quarta-feira, 8 de maio de 2019

Três dias na Unicamp para um contato próximo com os alunos da graduação da faculdade de Artes Cênicas, a mesma gradução que completei há quase 20 anos. Há 20 anos sou o resultado da soma de experiências que não significaria coisa alguma não fossem os 4 anos em que passei internado nessa maravilhosa universidade, casa de grandes professores que tive. Quando alguém hoje se propõe a ser ator em conformidade com o frescor dos tempos que deposita no charme pessoal a razão de uma exposição pública, fazendo uso de toda e qualquer artimanha malandra para provar ao mundo que o que vale mesmo é ser simpático, extrovertido, cheiroso e dono de um certo sex appeal, eu lembro-me da minha primeiríssima aula, aos 17 anos, entusiasmadíssimo com a vida que eu não conhecia e que imaginava dominar. A professora, uma das melhores que tive, pedia que cada aluno, um por vez, saísse da sala e retornasse pela mesma porta, se postasse de pé diante do restante da turma (toda ela sentada feito uma plateia) e dissesse seu nome. Só isso. Era somente isso. O constrangimento de ser visto era suplantado pelo ego que cada um de nós trazia de fora, adicionado à certeza de que éramos os novos Paulos Autrans, as novas Cacildas Beckers da safra moderna. Ninguém de nós suportava desvestir-se diante dos outros e simplesmente parar diante de uma audiência para anunciar um nome. Éramos afetados e exibidos por razões óbvias: a própria juventude carrega essa natural petulância, e o mundo do qual vínhamos nos ensinava desde sempre a arrebitar o nariz para provarmos que tínhamos algum valor. Pois bem. Foram 4 longos anos de demolição do ego, da ideia falsa do que é ser ator, de implosão dessa coisa de fazer qualquer uso de nossa capacidade expressiva para atrair a atenção alheia. Meus 4 longos anos ensinaram a mim e aos meus colegas a como não vilipendiar essa profissão importantíssima e de uma gravidade ímpar que pressupõe aparecer diante do outro para defender uma ideia, para estar a serviço de algo, para servir a algum propósito um pouco mais nobre do que encher os bolsos de grana, reunir um fã clube, clarear a dentadura no final do mês. Em uma única aula já é possível sentir a dimensão do ridículo que existe nessa atitude esnobe que é a de se imaginar grandioso para além da diminuta estatura que cada um de nós carrega. E que a grandeza de ser um ator de teatro está em ter a humildade de servir ao teatro, e não usá-lo para si. Ninguém sai de uma faculdade pronto ou plenamente formado, mas sai sim atento. Já é impossível ser ingênuo depois de 4 anos de imersão intensiva, alucinada, desvairada, apaixonada, repleta de crises. E hoje, depois de mais 20 anos em que pisei pela primeira vez na Unicamp, sinto-me no direito e no dever de defender a minha profissão e eriçar a minha crina que ainda resiste ao tempo para fazer frente a esse mercado de fast-food que promete fazer de um jovem um artista com alguns retoques no seu figurino empoado, uma penteada no topete, um cheiro no cangote. Fico emocionado de ver a minha faculdade funcionando com novos jovens, nova gente que se permite experimentar em todas as suas fraquezas e potencialidades antes de estrear para o mundo, sabendo que o ofício do ator é gravíssimo, perigosíssimo, e que se fôssemos de fato um país que entendesse o sentido e o valor que há na atividade de representar um papel diante de uma audiência, não estaríamos hoje nas mãos de marqueteiros, filósofos fajutos, ególatras assumidos, gente que se enfurna atrás de muralhas (ou estúdios de TV) ostentando tapa-olhos, gente que se arroga o direito de 'SER ELA MESMA' ainda que de posse de uma função infinitamente maior e mais importante de que a de coçar o sovaco na intimidade do lar. 

Obrigado a minha Unicamp, aos professores e alunos da Faculdade de Artes Cênicas, aos de hoje, aos de ontem, e aos que virão.

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domingo, 17 de março de 2019

Antes nenhum teatro do que um teatro dentro dum shopping. Antes livro nenhum do que folhear páginas e encontrar os anúncios das Casas Bahia. As pausas da sinfonia são tão ou mais importantes que a própria sinfonia sendo tocada. SILÊNCIO, FAVOR NÃO PERTURBAR! Essa maravilhosa frase de hotel colocada nas plaquinhas que vão nas maçanetas dos quartos deveria nos acompanhar para tudo quanto é canto da vida inteligente. Se é para enveredar pela histeria como forma de aumentar a receita, que não haja nada disso que nos acostumamos a apelidar de Cultura, e que se invista sem constrangimento na vitrine esquizofrênica que não economiza promoções para abocanhar o cliente.


Você que é ator nos dias que seguem é igualzinho a um turista de veraneio. Passa um semestre inteiro planejando suas férias para, ao final, viajar durante umas poucas e mixurucas semanas. Teatro virou pousada de fim de semana. E, o pior, há aqueles atores da imagem, da fama impressa na telinha, que enaltecem o palco dizendo que é lá onde o ator verdadeiramente se ergue e se fortalece, e não demoram a correr ao teatro para estrear as suas produções com essa chancela maravilhosa e altruísta. São mentirosos. Mentirosos vaidosos. Nunca frequentaram o teatro, nunca estudaram para estar na posição de defender o teatro, nunca se preocuparam com outra coisa senão com gerenciar suas bagagens pessoais de gente bem sucedida no mercado da moda. São turistas igualmente, e da pior espécie, daqueles que enaltecem a paisagem enquanto deixam para trás o lixo do piquenique que armaram. Voltam correndo para o território ao qual pertencem: o da propaganda e do marketing.

Adicionado a isso, temos a indústria do DRTÊ, que despeja no mercado a cada semestre uma tonelada de gente com o bendito documento conquistado a duras penas em cursos de 'formação' de 1, 2 anos, às vezes com uma carga horária extenuante de encontros aos sábados (VEJA BEM: AOS SÁBADOS... só AOS SÁBADOS). Dá próxima vez que for ao neurologista não deixe de perguntar ao médico qual acampamento de férias ele frequentou para conseguir o diploma de médico que o autoriza a abrir a sua cabeça.

Enfim, se o teatro é um evento político, os corruptos e corruptores somos nós mesmos que dele - do teatro -, fazemos uso para gazetear ao mundo que somos os únicos remanescentes da alta Cultura degenerada. Mentira. Mentirosos. É o que somos.



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Oswald de Andrade é o nosso verdadeiro Stanislavski.
Machado de Assis é o nosso Shakespeare. Memória emotiva é o escambau! Ou só se for a lembrança imediata de haver comido o vizinho ao palitar os dentes arrancando um naco enorme de carne. Somos antropófagos assumidos (delícia!), nunca psicoterapeutas do abstrato. Nosso Shakespeare é o Bruxo da pena da galhofa! O cínico, o irônico, o melancólico... Tudo junto e misturado. O Teatro moderno nasce com Machado, e nas páginas, não no palco. Subvertemos até as ribaltas ao iluminar o invisível da entrelinha... e tornamo-nos devassos! Graças a Dionísio nosso Laurence Olivier é mulher, é Dercy Gonçalves! Quarta parede é o escambau!, o lance é mostrar a xereca, falar alto, estar em cena como quem se equilibra no fio. Nosso teatro é maravilhoso e não comporta essa gende azeda e verde do sentimento sentimental, messiânicos do Deus invisível, arautos de coisa nenhuma! Um viva aos urdimentos concretos e FALSOS DO TEATRO! Aqui ninguém cresceu, patinamos na primeira infância... E GRAÇAS A DIONÍSIO! Graças a Oswald! A Machado! O mundo é uma opereta bufa... Tupy or Not Tupy, that is the question! Lugar-de-fala é o escambau! Aqui é carnaval! Meu reino por um cocar de índio! Pinto a cara de qual cor quiser! Sou Cis-Camaleônico, nipônico, hidropônico!


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É tão bom ser ator. Recomendo a todos. Não que vocês não o sejam - os que escolheram não serem atores. São. Quer queiram ou não, vocês todos são atores: dos mais tímidos aos mais falastrões, todos são atores. Talvez tenham pouca consciência disso, mas pouco importa: continuam atores com ou sem consciência de que o são. O privilégio de ser ator é saber que se é ator, no palco... e também fora dele (e talvez principalmente fora dele). Quando se é ator por escolha de ser ator a gente presta um pouco mais de atenção ao desempenho nosso no palco da vida. E rimos das nossas péssimas performances, dos nossos pífios desempenhos. Talvez seja isso mesmo: é tão bom ser ator no palco justamente para saborear o nosso péssimo desempenho fora dele. E assim nos precaver de tropeçar de novo no mesmo degrau que um dia tropeçamos, e que costumam tropeçar reiteradamente aqueles que não sabem que são atores.

É ótimo ser ator. Não há nada mais educativo (e sofrido, evidentemente) do que ser ator por escolha (e dedicação) de ser um ator.



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sexta-feira, 8 de março de 2019

É a geração dos não-atores (com DRTÊ), do não-presidente (com DRTÊ!), que é ELE MESMO, ele, um despachadão, sincerão. É a geração da espontaneidade como valor, da ausência de qualquer consciência de que há um papel público a ser representado. A tragédia é essa: quer queiramos ou não, o mundo é um palco. É a falência da personagem, do teatro, dos urdimentos, da distância entre nossa cabeça e o firmamento onde se penduram os astros, falência da reverência à indumentária que é outra pele diferente do jeans e da chinela de dedo. Tempo do teto baixo, do gabinete, da psicoterapia, de gente no divã que deseja sofrer e sofre de verdade para tratar a verdade do sofrimento como um produto a ser vendido na feira livre: a coragem do sofrer, de saber ser vítima e desejar vitimizar-se através do sofrimento. Tempo do projeto pessoal, da abertura do MEI, do microempreendedor individual, tempo do liberalismo absoluto: sobrevive quem se vende melhor. Tudo é performance, teatro-verdade, teatro-depoimento, teatro-do-eu, tempo da ágora grega transformada no quintal de casa, na goiabeira de casa, lá onde eu trepo, encontro Jêzuis... e ME salvo. Salve-se quem puder, que belo mantra. É o tempo do seja você mesmo, do coaching, tempo daquela preparadora de elenco famosa que sabe arrancar o melhor de você através de um mergulho em você mesmo. E dá-lhe tapas, autoflagelação, urros e grunhidos. Tempo do workshop, da vivência, da imersão. É a geração da selfie, da #hashtag, do grupo identitário, do bairrismo, da falência das narrativas comuns, do imaginário comum, da atrofia dos pulmões em favor do microfone de lapela, do close-up, do ar condicionado do estúdio refrigerado. É o tempo do Deus no coração, do SEU deus que resolve habitar o SEU coração, e dá-lhe olhinhos fechados, cercados por muros, cercas farpadas. É a geração que reescreve Shakespeare, Sófocles, Ibsen para que Ibsen, Sófocles e Shakespeare caibam na boca de quem perdeu a capacidade de abrir e fechar a mandíbula e agora aposta nos sussurros, nas entrelinhas, no sub-texto, no não-dito porque o que é dito é impossível de ser dito. É o tempo do ator flácido, sem tônus, molenga, do ator que jamais compreenderia a absurda corrupção que existe no fato dele se apresentar diante de uma audiência exatamente assim: flácido, sem tônus, sem voz, com o seu fiapo afetado de voz. Ao contrário: esse ator ama a molenguice, e a plateia, também igualmente atrofiada de força imaginativa, aplaude de pé a completa anemia expressiva. É o tempo do sub, tudo sub: subalterno ao gigantesco temor de sobrevoar qualquer coisa, de alçar voo e fazer uma panorâmica. Tempo do tapa-olhos, da conexão comigo mesmo, do namastê, do amém, do evoé que é mais autoajuda do que brado para os deuses. Aliás, pobres Deuses, aposentados, assistindo a tudo isso como um grande reality-show cujos brothers somos nós, autopiedosos, violentos, burros, ultra espiritualizados, íntegros, mimados até a tampa.


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segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

Quando você quiser ser ator, não dê tudo de si, não. Dê metade mesmo. Deixe que o 50% restante venha de fora, não dependa do seu talento fulgurante. Ou melhor, dê 30%! Vai que na proporção anterior esteja incluso aquele momento emocionante em que você aperta os olhinhos e embarga um soluço lacrimoso para provar que a personagem está lá, latejante, toda ela sob seu domínio? Olha, quer saber? Dê 5%. Se 5% determinar somente que você esteja lá, de corpo inteiro e sem afetações para representar a bendita da personagem, então é só desse mínimo mesmo de que você precisa. Aliás, compre um gato e jogue fora todos os métodos Stanislavskis e os laboratórios de imersão com a Fátima Toledo. Observe seu gato e veja que qualquer mínimo esforço a mais do que o estritamente necessário já é motivo pro bichano cofiar os bigodes do focinho e, impassível, responder: Miau***

***em livre tradução: Melhor Não.


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Se o teatro fosse uma orquestra, duvido que ao ator coubesse o papel de spalla. Regente? Muito menos. Quem dirige o teatro é a cena, não o ator. No máximo ele estaria lá, misturado no meio da fanfarra, com um olho atento à partitura, o outro olho no maestro. Toda grande interpretação de qualquer ator é fruto de uma boa arquitetura da cena. E cena quer dizer tudo: espaço, cenário, figurino, música, maquiagem, luz... Não se sobrevive debaixo do refletor sem um edifício erguido para sustentar quem no palco se arrisca. E esse edifício pode perfeitamente ser todo vazado: não haver nada, e ainda assim será a maior força a agir sobre o ator. Acredito mais em encenadores do que em diretores. O bom diretor é um bom encenador. Não sendo um bom encenador, dificilmente ocorrerá de saber dirigir qualquer coisa. O erro é deduzir que o ator é protagonista porque é dele que emana essa coisa de 'viver' a personagem, e nisso gasta-se um tempo enorme, tentando dar conta de uma coisa que não existe e jamais existirá. Um palco de madeira existe. Um tecido existe. Um acorde é palpável e tangível. Hamlet não. Hamlet é assunto para a plateia, não para o ator que o finge ser. Para o ator que representa Hamlet, saber apanhar um punhal é tratar de Hamlet mais do que tentar viver Hamlet. Acho um pleonasmo dizer que o teatro é um arte coletiva. Ou melhor, acho um erro mesmo, porque por 'coletivo' quase sempre se pressupõe igualdade de territórios. Não acho. Acho que há hierarquias bastante claras. E o ator nunca é o sortudo que tem a rapadura nas mãos. Ele é mais vítima do que herói, sempre. E para seu próprio benefício.


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