quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Cartas silenciosas de um tal Circo Navegador...


E se a palavra respirasse? E se fosse ela, a palavra, matéria viva, e uma vez assim tratada, organismo afeito aos estágios naturais de desenvolvimento? Nasceria, cresceria e morreria, a palavra. E se a palavra tivesse contornos, bordas e interiores também? Talvez a palavra pudesse ser coisa que digerisse, havendo tripas por entre as sílabas, vísceras entre um adjetivo e verbo. Por que não? A letra, solitária, já poderia ser entendida como uma protocélula, início biológico e responsável imediata pela complexidade sistêmica das conexões vindouras. Talvez uma frase pudesse pulsar configurando toda uma rede neurológica de pensamentos incrustados somente na morfologia da sua grafia,  na análise sintática da sua composição, ou grudada na sensação tátil de quem estala a  língua na boca. Quando a palavra é madura, e quando ela é precoce, ainda crua? Como identificar palavras podres e descartáveis? E se a palavra falada fosse assim considerada, com respeito e treinamento por quem dela faz uso, sem desperdícios aleatórios como quem se derrama em fluxos frouxos de ideias e não presta conta à sua preciosa função de simbolizar? E se a palavra escrita, por outro lado, demorasse até chegar ao papel, pensada antes de gerida, pausada para tomar fôlego, bem longe da urgência das plataformas digitais que invocam pensamentos sem substância ou recheio, frases sem fronteiras que nada fundam ou iluminam? E se, enfim, a palavra fosse coisa perigosa e difícil, arriscada na mesma medida em que é arriscado debruçar-se no trapézio e cair ao chão? Sabemos que a palavra é corpo, mas será que damos o corpo merecido a ela, ou, então, será que a consideramos com o mesmo cuidado de quem sabe que o corpo é passível de feridas, doenças e atrofias?

O espetáculo do grupo Circo Voador apresentado na vigésima nona edição do Festivale cala o verbo para evocar poeticamente a presença do corpo em perigo, desafiando a força da gravidade, provocando contorções musculares, testando a coordenação e o equilíbrio em malabarismos, acrobacias e movimentos ora delicados, ora produto de pura força física, e nem por isso destituídos plasticidade lírica. A poesia aqui é o testemunho da beleza de um discurso que fala sim, mas sem a necessidade de mastigar gramáticas orais. O balé silencioso, por curioso que seja, é também pedagógico para o seu outro extremo, quando invocamos o palco para que ele nos sirva como plataforma de discursos falados.

Sabendo que o bailarino levanta a perna na barra umas duzentas vezes ao dia para que em cena possa entregar-se à dança, que o músico estuda escalas na partitura por anos a fio para que um dia lhe caiba o direito de interpretar Beethoven, por que nós, atores, escritores, jornalistas, todos aqueles que, enfim, convergem a atenção dos outros para o verbo, desprezamos o devido cuidado à palavra – que é o nosso instrumento – acreditando que falar é natural, que escrever é coisa fácil, que o pensamento, portanto, não merece qualquer artesania consciente?

Ao término do espetáculo, durante o bate-papo com os artistas, fiz a seguinte pergunta a uma das integrantes do grupo: ‘por que será que a palavra para nós não chega perto do risco experimentado por vocês em cena, de forma corporal, concreta e nada abstrata?’ Ela respondeu-me de maneira bastante contundente que eu estava errado, que a palavra é a instância mais perigosa que pode haver, e derrubá-la de qualquer modo implica sim em perigos elementares, em ruínas de valores, perda de qualquer sentido comunitário.

Talvez exatamente por isso o público jovem que estava no teatro Dailor Varela inquieta-se quase ao desespero quando presencia dois homens tocando-se em cena, dentro da partitura encantadora do espetáculo; porque ainda estamos nesse estágio neandertal de afinar conceitos, entender valores, respeitar opiniões diversas da nossa, enfim, de preencher vazios fundamentais do terreno pouco observado da palavra, do simbólico.

Voltei para o hotel onde estou hospedado com uma sensação pavorosa de que a nossa miséria cultural é produto de uma total ausência de introspecção, do silêncio onde a palavra se forma, e com ela o pensamento. Esse treinamento é urgente, e, parece, há muito não visitado.


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