sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

Na saída do nosso Boca de Ouro alguém me intercepta no hall do teatro e diz 'que maravilha que é o teatro que não mente que é teatro'. Concordei. E concordei efusivamente. E fui para casa pensando: mas nós mentimos o tempo todo, e descaradamente! O trabalho de composição de uma personagem pede a nós o máximo de recursos para distanciar-nos da vida, da realidade, para dar fôlego aquilo que só é possível debaixo do refletor e só debaixo de um refletor. Mentimos o tempo inteiro, e somos portadores da mentira o tempo inteiro. Então, o teatro que não mente que é teatro é, por princípio, um teatro da mentira. Acho que sim, mas também penso que esse empreendimento de mentir escancara o ator que mente. Assim: ao colocar-se diante do espectador como um perfeito mentiroso, o ator revela-se, senão por inteiro, ao menos nos intervalos em que é preciso tomar fôlego para emendar outra composição de gestos, para ter tempo de subir numa cadeira e colocar a voz no timbre do timbre mentiroso que a personagem o exige. Quem aparece é o ator, e aparece verdadeiramente, sem plágios forjados, na condição de interprete, absolutamente sincero quanto ao seu trabalho de montar e desmontar, talvez como o mágico que mostra os segredos do seu truque antes da execução do truque, e que o executa mesmo assim, e que, ainda assim, angaria olhares de estupefação por parte da audiência. Não é interessante isso? Sem preocupação alguma de simular que não é um fingidor, o ator revela a todo instante a sua condição de mentiroso, e é por aceitar essa condição que o espectador embarca na mentira sabendo que está sendo redondamente enganado. E o ator diverte-se com isso, com essa atenção ingênua do espectador que foi ao teatro para ver teatro, e não a vida - que também é igualmente mentirosa, mas, por orgulho nosso ou fraqueza de espírito, tanto faz, atribuímos verdade ao que já nasceu fadado a canastrice suprema. 
Numa noite dessas, durante o espetáculo, peguei-me de surpresa diante de uma colega minha de cena que contracenava com outro colega nosso de cena. Lá estava eu, diante da cena que não era a minha cena, mas que contemplava o meu olhar de quem está diante da cena. Quem era aquele que olhava? Era eu, ator, olhando para a cena e me divertindo com ela, ou, ao contrário, era a personagem que eu faço que tomava um respiro para aguentar a cena seguinte quando seria eu, ou a personagem, ou os dois juntos, quem ocuparia o centro do palco para dar continuidade a tudo? Qual a porcentagem de eu mesmo comigo mesmo, e qual a parcela que empresto para mentir que eu não sou eu, mas aquele que finjo ser, diante dos olhares alheios? 
Não é curioso que o teatro que não mente que é teatro é justamente esse teatro que dá a chance de não mentir sobre a única razão última do nosso ofício, a dúvida fundamental sobre QUEM RAIOS É ESSE QUE SOU EU NESSE EXATO INSTANTE EM QUE FAÇO ESSA BENDITA PERGUNTA?


...


....

Nenhum comentário:

Postar um comentário