E se a palavra respirasse? E se fosse ela, a palavra,
matéria viva, e uma vez assim tratada, organismo afeito aos estágios naturais
de desenvolvimento? Nasceria, cresceria e morreria, a palavra. E se a palavra
tivesse contornos, bordas e interiores também? Talvez a palavra pudesse ser
coisa que digerisse, havendo tripas por entre as sílabas, vísceras entre um
adjetivo e verbo. Por que não? A letra, solitária, já poderia ser entendida
como uma protocélula, início biológico e responsável imediata pela
complexidade sistêmica das conexões vindouras. Talvez uma frase pudesse pulsar
configurando toda uma rede neurológica de pensamentos incrustados somente na
morfologia da sua grafia, na análise
sintática da sua composição, ou grudada na sensação tátil de quem estala a língua na boca. Quando a palavra é madura, e
quando ela é precoce, ainda crua? Como identificar palavras podres e
descartáveis? E se a palavra falada fosse assim considerada, com respeito e
treinamento por quem dela faz uso, sem desperdícios aleatórios como quem se
derrama em fluxos frouxos de ideias e não presta conta à sua preciosa função de
simbolizar? E se a palavra escrita, por outro lado, demorasse até chegar ao
papel, pensada antes de gerida, pausada para tomar fôlego, bem longe da
urgência das plataformas digitais que invocam pensamentos sem substância ou
recheio, frases sem fronteiras que nada fundam ou iluminam? E se, enfim, a palavra
fosse coisa perigosa e difícil, arriscada na mesma medida em que é arriscado
debruçar-se no trapézio e cair ao chão? Sabemos que a palavra é corpo, mas será
que damos o corpo merecido a ela, ou, então, será que a consideramos com o
mesmo cuidado de quem sabe que o corpo é passível de feridas, doenças e
atrofias?
O espetáculo do grupo Circo Voador apresentado na vigésima
nona edição do Festivale cala o verbo para evocar poeticamente a presença do
corpo em perigo, desafiando a força da gravidade, provocando contorções
musculares, testando a coordenação e o equilíbrio em malabarismos, acrobacias e
movimentos ora delicados, ora produto de pura força física, e nem por isso
destituídos plasticidade lírica. A poesia aqui é o testemunho da beleza de um
discurso que fala sim, mas sem a necessidade de mastigar gramáticas orais. O
balé silencioso, por curioso que seja, é também pedagógico para o seu outro
extremo, quando invocamos o palco para que ele nos sirva como plataforma de
discursos falados.
Sabendo que o bailarino levanta a perna na barra umas
duzentas vezes ao dia para que em cena possa entregar-se à dança, que o músico
estuda escalas na partitura por anos a fio para que um dia lhe caiba o direito
de interpretar Beethoven, por que nós, atores, escritores, jornalistas, todos
aqueles que, enfim, convergem a atenção dos outros para o verbo, desprezamos o
devido cuidado à palavra – que é o nosso instrumento – acreditando que falar é
natural, que escrever é coisa fácil, que o pensamento, portanto, não merece qualquer
artesania consciente?
Ao término do espetáculo, durante o bate-papo com os
artistas, fiz a seguinte pergunta a uma das integrantes do grupo: ‘por que será
que a palavra para nós não chega perto do risco experimentado por vocês em
cena, de forma corporal, concreta e nada abstrata?’ Ela respondeu-me de maneira
bastante contundente que eu estava errado, que a palavra é a instância mais
perigosa que pode haver, e derrubá-la de qualquer modo implica sim em perigos
elementares, em ruínas de valores, perda de qualquer sentido comunitário.
Talvez exatamente por isso o público jovem que estava no
teatro Dailor Varela inquieta-se quase ao desespero quando presencia dois
homens tocando-se em cena, dentro da partitura encantadora do espetáculo;
porque ainda estamos nesse estágio neandertal de afinar conceitos, entender
valores, respeitar opiniões diversas da nossa, enfim, de preencher vazios
fundamentais do terreno pouco observado da palavra, do simbólico.
Voltei para o hotel onde estou hospedado com uma sensação
pavorosa de que a nossa miséria cultural é produto de uma total ausência de
introspecção, do silêncio onde a palavra se forma, e com ela o pensamento. Esse
treinamento é urgente, e, parece, há muito não visitado.
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