sexta-feira, 29 de abril de 2016

Ser ator é um jeito de ser não sendo.
É a medida exata que combina um cansaço da vida - dessa vida que temos de viver porque não nos foi dado outra opção - com a potência de inventar tantas vidas quanto for possível inventar - dessas vidas inúteis, que, por serem inúteis, são as vidas que valem a pena viver... e morrer.

...


...

quarta-feira, 27 de abril de 2016

Não me peçam intimidade! Não queiram proximidade de mim. Minha pouca inteligência é feita de matérias de lonjuras. Preciso olhar a moldura, sentar-me no lugar mais afastado da plateia do teatro. Seus solilóquios só interessam-me se eu puder observá-lo engolido pelo urdimento infinito do palco. Se houver diálogo entre nós, será um diálogo à distância: eu aqui, você ali. E não há nada de frieza nisso! Ao contrário! Só posso respeitá-lo se for me dado o direito de preservar o mistério que há em você. Não quero conhecê-lo - dessa tarefa árdua já basta-me a obrigação de ter de me conhecer, e diariamente, porque desconheço-me na mesma rapidez em que tomo consciência de mim. Quero de você o mesmo respiro que tenho para com as paisagens: um silencioso pacto de duas metades separadas pelo horizonte impalpável.


...


...



segunda-feira, 25 de abril de 2016

Ontem os refletores piscaram ameaçando uma escuridão total durante o espetáculo. No dia anterior foi a caixa de som que parecia viva. O ato político do teatro é justamente esse: saber lidar com as intercorrências não programadas que o instante lhe oferece. Porque imaginar-se parte integrante de algo pronto e acabado é sofrer rasteiras. E é esse estado de equilíbrio precário do teatro que faz do ator alguém necessariamente atento aos arredores. Coisa que deveria ser repetida fora do teatro, na vida. O perigo da queda, a iminência do acaso, a sensação de risco constante. São esses os elementos políticos do teatro. A mensagem ideológica defendida no espetáculo pouco ou nada importa frente à concretude do exercício de estar exposto e ao vivo àquilo que não permite engessamentos. O ato político do teatro é o próprio fato de haver teatro. 
O mundo seria menos histérico, mais atento ao outro, consideravelmente mais silencioso e altruísta, caso o teatro fosse mais frequentado, tanto na plateia quanto no palco.


...


...
Todo ator é um Hamlet. O sarcasmo-melancólico de Hamlet também pertence ao ator. O mundo é deveras podre, e é só por conta disso que o ator é ator, porque é impossível fazer parte do mundo. Antes, é necessário rir do mundo, acusá-lo dos crimes que ele comete, chorar pela suas injustiças, resignar-se pelo fato de ser improvável fazer do mundo um outro mundo. Todo ator é um Hamlet porque todo ator, assim como Hamlet, é um solitário, alguém que enxerga tudo de longe, e, por isso mesmo, enxerga melhor. O grande teatro da vida é um palco, tão pequeno quanto o tablado de uma sala de espetáculos, tão gigante quanto o horizonte infinito cujos olhares não alcançam. O pequeno está contido naquilo que é grande, o grande contém o pequeno. O fardo de Hamlet - a consciência - é o mesmo fardo do ator. Não existem Hamlets ingênuos. Não existem atores ingênuos. Chora-se com um olho, com o outro dá-se uma estrondosa gargalhada. Hamlet e o ator são faces inseparáveis da mesmíssima moeda.



...


...

terça-feira, 19 de abril de 2016

Shakespeare é genial porque inventa palavras. Machado de Assis é igualmente genial porque inaugura um jeito de dizer as palavras. Fernando Pessoa só é Fernando Pessoa porque há um estilo inconfundível de palavrear Fernando Pessoa no papel. Os três são geniais porque entendem uma coisa básica da arte: tudo já foi dito! Não há novidades em dizer coisa alguma. O que sobra é a forma de como dizer. São autores da superfície. Autores que talham o mármore sem muito dar importância ao que dorme escondido em seu interior. E, por mais paradoxal que seja, nesse exercício de flutuar sobre a essência das coisas, daquilo que já foi pisado e repisado, dito e mastigado, alcançam o cerne da natureza humana. Quisessem eles produzir 'conteúdos' e estariam fadados a mediocridade daqueles que creem que é possível corrigir o mundo.


...


...

sábado, 16 de abril de 2016

Fazer teatro é como subir à forca durante várias noites, todas as noites, até o fim da temporada. Mas, como nunca subi à forca - e se o fizesse seria por só uma única e triste vez -, continuo, então, fazendo teatro, que é para saber como é que é a sensação de subir à forca várias vezes, com a certeza de ser enforcado sem ser enforcado. Fazer teatro é suicidar-se suicidando-se. É um gerúndio suicida que nunca se suicida.


...


...

domingo, 10 de abril de 2016

É um prazer infantil. O que mais encanta-me no teatro é o mistério que há no teatro. Mas para que haja mistérios é preciso que haja o teatro, o edifício do teatro, o palco, a plateia, a cortina que separa o palco da plateia. E todo o ritual que aí decorre. O que os atores estarão fazendo agora, antes de começar a peça, quando eu já estou sentado na plateia à espera de que a peça comece? O que haverá atrás da cortina? Qual o primeiro acorde sonoro a ferir o meu ouvido? Que luz mágica incidirá em qual porção escura e para revelar qual segredo antes escondido de mim? Quem entrará em cena primeiro e para dizer o que? Meu Deus! Há algo mais maravilhoso do que esse mistério que há no teatro? Mas é preciso que haja o teatro para que haja o mistério do teatro. Antes de nós há um mundo. É o mundo o que importa. Nós apenas desfilamos por ele. Não há metafísica que supere o mistério concreto do teatro!

Viva!


...


....

segunda-feira, 4 de abril de 2016

Todos deveriam fazer teatro ao menos uma única vez na vida. Ou fazer teatro para saber que se faz teatro. Porque fazer teatro é a única regra possível também fora do teatro. E isso só para constatar uma coisa bastante óbvia que evitaria toda uma série de comportamentos histéricos e barulhentos: a distância que separa a nossa imaginária virtude da nossa potencial canalhice é igual ou menor a da espessura do seu fio de cabelo passado na chapinha... Um pequeno passo para cá, ou um pequeno passo para lá, e quem somos já é outro. A beleza de se fazer teatro é que o teatro é um laboratório seguro e pedagógico. Evita que você, fora do teatro, imagine ser uma coisa que você nunca foi. E evita também que você se torne aquilo que jamais imaginaria que pudesse vir a ser, ainda que o seja por completo, e sem o saber. Ou seja, fazer teatro o põe em dúvida sobre quem você é... E não há nada mais valioso do que isso.



...



....

sexta-feira, 1 de abril de 2016

É preciso ser completamente amoral. Para existir e ter de lidar com o outro é preciso despir-se de religião, crenças, posições político-partidárias, alianças de qual natureza for. É preciso ser um apátrida, um exilado, órfão completo. Se a tarefa é difícil - talvez um exercício para a vida inteira e sem quaisquer garantias de sucesso permanente! -, para o ator, em seu ofício de ator, a questão estabelece-se de imediato como princípio fundamental. O ator só é ator porque é ele completamente amoral. Representa Mephistópheles e Jesus Cristo com o mesmo vigor e energia, não separa o que é bom do que é mau, não qualifica qual personagem merece redenção e qual o castigo. Não há justiça ética no teatro. Há embates éticos. E não para distribuir sentenças, mas para celebrar as contradições, que são a base daquilo que somos quer queiramos ou não. É impensável imaginar um ator fazer um plano de carreira listando as personagens 'adequadas' as quais gostaria de representar. É absurdo imaginar um juízo moral que segrega certo e errado no terreno da poesia. É por essa razão que o ator tem a sorte de habitar um terreno seguro no qual pode ampliar a sua visão para além daquilo que, como pessoa civil, teria mais dificuldades em adquirir. O ceticismo moral necessário para que o ator seja ator garante a ele uma preciosa calma para ter de lidar com as convenções forjadas fora do palco, todas elas convidativas a segmentar a vida, as pessoas e os grupos uns dos outros.

Em momentos de crise de valor, o ator é um ser sortudo. Seu ofício lhe garante uma sabedoria pouco entendida quando a regra é eleger santos e vilões.



...



...
Tenho dificuldades homéricas em entender uma história quando vou ao teatro. Desenvolvo uma burrice involuntária. Vou ao teatro para ver o que acontece. Se alguma coisa acontece é porque é bom. Se nada acontece é porque não é bom. E, em ambos os casos, se me perguntam o que conta a tal da história que acabo de ver, pouco ou nada saberia responder. Se quero entender a história da peça, leio a peça em casa, antes de ir ao teatro vê-la encenada. Como ator ocorre-me o mesmíssimo bloqueio intelectivo. Não sei quantas vezes subi ao palco para representar Ricardo III e até hoje não faço a menor ideia de quem é YORK e quem é LANCASTER. A propósito, quem raios é Montéquio e quem é Capuleto? Romeu é o primeiro ou o segundo? E quanto a Julieta? Nunca sei.


...



...
Shakespeare é bom porque tudo nele é dito, não sobra um único cantinho de escuridão da alma. Tudo é revelado. Mas que delícia também é esse outro teatro que tudo diz para nada dizer. Ou melhor: que diz dizendo aquilo que nunca é possível dizer. É também uma forma de revelar tudo, de atravessar o homem sem qualquer piedade. O teatro é bom por isso, ao menos o bom teatro: não abre concessões para chegar até a única verdade possível: a de que somos nós, cada um de nós, seres maravilhosos e horrorosos na mesmíssima medida, e ao mesmo tempo. O bom teatro celebra o teatro inteiro que somos, cada um de nós o resumo condensado das contradições que nos ergue em vida. Quanta diferença para os melodramas televisivos que nos engessam num maniqueísmo burro, que faz burros os seus atores, e que celebra a burrice como narrativa.



...



...
Tudo o que faço para tentar ser um bom ator em nada tem a ver com 'ser' um ator. Acho de uma imbecilidade colossal escolher especializar-se como ator (seja lá o que esse termo 'especialização' possa vir a significar). Aliás, arrisco a dizer que sou infinitamente grato a minha formação acadêmica de ator justamente porque convenceram-me a não ser ator nenhum durante os quatro anos em que lá estive me esforçando para sair de lá um 'bom' ator. Hoje, por exemplo, fritei um ovo para o café da manhã. Reúno a mais profunda convicção de que esse frugal processo de fritar um ovo, se levado a sério, substitui plenamente a leitura de tudo quanto o velho stanislavski escreveu. E, ainda por cima, você tem a vantagem de poder comê-lo depois de estudá-lo... digo, o ovo! Comer o ovo! Nunca o teatrólogo russo (indigestão na certa).


...



...
Porque da mentira compartilhamos todos nós: escritores e atores. E também todos os que não são escritores ou atores. Afinal, todos mentimos, escritores ou não escritores, atores ou não atores. Mentimos porque é urgente que se minta, ao menos para conseguir suportar a verdade que não nos ajuda a viver bem. E talvez nós, escritores e atores, podemos ter a sorte de saber disso. Ou o azar de saber disso. Porque a mentira de que fazemos uso, nós, atores e escritores, é uma mentira inventada, só nossa, e sobreposta à mentira que aí já está para ser vivida. E aí temos consciência dela, dessa outra mentira maior, da mentira original que por tantas vezes é cegada a título de nos imaginar detentores de alguma verdade. Ou a verdade seja só essa: a de que precisamos acreditar de que somos verdadeiros. E saber de tudo isso é bastante dolorido. E é por isso que somos escritores ou atores, porque, em alguma medida, essa dor é insuportavelmente real, e precisa encontrar maior de ser vazada. A página e o palco servem-nos como drenos dessa dor.



...



...
Gosto do pano de fundo
Da base que a tudo sustenta
Não me deixo enganar pelo encanto das melodias - daquilo que sobe e nunca aterrissa
A percussão que marca o ritmo é o que me interessa
O surdo e quase inaudível martelar do compasso!
Pertenço mais ao corpo que à alma
A moldura! Mais moldura e menos recheios!
Gosto do ator
Da personagem eu desconfio
Verdade nenhuma me abala
Se tiram-me o truque, enrijeço
Sou mais mecanismo que sangue
Minha paixão é pensar
Sou todo um teatro de mentiras
Eis minha única verdade...



...



...
Elimine o maestro que pode carregar por si só uma imagem despótica - e às vezes o é um déspota de verdade! -, e dê o fagote ao violinista. Ele não saberá tocá-lo. E entregue o violino ao trombonista. Tampouco este saberá o que fazer com o instrumento novo. Troque a trompa do trompista com o tímpano do percussionista e ambos - trompista e percussionista - estarão igualmente perdidos! No entanto, todos tocam juntos! De posse de seus instrumentos pessoais e completamente ignorantes em relação ao instrumento do naipe vizinho, a despeito disso - das diferenças concretas e reais - todos tocam a mesma sinfonia, e juntos! Meu Deus! Que maravilha que é uma orquestra! Há ritmo! Todos tocam juntos porque há um tempo em comum! É isso o que há entre os instrumentos, o que neutraliza e potencializa as diferenças: UM TEMPO QUE PULSA EM COMUM ACORDO! E o que dizer das nacionalidades dos músicos? Acabo de ouvir um pianista do Uzbequistão (é assim que se escreve?) tocar um concerto com uma orquestra brasileira! Uma peça de um compositor francês! Todos em COMUM ACORDO ainda que se resolvessem abrir a boca um mal compreenderia o outro! Meu Deus! Que maravilha é uma orquestra! Que lição de civilidade, democracia, convivência! Arrisco a dizer que o exemplo é dado porque nada é mais concreto do que o RITMO, o tempo que PULSA. Nada de ideias, de conceitos, de abstrações filosóficas! Não! Há comunidade porque Há CORPO. E havendo CORPO há em o que tocar e respeitar o que há de específico e diferente nas diversas formas a EXISTIR. HÁ OFÍCIO e HÁ CONCRETUDE! Meu Deus! Que lição de ética. Que maravilha de vida que é possível alcançar com a convivência absoluta das diferenças em COMUM e COLETIVO acordo!

Emocionado com a OSESP.

Por que sou ator, meu Deus? Por que sou eu refém da palavra que a mim convoca a sumir no abstrato das ideias? CORPO! MAIS CORPO! Menos IDEIAS!


...



...