quarta-feira, 29 de abril de 2015

Ator

Os atores são tantos! Há os atores de televisão, os atores de teatro. Há também os atores de publicidade e os atores de cinema. Há atores que só são atores pela voz! E o que dizer dos atores que calam o bico e emprestam sua mudez para poses fotográficas? Há atores que são mais atores quando não são atores! Quantos não são aqueles que no palco da vida interpretam tão bem a farsa de cada dia a ponto de só desmontá-la na surdina invisível do quarto de dormir, e só para esperar que o sol desponte novamente no horizonte para que a cortina suba suas franjas e dê foco uma vez mais ao ar de bufões anônimos que são? Esses atores são péssimos atores quando sobem às ribaltas para tentarem ser atores de fato... Porém, há também atores espetaculares que só sabem ser atores quando é preciso ser ator, quando o ofício de ser ator exige que o sejam, enquanto no roteiro ordinário dos dias, longe do teatro e dos olhares da plateia, desmancham-se em personagens nada dramáticos, desinteressantes ao mais atento dos observadores. Enfim, por serem tantos e quantos, os atores pertencem a essa espécie de categoria genérica. São tão diversos e diferentes que quase é possível admitir que são estrangeiros uns aos outros. Falam línguas diferentes, pertencem a culturas diferentes, incomunicáveis entre si. Um ator de televisão é grego. Um ator de teatro é turco. E assim por diante. Mas ambos são atores! Ser ator é tanta coisa que também não é nenhuma. A depender do ponto de vista, todos somos atores habilidosíssimos ou péssimos atores. Enfim, escolher ser ator por ofício é patinar num limbo eterno e infinito de indefinições infinitas, é carregar na consciência a consciência de ser alguém, e de não ser ninguém... ao mesmo tempo.

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terça-feira, 28 de abril de 2015

Hamlet

Tudo é teatro. A consciência que pesa é essa consciência que sabe ver que tudo é teatro. Pesa e ao mesmo tempo diverte. O ator sabe que mente, e sabe que os outros mentem também. Para além disso, o ator compreende que para existir é preciso saber mentir. O ator assombra-se com a visão que lhe é entregue dos fios presos à marionete. O homem é esse boneco oco, atado a fios, todo articulado, hipócrita até a raiz da alma quando acredita ser ele o dono de seu próprio destino. Mente. E se não sabe que mente é simplesmente porque não reconhece quem é. É por essa razão que nenhum personagem chega aos pés de Hamlet. Ele é tudo: ator que age, personagem de si mesmo, espectador que se olha pelos olhos dos outros que o olham. Hamlet é grandioso porque é ele próprio o teatro que condena, e que, com ele, também pode encantar-se. Se há algum registro mais genuíno do que fomos, no dia em que deixarmos de ser que somos, ele não estará nos restos dos nossos futuros fósseis, e sim na memória desse farsante grandioso, produto da mente de Shakespeare.

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sábado, 25 de abril de 2015

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A beleza de se fazer teatro é que se trabalha quando os outros, que trabalham, estão de folga. E nós, que fazemos teatro, trabalhamos num tipo de trabalho que os outros, que trabalham, nunca conseguem dar conta de entender por completo. Porque o nosso trabalho, o dos atores de teatro - ainda que infinitamente trabalhoso - esgota um outro tipo de departamento que ninguém, a rigor, entende a sua essência. Porque é comum àqueles que trabalham em qualquer outro tipo de trabalho que não seja esse que nós, atores de teatro, trabalhamos, associar o trabalho à miséria que é ter de trabalhar, e, assim, continuar trabalhando até que a soma do dinheiro que possa vir a cair na conta seja suficiente para, um dia, deixarem, finalmente, de precisar trabalhar, e, assim, poderem desfrutar de uma folga eterna. Esse é o departamento que faz com que nós, atores de teatro, sejamos privilegiados. Porque se trabalhamos é porque não precisamos trabalhar, e sim porque é fundamental que trabalhemos. E justamente trabalhamos enquanto os outros, que trabalham, estão de folga, quando a esquizofrenia tão típica àqueles que trabalham oferece uma breve pausa. É essa pausa que compete a nós, atores de teatro, conferir sentido. Porque de alguma maneira nós, atores de teatro, somos adeptos da pausa, da interrupção do ritmo frenético do mundo, ansiosos por remar contra a correnteza das equações de causa e efeito. A beleza de se fazer teatro é também a beleza de poder ser ator de teatro. Quando tudo e todos, incluindo nós, oferecemos, experimentamos e compartilhamos... a pausa.

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sexta-feira, 17 de abril de 2015

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Há coisa mais estupidamente vazia de criatividade do que um ator emprestar-se a ser uma personagem de si próprio no ofício de sua exposição pública? Há coisa mais fora do eixo do que o ator imaginar-se mais interessante do que a personagem? E, virando ele próprio uma personagem - onde já não há personagem alguma - estereotipado naquilo que é, ou acredita ser, não seria isso, então, duplicar a estupidez? Não seríamos nós, do tempo presente, os representantes mais estúpidos desse ofício que em tempos passados escondeu forçosamente o ator atrás da máscara para que a poesia viesse à tona em menosprezo à pele bem cuidada do seu intérprete?


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O teatro e o ofício de fazer teatro é o subsolo de tudo, o andar debaixo, a terra primeira onde aprende-se a pisar para depois esquecê-la em função das purpurinas e glamoures da vida. Mesmo quem não é e nunca foi ator, ainda assim, faz teatro, e fazer teatro por ofício é esclarecedor por conta disso, porque somos o tempo inteiro formados por matérias ficcionais, camadas sobrepostas de mentiras adquiridas, bufões a espreita de um palco para desfilar solilóquios e angariar aplausos do mundo. Fazer teatro é pedagógico porque é lá que se compreende a precariedade de tudo, a indiscutível tragédia de se saber perecível, impotente para as loucuras de poder, status, fama e vaidades outras. O ator de teatro é um cientista que sempre falha na tentativa de descobrir a cura de uma doença rara. E ainda bem que falha. Falha para continuar falhando. Fazer teatro é um privilégio e uma grande dor ao mesmo tempo, é entrar em contato com a consciência que nos impede de mentir, torna-nos frágeis para a vida, sensíveis ao descalabro das farsas a que somos obrigados a tomar parte. Mas também é encorajador porque viver a fraqueza permite redirecionar o pouco de força que nos alimenta, saborear os risos do absurdo de cada esquina, economizar energias para as cenas que realmente mereçam nossa atenção. Fazer teatro é emprestar o corpo ao tempo concreto, atingir e ser atingido pela dificuldade de dar conta do impossível. Todos os outros protótipos modernos daquilo que virou o ofício do ator, aqueles que passam longe do palco para defender seja lá que imagem protegida por sabe-se lá qual suporte, não são atores na acepção da palavra, ou são, como todos nós o somos, mas destituídos, ao menos, da certeza de sua ridícula condição. Já é um universo de distância.


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sábado, 11 de abril de 2015

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Cada personagem aparece como um bloco enrijecedor daquilo que já nasceu limitado por sua rigidez natural, ou seja, o próprio corpo. É como se a personagem surgisse para dobrar a dificuldade de existir, multiplicando as engrenagens em dois: aquela inerente ao intérprete, e a outra, ficcional, forjada por sobre essa.
- Não há nada de orgânico, de libertador. É tudo absolutamente artificial, enclausurador. Mas há aqui também uma liberdade, talvez uma liberdade mais essencial, poética. É-se mais livre na medida em que se reconhece tais fronteiras que o limitam a ser outro senão aquele que é moldado, e moldável.


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