sábado, 20 de fevereiro de 2016

Sabe qual a razão mais latejante que me fez optar por ser ator de teatro? A chance preciosa de poder mandar o mundo lamber sabão. E se o mundo incomoda-se em lamber um delicioso sabão de pedra (há que ser um sabão de pedra!), - maravilha absoluta! - tanto justifica a minha opção por fazer o que eu faço. Aliás, pensando melhor, veja que função social importantíssima a que eu me encarrego: esticar a língua do mundo e fazê-la lamber um belo de um sabão de pedra. Começo a suspeitar de que eu mereço uma estátua de bronze polido do meu busto lá na Praça da Sé.



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Gente muito formada nas ideias é quase sempre frouxa, repare! Não digo essa frouxidão de caráter, não. É o que é frouxo no corpo mesmo. Você encosta no corpo de uma pessoa desse tipo e o corpo balança feito maria-mole. E a voz é fraca também. O tônus de tudo o que é biológico numa pessoas dessas é mixuruca. São pessoas que precisam de microfones, amplificadores, praticáveis. São pessoas engolidas pelo mundo. Agora repare em quem tem o corpo desperto. São quase sempre pessoas atentas a estarem onde estão e sem muita paciência para o que existe de abstrato no preenchimento de ideias. E isso não quer dizer que não haja pensamento em pessoas desse tipo. Ao contrário. O pensamento é pulsante, vibrante, dotado de uma energia aberta ao que está ao redor. São pessoas que tem voz, corpo e estruturas próprias, tudo pronto para existir na potência máxima que é possível esgotar de uma biologia viva (perdoe-me a redundância). Eu chamo essa segunda pessoa de ator. A primeira não sei bem como classificar, só tenho certeza de que ator não é.



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Não há radicalidade maior do que existir. Querer argumentar a existência do existir é de uma falta de imaginação memorável.



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Vivemos nos tempos dos artistas molengas, dos artistas frouxos. Digo artistas de fato, do ofício da coisa. Não se reage a nada porque são todos - ou quase todos -, os artistas de farto, artistas de rabo preso com órgãos públicos, editais de sei-lá-o-quê, fiéis devedores de empresas financiadoras, funcionários da empresa tal. O que era transgressão, princípio básico de uma comunicação quase suicida - o experimento que se alimentava do próprio ato de experimentar (algo de ingenuidade infantil e de coragem despropositada) -, virou coisa mansa, de gente preocupada com a repercussão das suas palavras e imagens iluminadas debaixo dos refletores. São todos molengas. Somos molengas. E assim o somos porque é preciso sobreviver, porque é preciso pertencer à turma que transmite mensagens palatáveis, deglutíveis, justas para alguma coisa que deve brotar fora dela, e germinar flores de aromas agradáveis. O hall do teatro agora é mais importante do que o teatro: ou saímos batendo selfies com os espectadores, ou, então, apertando as mãos dos colegas correligionários. O palco é mera extensão do discurso, não mais o próprio discurso. É preciso justificar o ato de existir com laudas de argumentos que o tornem uma pessoa legal às vistas de uma banca de ideólogos de plantão. E nos acostumamos com isso. E desejamos isso. E vem por aí hordas e mais hordas de um outro tipo de artista, o artista preocupado com o futuro do mundo, o artista de ONG, um artista que pertence ao desejo fundamental de desaparecer por completo com qualquer identidade particular, de verdade íntima e particular, para pertencer à turma, aos compadres, àqueles que são tantos e ninguéns ao mesmo tempo - ser um indivíduo dotado de individualidade com CPF e RG próprios é uma sentença de egoísmo criminoso para esse outro tipo de artista em emergente ascensão. São os artistas engajados na ideia, unidos, firmes e sedimentados por argumentos ótimos, mas esvaziados de energia expressiva, destituídos de qualquer tônus, portadores de vozes mixurucas, quase inaudíveis em sua ínfima moldura de existência. Perdemos até mesmo o contato com o público. A plateia nos é indiferente porque não é mais para ela que fazemos o que fazemos. Fazemos o que fazemos para ajustarmo-nos aos editais, ao governo, à empresa financiadora, ao mundo que diz: seja assim que eu te dou o aval para sua sobrevivência. Saudades dos artistas malditos, intragáveis, pestilentos, marginais, insuportavelmente insistentes na sua expressão única que era única porque era íntima, intransferível e particular. As saudades que tenho não são só por esses artistas que cada vez mais rareiam, ou estão chochos, reclusos na sua falta de coragem ou inteligentes em suas técnicas de sobrevivência, as saudades que tenho é da arte mesmo, que quando perde sua função primordial de incomodar, remar contra, não satisfazer nada a que diga respeito ao que habita fora dela, perde, também, a sua própria e única identidade de arte. Viramos todos, ou quase todos, retóricos de academia, simpatizantes de movimentos sociais, plateia de bla-bla-bla ideológico. Somos cada vez menos corpo, sangue, suor, lágrimas e risos. Dionísio cada vez mais veste toga, e menos rasteja o sexo no chão. Domesticamo-nos. Todos, ou quase todos.


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terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Há em Espinosa um monismo ontológico associado a um dualismo conceitual. Corpo e espírito, para Espinosa - e contrariamente ao que acreditam Platão e Aristóteles -, são uma única e mesma coisa.
Mas aquilo que existe enquanto corpo é passível de ser lido de maneira a inaugurar um valor que já não é mais corpo senão na ideia que se tem desse corpo. De maneira mais clara, é exatamente o que ocorre com o ator e o suposto entendimento de que se tem da personagem. Ator e personagem, para o ator (que é corpo e espírito) são uma única e mesma coisa. A leitura do significado desse corpo - mais uma vez o dualismo conceitual - é que dá caráter aquilo a que chamamos de personagem. E que já não é mais corpo senão uma valoração de uma ideia já necessariamente apartada da matéria em si. E sendo a personagem uma leitura do corpo, quem executa o ato dessa específica ação nunca é o ator senão o espectador. Por isso que é um equívoco pensar o ator como alguém que 'interpreta' ou busca interpretar personagens. É impossível moldar uma coisa que não existe, ou só passará a existir enquanto conceito a partir de uma decodificação de signos futuros. O trabalho do ator não é dar forma à leitura, é, ao contrário, dar relevo à substância do corpo. 
Espinosa tece um tratado sobre o ofício do trabalho do ator ao negar qualquer metafísica nesse processo de composição de um ser que antes de tudo é e só pode ser corpo e espírito ao mesmo tempo.


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A perda da máscara para o ator, digo o artifício do objeto representado pela máscara e que é a própria máscara, é o ponto decisivo de sua também perda de expressividade, a não ser que faça ele de seu rosto natural uma outra máscara, tão artificiosa quanto a outra, tão construída quanto a outra. Um rosto-máscara que necessariamente esconda aquele quem o ator é. Perder a ideia de máscara, para o ator, é como roubar o violino do violinista, a tela do pintor, a espátula do escultor...


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Acabo de assistir a uma entrevista gravada a tempos atrás com uma de nossas atrizes mais experientes, ainda viva hoje, e uma das últimas remanescentes da época de ouro do TBC. E o teor da conversa deixou-me assustado, não por aquilo que era dito pela entrevistada senão pela razão dos argumentos que é a mesma desde sempre, a de que o ator é essa espécie de marginal eternamente em busca de um equilíbrio entre a aceitação do público e aquilo que ele deseja dizer porque acredita ele que mereça ser dito. Pensando cá comigo, o ofício do ator talvez seja o único que não consegue corresponder a um plano de carreira. Se o restante das profissões erige um cenário de degraus em que o aspirante pode imaginar-se subindo até chegar, quem sabe, ao topo, com o ator, ao contrário disso, cada passo é instável, um equilibrar-se numa plataforma flutuante sem anteparos ou corrimão. O sucesso, para o ator, é uma mera contingência do acaso, assim como o fracasso é um outro contratempo no meio do caminho. Seja um, seja o outro - sucesso ou fracasso -, a regra geral é o esquecimento. O ator é feito dessas ambas matérias: a de aparecimentos e a de esquecimentos. Tudo aparece e evapora no instante seguinte. O que me deixou assustado ao assistir a entrevista foi compreender que nessa jornada pelos palcos futuros não haverá muitas alternativas adiante. Aquela velha atriz é exatamente quem sou eu agora, e eu possivelmente repetirei as mesmíssimas angústias de hoje quando lá eu tiver os meus anos acumulados nas costas como os tem aquela atriz. Nada separa a mim daquela atriz. Estamos no mesmo estágio de desespero, na mesma condição de expectativa, ambos, eu e ela, na iminência de dar um passo para o abismo, ou agarrarmo-nos um pouco mais na segurança do aplauso da evidência. Não há facilidade alguma. Não há tranquilidade nenhuma de ser quem se é hoje ou amanhã. Ser ator, parece-me, é fincar raízes num tempo coagulado em que existir demanda um contínuo esforço sem qualquer promessa de recompensas, status, riquezas acumuladas, aposentadorias e coisas afins...


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O que eu sinto eu não sinto por você
E também não sinto porque você por mim alguma coisa sente
O sentir que eu sei que sinto não é verbo do qual eu possa dominar
Não sou eu o sujeito que sente
Tampouco sou o alvo do sentir de alguém que sente
Eu sinto também
Mas sinto porque algo me faz sentir
Ou melhor, é esse algo que por mim dá-se ao trabalho de sentir fazendo com que eu sinta 
É alguma coisa que entre nós
Por havermos nós estado aqui nesse lugar
Que a mim e a você permitiu
Que sentíssemos
Quando eu sinto eu não sou eu
Ou sempre sou eu
A sentir
Que alguma coisa em mim
(E por mim)
Sente
Quando eu sinto
Eu penso que estou eu agora
Nesse exato instante
A sentir
E isso já o sentir de alguém que sente
O suficiente 
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Vê o mundo como um teatro!
Serás, então, uma personagem de um enredo da tua história
E ainda que clames o papel de protagonista
Ainda assim serás tão somente uma personagem de um teatro
E tal qual o teatro é artificial -
Porque há nele um palco e uma cortina que o fazem ser artificial -,
Tu serás também artificial na mesmíssima medida
E isso é uma coisa boa!
Busca enrijecer-te a alma
E sê tu uma personagem!
Vê o mundo como um teatro!
E saberás relativizar as coisas
Não o que é mais importante daquilo que é menos importante, bom ou mau -
Juízos de valor não qualificam interesse no teatro -,
O que interessa para o teatro é se o que acontece no teatro é interessante ou nada interessante
Assim, não percas tempo querendo ser alguém
Saibas, antes, se o que dedicas a fazer é coisa passível de interesse
Tanto para tu, que és espectador de si mesmo
Quanto para o mundo que também te observas sendo quem finges ser!
Finge sempre!
Ao final de tudo entenderás que não há ética mais bem elaborada que a cerimônia artificial movida pelas fronteiras do teatro
Porque quem finge sabe que finge
E isso já é ser transparente
Isso é não perder-se em ilusões de caráter
É eliminar o pequeno de quem somos
Deixando a parte principal de quem deveríamos sempre ser
A parte que responde pelo nome de
Ator 
Sê um ator
E serás na tua ausência
Completo.



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sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016


Cansado à exaustão, depois de mais uma sessão de Volpone no teatro, e penso cá comigo naquilo que não raro me perguntam sobre o ofício do ator: não será insuportavelmente tedioso ter de repetir e repetir semanalmente o mesmo espetáculo, seguindo as mesmas falas, cumprindo as mesmas deixas, e tudo para contar a mesma história que há tanto já foi contada e ainda será mais uma vez contada até que se dê por encerrada a temporada? Para além daquilo que se poderia responder ao argumentar que uma sessão nunca é igual à outra porque há sempre que considerar os imprevistos e qualidades diferentes de presença e atenção por parte dos atores e plateia, respondo eu que o fato de o teatro ser espetacularmente poderoso está justamente na razão de sua repetição, um moto contínuo reiterado feito ladainha como numa reza balbuciada. É esse sistema de engrenagens que se põe a funcionar para que funcione naquilo que se espera que funcione que preenche de sentido o ato de aparecer diante de um público. É quase como uma benção reconhecer o sistema, fazê-lo funcionar, ser parte ativa de uma engrenagem que por ser engrenagem é ela própria muito maior do que você que a põe para funcionar. O teatro é maravilhoso porque é repetitivo, sistemático, infinitamente tedioso, portador de um tempo propositalmente coagulado e de contemplação teimosa e refinada. Há aqui uma filosofia e uma ética exemplares: o teatro, como na vida, rebaixa a nossa natural vaidade de imaginarmo-nos portadores de um tamanho que não temos e nunca pudemos ter. Somos a rigor, no teatro e fora dele, peças pequenas, pouco ou quase nada afeitas a livres escolhas, reféns de engrenagens que o nosso desejo de sermos poderosos fazem nublar a nossa afetada visão. O teatro é um constante exercício de humildade. E uma lição de humildade que é experimentada na marra, que fere a pele, maltrata o corpo ao mesmo tempo em que alerta a consciência. Pensando ainda cá comigo, ainda insone nessa avançada madrugada, quão lindo seria se pudéssemos nós, atores, sermos parte do elenco de uma única e mesma peça até o fim de nossos dias, até que a última cortina cerrasse para nunca mais abrir. A isso cumpre, é verdade, o enredo da vida. Que também é, convenhamos, um grande palco.

Amanhã tem mais Volpone. E domingo terá mais Volpone. Semana seguinte haverá mais Volpones...

Viva o teatro!
 
 
 
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quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Não há nada de mais sintomático de uma perversão declarada do que um ator que se presta a aparecer na televisão para contar a sua história íntima... e chorar! E, ao fazer isso, sob o julgamento da plateia das antas, é considerado um artista legítimo! E dos mais sensíveis! Um ator que se permite a esse papelão de breguice incomensurável não é apenas um ícone sem fundo de vaidade melosa - isso todos o somos em algum nível -, é, principalmente (e essencialmente), corrupto. É remar contra a ética de um ofício que exige o sumiço, a sombra, o anonimato do silêncio, como matéria prima para se construir qualquer mínima fronteira poética digna de compartilhamento. É uma corrupção mais ou menos semelhante à daquele político que aparece enfiando dólares na cueca, com o atenuante de que o político que é pego assim é imediatamente taxado de picareta. Com o ator de nossa geração acontece o exato inverso disso: o crime é mérito. Quanto mais o ator é flagrado usufruindo da atenção pública ao seu próprio benefício, explicitando as suas próprias dores e emoções, quanto mais ele é canalha e corrupto, mais, e ainda mais, é celebrado como referência de talento e empatia.

E à decadência ética decorre uma decadência estética. Nossa incapacidade de contar uma boa história, de dar potência de existência à imaginação, é fruto direto de nossa incapacidade de sermos cidadãos coletivos, atentos ao nosso papel dentro de uma comunidade, que não deveria passar, evidentemente, pelo culto reverencial ao umbigo que nos pertence.


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terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

Shakespeare é um engessamento do espaço(-tempo); Machado de Assis é um engessamento do tempo(-espaço); Fernando Pessoa engessa a própria consciência de ser quem se é (ou imagina-se ser); e os três - essa trinca de autores do enclausuramento da liberdade -, produzem, cada qual em seu termo poético, um grande manifesto antitranscendental do ser humano, uma análise assustadoramente concreta e lógica da impossibilidade de redenção metafísica do homem. São os três: Shakespeare, Machado e Pessoa, autores explicitamente adeptos do disfarce, da personagem, da máscara, pois é somente através do uso do artifício explorado em suas últimas consequências, e sem qualquer vestígio de emancipação psicologizante do indivíduo, que é possível alcançar uma consciência do material, daquilo que é palpável e comum a todos, aquilo que é imanente ao sistema artificial de engrenagens que faz girar o jogo - igualmente artificioso - da vida.

Estamos, portanto, ao lado de três grandes poetas adeptos da filosofia espinosiana... Evidentemente distantes de Platão e seu mundo perfeito das ideias abstratas.


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segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Tudo é um mecanismo. A vida é um mecanismo de perfeição intermitente. O que significa dizer que há um equilíbrio de engrenagens que supera o interesse particular em dar um sentido aquilo que somos porque desejamos ser quem somos. Não há força moral ou ética que sobreponha à ideia de que tudo faz parte de um sistema de movimento e funcionamento constantes. O argumento lógico está em reconhecer que é a força de potência das coisas que existem a responsável por instaurar um fluxo de vida. Tudo para além disso são conjecturas abstratas da imaginação que se distancia da verdade dos fatos. Sendo o teatro um microcosmo da vida, o procedimento é o mesmo. O ator consciente não é aquele que mergulha dentro de si para de lá recuperar uma composição de personagem. Essa afetação íntima em nada conspira para adequar-se ao movimento do mundo forjado e propositalmente artificial que é o terreno da poesia - e, sendo um artifício, pressupõe uma estrutura de mecanismo que já pré-existe para dar-se ao movimento. O ator consciente é aquele que se deixa atar voluntariamente ao mecanismo ao qual sabe pertencer: o texto, o cenário, o figurino, a iluminação e sonoplastia, o contato com os outros atores, tudo isso, enfim, são peças formadoras dessa grande engrenagem concreta e de potência expressiva. A personagem em sua instância subjetiva não existe. Afirmar contrariamente a isso é um equívoco semelhante àquele em que o homem crê-se dono do seu destino, ou, ainda, que imagina que tudo o que há ou haverá de ser respeita a uma lógica que compete a ele, ao homem, a razão ou finalidade primordial. O teatro é esse sistema que encaixota o ator, o restringe em sua liberdade, armazena e amplia sua verve expressiva justamente porque faz canalizar sua voz ao invés de fingir uma falsa liberdade. Liberdade essa que não só é falsa no teatro como também na vida.



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domingo, 7 de fevereiro de 2016

Todo teatro tem o dever ético e moral de ser antirrealista. Qualquer ator tem a obrigação de ampliar o volume da vida ao pisar num palco.



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No meio de seu Brás Cubas, Machado de Assis - que faz da voz do protagonista-narrador a sua própria voz - diz abertamente e sem floreios que começa ele a se arrepender do livro. Que é enfadonho escrever. E a culpa de se haver chegado a tal ponto de tédio declarado é menos do autor que escreve que do leitor que teima em continuar a folhear as páginas do livro. Não houvesse leitor e não haveria livro! Ou o livro continuaria ali, quietinho, sem ser importunado em sua altivez muda. Todo ator deveria ter a mesma sensação: que é coisa despropositada aparecer diante de uma gente estranha para portar-se de maneira nada natural e igualmente estranha, e assim levar adiante esse encontro misterioso que durará horas a fio até o cerrar das cortinas e o apagar dos refletores. E que é também menos culpa do ator e mais do espectador que se participe de tão esquisita cerimônia. O espectador ausente alforriaria o ator de sua labuta mentirosa. O que faz Machado de Assis um gênio é a consciência ácida, aliado a sua inata habilidade em manejar a pena da galhofa, em revelar o quanto o microcosmo de um ofício - o de escritor, no seu caso - é uma concentração resumida do absurdo da vida. Somos todos coagidos a agir em função da demanda do outro que ali está plantado diante de nós, esperando que ajamos. E agimos! Somos seres pateticamente manipulados pelo desejo de satisfazer o espetáculo que nos convidam a atuar. A melancolia de Machado é esse termômetro de inteligência traduzido em forma de humor sem filtros. O bom ator deveria proceder da mesmíssima maneira: deixar um olho vigilante em eterna atenção a perguntar o que raios faz aquele bando de malucos sair de suas casas para alvejar com sádico interesse aquele que foi pago para macaquear alguns poucos gestos ensaiados...



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Faço dois personagens diferentes em dois espetáculos que se sucedem no mesmo palco. E eis algumas perguntas idiotas que valem a pena serem respondidas com certa argúcia desavergonhada:

1 - Como você muda o registro de um para outro?
Respondo: E eu lá sou torneira de pia para ter registro?

2 - Como sai tão rapidamente de um personagem para entrar em outro?
Respondo: É verdade que fiz um breve estágio como pomba-gira há tempos não tão remotos, mas o fato é que tenho corpo fechado, aqui num entra nem sai ninguém não.

3 - Você não confunde uma personagem com a outra?
Respondo: Qual foi a última vez em que você confundiu pular amarelinha com brincar de esconde-esconde?
 
 
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O bom ator não é eclético em coisa nenhuma. O bom ator é bom ator. Quem é eclético é o ornitorrinco, que tem bico, bota ovo, parece um pato, e é mamífero.




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segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Felizes dos tempos em que as falas eram mudas, as expressões expressadas - e sem a ajuda do véu do invisível! Deliciosos os dias em que as sobrancelhas subiam e franziam: quando subiam era espanto, quando franziam era braveza. Felizes éramos todos nos dias em que o sentimento era mostrado e não sentido, ou sentido por quem havia por direito sentir, e mostrado por quem dava-se ao divertido exercício de querer mostrá-los. Festivos eram os dias das brincadeiras, das mascaradas, das pantomimas... Dias em que os atores não fingiam que não eram atores, e que, por isso mesmo, podiam fingir quem bem quisessem ser que ninguém haveria de os interpelar cobrando fidelidade com o real! Jubilosos os dias em que o próprio real era matéria do desconhecido e do misterioso, e sendo tudo passível de espanto, nós mesmos, rarefeitos a quem éramos, podíamos farsear todo um mundo que não cabia dentro de nós! Felizes os dias em que tudo era teatro e a verdade não era pauta para nada. Como contentes éramos quando vestíamos figurinos ao invés de roupas básicas, fazíamos reverências, saudações e cumprimentos de uma formalidade quase circense! Andávamos nós na rua como personagens andariam iluminados por uma ribalta, falávamos como se bonecos artificiais fôssemos! Tudo em nós era engessado pela poesia do artificial. E nessa constante cerimônia em que escondíamos a nós mesmos por trás de tantos disfarces, abríamos um espaço enorme de convivência saudável. Felizes dos dias em que a intimidade era guardada com lacres de ouro, e não precisando afirmar nada daquilo que dentro de nós era matéria de dúvida, existíamos para o espaço, para o além do umbigo, para a alegria do espetáculo dos papéis sociais. Um dia o mundo foi um teatro, ou o teatro um mundo. Hoje somos todos um triste elenco de apoio da imagem que nos atravessa, que nos impele a tagarelar o tempo inteiro, que quer saber de nós quem somos, o porquê de sermos quem somos, e aquilo que pensamos sobre quem somos. Perdemos a ribalta e as maquiagens de clown. Resta-nos a cara lavada e um copo com suquinho de maracujá pra acalmar os nervos.


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