O médico é uma espécie de derrotado resignado, sabe que vai
perder. A morte lhe é um adversário inapelável, um destino concreto, inevitável
e irreversível. Por outro lado existem os poetas, gente que habita terreno
diverso ao do diagnóstico dos sintomas orgânicos, antes dedicando-se à
substância imaterial da alma, das ideias que não carecem de prazo, e, por isso
mesmo, inventando eternidades desafiadoras ao perecível. Tchekhov foi ambos:
médico e dramaturgo, combinando dois departamentos aparentemente contraditórios,
que, talvez, servissem um de antídoto ao outro. Ao peso da existência perene,
uma dose de criação literária já seria um alento às durezas do tempo,
alforriando através da poesia as dores do sofrimento que aos não foi dada a sorte
de poder escapar. Nada mais falso, porém. É do médico Astrov, um dos
personagens da peça ‘Tio Vânia’, a famosa frase que desmonta o nosso argumento,
dizendo: será que seremos lembrados daqui a cem anos?
No conto ‘Enfermaria número 6’ há outro médico, personagem
também criado por Tchekhov, que depois de haver cuidado de tantos doentes mentais,
acaba ele próprio, agente da cura, internado no lugar de seus pacientes. E
termina a vida ali, trancafiado e vítima dos seus esforços por tentar melhorar
a saúde do próximo. O autor russo parece-nos dizer com sua obra que há uma
doença fundamental a assolar o homem para além das mazelas do corpo, e esse mal
se chama consciência. Sendo o poeta alguém que necessariamente presta atenção
mais cuidadosa às inquietações do humano, não seria leviano afirmar que é
característica dele, artista, reunir em si uma visão privilegiada sobre o
conjunto de motivações que fazem de nós sermos quem somos. E é nesse ponto que
Tchekhov assume sua impotência, fazendo dela, justamente, o assunto primordial
de sua obra. É impossível consertar o homem, dar-lhe saúde, reverter essa
contradição que o mostra como alguém digno de respeito, mas, no fundo, age conforme
o teatro do mundo o convoca a agir. A consicência é paralisadora, e é nesse solo
de paralisia onde afundam as personagens tchekhovianas, bem como o próprio
autor.
O espetáculo ‘Almas Abaixo de Zero’, levado ao parque
Vicentina Aranha como parte da programação do Festivale, traz ao público uma
linda poesia encampadora das questões apontadas acima. A Cia O Teatro da
Cidade, grupo já bastante tradicional de São José dos Campos, empresta de
Tchekhov o assunto da consciência sobre o próprio percurso, e, após décadas de
pesquisa , abre de maneira delicada e generosa um espaço para a pergunta
fundamental: será que não somos nós, poetas do palco, impotentes frente ao
mundo? Uma versão bastante calibrada do que Astrov diz ao deliberar sobre o
futuro dos que virão depois de nós.
Evidentemente que o perigo é tornar essa premissa um tanto
quanto auto-referente, obrigando o espectador a integrar parte em uma terapia de
grupo. Mas não há arte sem risco, e esse fio tênue entre quem eu sou – e o que
devo mostrar de mim –, e o como eu escolho sumir para dar passagem à obra – é
nesse intervalo, enfim, que o espetáculo se mostra brilhante, integrando a
todos numa espécie de elegia melancólica da dor, da incapacidade que nos ronda
em virtude de uma consciência desperta, sem com isso cair em qualquer pieguice
melodramática.
O espetáculo termina com os atores preferindo o seguinte
saldo final encontrado por Tchekhov: faça o bem. E o autor russo definitivamente
o fez. Hoje, nós, os que vieram depois dele (e mais de cem anos depois!), não só
lembramos de suas personagens, como também nos emprestamos de corpo e alma a
elas. Foi o que fizeram os excelentes artistas dessa Cia, que deve ser não
lembrada pelos habitantes da cidade, mas frequentada, visitada, constantemente
motivo de orgulho por fazer da arte um motivo de encontro diário, ainda que seja para
cantar de forma tão lírica a dor.
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