máscara, torná-la próxima de si, colar ao rosto aquilo que antes era um objeto independente. Por um interesse apaixonado na personagem, o que era artificial e concreto tornou-se abstrato e íntimo, e também invisível. O rosto do ator agora aparece em primeiro plano, que é também o rosto da personagem, uma mistura indistinta, sem espaços de respiro, sem vãos a separá-los. E então chegou o tempo atual em que personagem nenhuma existe, somente o ator e os seus sentimentos de ator. Somos todos performers, intérpretes daquilo que somos. O interesse apaixonado agora é um apaixonar-se por si mesmo e pelas expressões que dizem respeito ao abstrato das coisas que nos ocorrem internamente. A instituição da personagem como máscara sumiu. De tantos desejos que temos de nos apoderar da personagem - o que antes era impossível pela atribuição mítica que existia no objeto-máscara -, matamos a personagem e viramos reféns do pequeno mundo que nos cabe, incomunicáveis com os arredores porque tudo se resume a fazer sentido ao impalpável de nossas emoções. Representamos para nós mesmos na ideia de que estamos a representar para os outros. 
Fazer teatro hoje carrega uma vocação de retorno à aldeia, uma necessidade ética e política de recuperar uma comunicação despovoada desses sentimentalismos modernos e capaz de voltar a acessar imaginários comuns.


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