quinta-feira, 31 de julho de 2014

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O sujeito intercepta-me na rua querendo prosear comigo e num lapso de intimidade - estratégia para ganhar minha confiança e brecar meus passos, imagino -, oferece-me as suas mãos para um aperto... Mandei-o lamber sabão.


Mais fácil seria se compartilhasse comigo aquele telefone sem fio feito de latas de Nescau e juntadas por um barbantinho mequetrefe...



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Trotando em direção ao metrô e passo por uma moça negra recostada em um balcão de bar de esquina; estava ela pendurando um celular na orelha, e, em silêncio só interrompido por soluços convulsivos, devolvia em lágrimas copiosas àquilo que seu interlocutor a mim misterioso lhe falava... e tudo assim, sem economia de vergonha às confidências do meio fio da rua...


A emoção sincera é coisa de uma obscenidade atroz! Por isso que o ator, só sincero na mentira, deve se precaver dela como o diabo que foge da cruz!



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terça-feira, 29 de julho de 2014

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"(...) Paulo Pélico, vice-presidente da APTI (Associação dos Produtores de Teatro Independentes), diz que a combinação de trânsito caótico com violência urbana e crescimento de mídias como a TV a cabo afasta o público das salas de teatro. 'A pessoa não vai sair do trabalho às 18hs, ir para casa e depois ir ao teatro, onde tem que buscar lugar para estacionar, com a tentação de ver um DVD ou TV a cabo. É uma equação complicadíssima', diz (...)"

Um único argumento que desbanca todas essas hipóteses: A OSESP. A Sala SP fica no meio da cracolândia - nossa querida Faixa de Gaza - e vive lotada. Sou assinante há mais de 5 anos e frequentemente acompanho os concertos da orquestra do estado. O que é evidente para justificar o sucesso? Simples e translúcido: uma orquestra primorosa, de qualidade irretocável, com programas escolhidos com critério e semanalmente interpretados com rigor e excelência (músicos e maestros internacionais também participam desse revezamento); apoio público: a orquestra é financiada em grande parte pelo estado; os preços acessíveis: é mais barato, dependendo do setor escolhido, assistir a um concerto do que ver um espetáculo na FAAP, por exemplo...

E para quem acha que pisar os pés na Sala SP é coisa de aristocracia do café, mais uma mentira! A Sala SP tem sim as suas véias de laquê e sua turma da Oscar Freire, mas também vive lotada de estudantes e outras fatias nada abastadas da sociedade. Eu bato ponto por lá trajado de calça jeans, camiseta e tênis, não precisei comprar fraque nem cartola. A Fundação OSESP também executa programas sociais e gratuitos de apresentação da música erudita para alunos do ensino público, excursiona com os músicos em temporadas regulares pelo interior do estado, além de manter uma academia de formação de jovens músicos para serem aproveitados futuramente no seu corpo estável ou em outros conjuntos sinfônicos (todos com bolsa de estudo e recebendo aulas dos próprios músicos componentes da OSESP). Sem contar o quarteto de cordas, o coral lírico, a formação de câmara e as palestras gratuitas e abertas ao público sobre os compositores antes de cada concerto.

E o que acontece conosco, miseráveis e maltrapilhos do teatro?

1) Qualquer pobre diabo vira ator ou ganha o direito de subir ao palco por conta do seu charme ou olhos azuis, ou seja, a formação do ator não é coisa valorizada, ou melhor, e sendo mais claro, não vale patavinas! (ele prefere fazer a ponte aérea para a Globo do que frequentar uma universidade); ser ator é mais um estilo de vida do que uma profissão de ofício árduo e diário (veja se um músico não passa diariamente boas horas metido o nariz nas partituras)

2) O governo não está interessado em financiar uma Cia estável de repertório que pudesse seguir os mesmos moldes da OSESP, mais fácil é polvilhar umas gorjetas em forma de editais por aí,

3) Nós, atores com um tiquinho de consciência sobre a importância e dignidade do ofício, temos pouquíssima representatividade ou poder de decisão, já que fazemos qualquer negócio e debaixo de quaisquer condições para apresentar nosso suado trabalho, quase mendigando atenção.

4) Começam a fervilhar cursos ditos de 'interpretação e formação de atores' pelas esquinas (diferente dos universitários) que prometem um passaporte ligeiro e garantido ao estrelado, ou então imersões psicoterapêuticas nos moldes Fátima Toledo que dão conta de transformar a ideia de artista em médium espírita, ou entidade sensitiva do terreiro de santo da Bahia.

5) Resultado? A maioria das coisas que há por aí é de qualidade suspeita. O público é sábio - a culpa não é dele! - prefere ficar em casa vendo um DVD a dormir numa poltrona de teatro - Os espetáculos que ocorrem no SESC são quase sempre um oásis de exceção: bons elencos, diretores, dramaturgos... há conforto nas salas de apresentação, estacionamento, café, preços mais do que acessíveis (algo parecido com a Sala SP)

Enfim.... estive em cartaz com 'Ricardo III' em SP por duas curtíssimas temporadas que, juntas, não ultrapassam três meses de apresentações (sexta, sábado e domingo). Um texto clássico com equipe bacana e em teatros bem localizados. É simplesmente patético não poder permanecer com o trabalho por ao menos 1 ano ininterrupto de sessões semanais. Enquanto isso, 'O Rei Leão' (com todo o respeito às plumas e paetês) estoura em audiência.

Há várias misérias concorrendo: a cultural, a educacional, a institucional e a de infraestrutura...

Futuro para lá de sombrio... Enquanto isso, VIVA A OSESP!



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Quando um ator é bom ele está acima da trilha sonora, da beleza da tomada, do enquadramento... Tudo o que é periférico é detalhe comparado ao ator bom. Aliás, o ator bom é tão bom que ele some, deixando passar a personagem. Quando o ator é bom, ainda que o texto não acompanhe o tamanho do seu talento, ele dá conta de fazer da cena uma dramaturgia primorosa. O ator bom nunca é fora de escala, ao contrário, é na medida... Até o exagero melodramático para o ator bom vira tempero de composição da personagem. O ator bom não reivindica atenção, ele é a própria tensão que dirige o nosso olhar. A vaidade do ator bom é saturada de esquecimentos, não empresta seu rosto para maquiagens carregadas, ao contrário, é econômico. Mas de uma economia falsa, porque o pequeno das cosias para o ator bom é ferramenta explosiva. O ator bom amplia o mínimo e redimensiona o gigantesco. Se quase todos se confundem ao tomar o ator medíocre como ator bom, por outro lado, é impossível não render aplausos ao ator que é destacadamente bom no que faz...
Drica Moraes é tranquilamente e definitivamente desse quilate.


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segunda-feira, 28 de julho de 2014

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Sou vaidoso e egoísta o suficiente para não defender crença nenhuma, bandeira nenhuma, ideologia nenhuma... A guerra que eu deflagro é pela legitimidade do meu focinho poder cheirar o que vier pela frente: se feder eu fujo, se exalar alfazema dos lírios campestres, eu gamo.



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Por que raios todo ator da moda é polivalente? Além de ator, é simpático... além da simpatia, é extrovertido... fora a habilidade da extroversão, é ele também prestimoso, super atencioso... e, além de tudo, sabe sorrir. Ele dança, canta, interpreta e tem uma banda de soul-music. O ator da moda também é preocupado com a crise da faixa de Gaza. Enfim, é sempre tanta coisa boa e reunida o ator da moda...



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É o ímpeto de se dizer tudo o que passa na cabeça que nos torna medíocres.... e, devo dizer, essa irrefutável conclusão acabou de acometer-me a consciência.


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É preciso arrumar mais profetas da desilusão... Essa história de assumir a voz de arautos do amor comunitário é coisa tão substanciosa quanto uma cantiga de ninar para criancinhas insones...




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Sobre essa professora doutora em Wittgeinstein pela Sorbone e líder anarquista dos movimentos revolucionários cariocas, só uma dúvida me ocorre agora, em plena saúde mental dos meus miolos acadêmicos:

- Será que fui eu o enganado esse tempo todo, e o futuro da sanidade intelectual está no exemplo das capivaras analfabetas das margens do Tietê, que sem frequentar o ensino médio, ainda assim (e por isso mesmo), são filosofas de excelente gabarito, com aquele olhar vítreo ao horizonte, ruminando o capim que Deus lhas deu, sem desejos outros de convencer ninguém de que o mundo não deu certo e precisa do focinho coletivo para emendá-lo, antes felizes por preencher de substância espiritual vossas almas de roedoras-gigantes?


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Se Deus lhe deu miolos saudáveis afeitos ao nobre suadouro do matutar, lhe retribua a graça, e mantenha-o em banho-maria.


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sexta-feira, 25 de julho de 2014

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Quando abrem-se as cortinas, o que se vê é um universo de impossível escalada, e os atores são entidades excepcionais, malabaristas habilidosíssimos, dançarinos de tirar o chapéu, artífices de cada gesto e palavra... Nada nem ninguém, nem um único detalhe ou expressão, chega perto da qualidade trivial, ordinária e enfadonha do cotidiano. Nenhum ator desse tipo de teatro encontra terreno fértil na naturalidade do existir, são, ao contrário, matéria de árduo labor imaginativo, batizados à força pela necessidade de presentificação de uma potência. Toda a poesia desse teatro é forjada em difíceis molduras, nada sobra como contingência do fluxo das coisas. A verdadeira poesia é invenção. O verdadeiro teatro NADA revela dos seus segredos, ele apenas É!
Bob Wilson dá um nó de gravata no ator que somos, sempre em busca que estamos do sentimentozinho que habita o coração do fulaninho para transparecer a alma da personagenzinha que dará conta de imprimir verossimilhança no mundinho que cremos ser real.
Pobreza de espírito, pobreza de criatividade, lacuna de talentos...
Geração da psicologia barata, do divã-ressentido, da terapia coletiva travestida de arte...
Umbigo melancólico, nosso melhor adjetivo.
Meu complexo de vira-lata provou-se patologia diagnosticada!
Somos de fato uma miséria!
Viva o bom teatro!
Viva Bob Wilson!


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quinta-feira, 24 de julho de 2014

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O homem é um projeto pra lá de presunçoso e que definitivamente não deu certo... Mas quando ouço uma orquestra tocar, tudo parece fazer sentido, até mesmo a mais total falta de sentido de tudo isso...



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quarta-feira, 23 de julho de 2014

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Com todo o respeito à capa da Ilustrada de hoje, mas vou levar para a tumba a convicção de que teatro é MISTÉRIO, e que o público não é parceiro de nada até o instante em que as cortinas se abrem (teatro tem que ter cortinas! Se forem de veludo-vermelho com franjas na ponta, ainda melhor!). Compartilhar processos de trabalho com a plateia, chamar o fulaninho da esquina para fazer 'uma ponta', agregar cartas da Dona Lúcia à dramaturgia, abrir toda a caixa preta para a rua...?!?! Me soa quase como programa de governo, de inclusão social, um 'bolsa-não-sei-o-quê'. E a suposição é mais do que justa: nasci no século errado! Em matéria de arte (e de tudo o que nos compete) sou adepto da hierarquia dos papéis: ator é ator, público é público, dramaturgo é dramaturgo. E, sobretudo, do MISTÉRIO! REVELAR-SE, NO PALCO, É MINGUAR TODA E QUALQUER POESIA!


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Guardo comigo a pouca inteligência que tenho para que não caia na tentação de convencer aos outros de que os burros são eles, e não eu...


Em terra de mentecaptos, quem reserva um tiquinho de intimidade irrevelada é PHD em Harvard.



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terça-feira, 22 de julho de 2014

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Às vezes, a melhor mensagem pacifista de todos os tempos, imorredouros e vindouros, é:

- Deixe o povo se matar sossegado!

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Ricardo III ensina-me que a experiência de dar voz a um demônio nos palcos é tão libertadora no sentido de compreender a impossibilidade de encarnar um salvador da pátria fora dele. A herança mais preciosa que levo do teatro é a de saber que longe dos seus domínios eu existo tão somente como um reles e anônimo espectador. E isso é de uma paz incomensurável a rebater fundo na alma!


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segunda-feira, 21 de julho de 2014

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O melhor método de se precaver contra a burrice endêmica é fiscalizar a sua conta bancária evitando que as cifras empatem com o teu ego

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sábado, 19 de julho de 2014

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Há alguma espécie de perfume irresistível nos defuntos que nos faz vir correndo para cheirá-los. Nada de ironias mórbidas ou paródias com o natural exalar da carne que a todos compete repetir quando as cortinas do teatro vierem abaixo (modo à francesa) ou cerrarem-se no encontro das duas metades corridas de ambas as coxias laterais (à italiana, acho eu). Digo dessa tamanha sedução que o defunto desperta, e por isso mesmo o apelo de conhecê-lo, convidando todo pobre diabo, ou rico santo, que ainda padece dessa tragédia que é estar vivo, de, uma vez defronte ao recém empacotado, perguntá-lo a razão pela qual resolvera ir sem antes considerar a hipótese de se despedir, ou mesmo ficar um pouquinho mais enquanto eu, que ainda vivo, vou antes para lhe preparar o terreno lá no além. O defunto é o personagem mais admirável de todos os tempos, épocas e lugares, aquele que sem esforço maior dá conta de nos arrebatar interesses e escrutínios vários! Repare! Se o defunto é um músico, lá vamos nós cantarolar as suas melodias, comprar-lhe os discos, fazer luaus nas areias das praias; agora, se o defunto é um filósofo, sairemos por aí salpicando suas máximas, evocando apadrinhamentos com Platão e Aristóteles, quiçá imprimir e colar frases impactantes de sua autoria no teto do quarto; sendo escritor, e ainda que não tenhamos lido nada do elogiável compadre de Brás Cubas, faz com que corramos até a livraria da esquina para encomendar as suas completas obras. O defunto muito em breve terá seu mérito estampado em placas de ruas, seu busto será cunhado em bronze e enfincado ao lado do coreto da praça lá da cidadezinha de onde deu seus primeiros passos... enfim, tudo o que demonizamos nos vivos retribuímos em troca ao defunto: respeito, admiração, aplausos. Para voltar á metáfora inicial, o único que padece da triste herança do eterno anonimato, coisa já cimentada durante a vida, é o ator. Digo o ator de teatro, esse que propositalmente não deixa nenhum resquício do que foi, nenhum espólio palpável, nada de livros para folhear, letras a repetir, ou poesias passíveis de serem recitadas. Não, o ator morre para nunca mais ser homenageado, e, mesmo em vida, faz do seu ofício um verdadeiro emblema do desejo que tem de ser imediatamente esquecido. Ainda que o bom ator atormente o público com a sua performance depois de terminado o espetáculo, é apenas isso que lhe cabe compartilhar: uma imagem, uma lembrança e nada mais. Acredito que o ator que defunta carregue essa gratidão inerente àquilo que tanto ensaiou quando ainda pisava nas tábuas dos palcos: a satisfação de um completo, retumbante, e agora definitivo, esquecimento.



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domingo, 13 de julho de 2014

Ponderações

Parece que há muita poesia fantasiosa ao redor daquilo que compreende o ofício de um artista, seja porque temos a ideia de que ele é um privilegiado abençoado por Deus e, portanto, escolhido dentre tantos para contradizer o senso comum de que temos a respeito da palavra ‘trabalho’, ou, talvez, porque vendem-nos a sensação, tão enganosa quanto, de que o ator é deveras espontâneo, extrovertido e predestinado a ser alegre naquilo que faz, revertendo seu suor em batidas entusiasmadas de um coração sensível, sempre encantado com a vida e com o próprio ofício. Nesse caso, entendemos que o artista é esse ser de luz imbuído em construir e defender uma auto-imagem (hoje chamaríamos de selfie?), quase que uma falsa personagem, subproduto de uma identidade forjada para agradar e ser agradável, embalagem que muitas vezes desejamos e consumimos com ânsia e prazer. Talvez seja um diagnóstico equivocado do nosso tempo, ou então a qualidade mesmo do que virou isso a que chamamos de ‘arte’ cujo intuito maior é dar prazer aos outros, promover instantes de satisfação e refrigério para as tantas crises que nos assolam em decorrência dessa vida tão esquizofrênica a que fomos condenados a viver. Tenho a dizer que o trabalho de um artista – é o que me cabe concluir ao menos - é coisa tão complicada, minuciosa, estafante e fadada muitas vezes ao erro do que o repertório de aflições das outras tantas profissões as quais convencionamos a chamar de normais. Aliás, arrisco a dizer que o artista tem sim um privilégio diferente dos outros ofícios, sendo este a gigantesca tarefa de conviver e estar atento diariamente àquilo que nos torna o que somos, revertendo tais ponderações em um encontro de diálogo coletivo com o público onde há sempre o risco de nada funcionar. O ator de teatro transita o tempo inteiro em cima de uma corda bamba e convive com o fracasso a cada apresentação, a cada cena, a cada encontro com a plateia. Igual ao trapezista que não pode perder o tempo para não se esborrachar ao chão, o ator também engole a seco quando pisa todos os dias no palco, e não por desejos íntimos de se realizar, mas consciente de que sua tarefa é monumental ao ter de instaurar um novo tempo e espaço diante da assembléia que se forma a cada vez na sala de espetáculos. Portanto, a pergunta que se faz: por que você se sujeita a isso, ao risco diário de naufragar, de perder a voz, de não dar conta de dimensões tão grandiosas contidas nos textos como nos de Shakespeare, a essa pergunta prevalece inteiramente a interrogação, em diversas vezes, na beirada limite entre coxia e palco, antes de dar o primeiro passo que fará definitivamente com que tudo comece e não possa mais retornar ao que era, eu titubeei, desejando fervorosamente que não estivesse ali, que aquilo não estivesse prestes a se iniciar, que tudo não passasse de um sonho resolvido com um beliscão. Mas, entendo, essa aflição é a mesma que impede o equilibrista de cair, essa dor constante, o medo terrificante de se expor na arena dos leões é que mantém vivo o gladiador que sabe, por alguma razão misteriosa, que deve prosseguir. E é assim que acontece, nós prosseguimos, entramos em cena, desejamos o perigo e aproveitamos ele para preencher de força e substância o discurso que temos por desejo e necessidade compartilhar. Em resumo, o artista, como diria Plínio Marcos, é antes de tudo um mártir do que um predestinado aos louros do reconhecimento público, ele antes renuncia a todo o falso glamour que contamina a indústria do entretenimento para emprestar seu corpo e voz a uma tarefa mais urgente e em nada afeita às purpurinas do estrelado: a de ser o porta-voz daquilo que necessita ser compartilhado, argumento que nos desnuda, nos põe em contato com a verdadeira essência do ser humano, e esse processo não é nada fácil, nem para o ator, tampouco para o público. Fazer parte dessa experiência e sentir na pele que todos nós somos desejosos por contar e ouvir histórias é o que torna o teatro um local mágico e extremamente revigorante. Evidentemente que o ator deve amar aquilo que faz, mas isso não é privilégio algum, ao contrário, é ponto de partida, na mesma medida em que um advogado, veterinário ou dentista devem também amar o seu ofício, e nesse amor também está contido o ódio, o sentimento de infortúnio, a esperança, a alegria, a satisfação por ter realizado um bom trabalho em determinada ocasião, enfim, todos os afetos reunidos e concentrados. Ao término de um espetáculo, absolutamente entregue ao cansaço e empapado de suor, se rememoro o que acabei de fazer entendendo que pude por um breve período de tempo contribuir para que algo acontecesse, algo diferente do enredo ordinário dos nossos dias, algo que possa ter despertado interesse e atenção por parte do público, aí, então, sinto-me satisfeito, mas somente até a noite seguinte, quando tudo deverá ser construído novamente, com as mesmas doses de aflição e entusiasmo.

sábado, 12 de julho de 2014

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O rompimento da estrutura denuncia o sujeito naquilo que há de íntimo e pouco efetivo para se lidar com o que existe ao redor. A perda do esquema tático faz surgir o jogador emotivo e vaidoso, agora individualizado, portador de nome próprio e repertório de produtos que vendem a sua figura. Antes havia o craque, o ponta de lança, o meio de campo, hoje há o Fulaninho de Tal que usa o creme X, astro da propaganda em que aparece penteando o cabelo e contando as dificuldades que teve de passar até chegar ao status atual de celebridade, forjando assim uma marca registrada daquilo que aparenta ser. Não há mais funções, há identidades, todas elas protagonistas de um jogo cujo propósito se mantém inalterável - o jogo ainda está lá para ser jogado -, ultrapassando em sua essência às pretensões do ego. Mas decorre daí, dessa incongruência de fatores, um naufrágio que revela basicamente o quão frágil é essa individualidade toda embasada numa aparência sedutora, mas de substância vazia, pouco versada ao trabalho prático e bastante volátil quando é preciso ter os nervos em ordem. Embora qualquer estrutura maior esteja rompida, o indivíduo em sua luta por se manter em evidência ainda deve contas a prestar. É aí que eclode a crise, quando até mesmo a empatia mais bem talhada no charme não mais dá conta de protagonizar os interesses alheios, transparecendo a ausência completa de capacidade para se levar adiante o jogo já iniciado. Nas artes ocorre o mesmo. O gradual desinteresse pela máscara, pelas fronteiras concretas da personagem fictícia em favor do temperamento do ator, coloca à prova um artista cada vez mais instável e sensível, virando ele próprio o assunto, alguém que resume naquilo que sente em seu íntimo o trabalho que deveria fazer dele um operário de algo maior que seu umbigo. E há aqui também uma consequência política, afinal, quando os exemplos de expressão passam a ser comandados pelas sensações internas de individualidades cada vez mais ansiosas em satisfazer a sua carência afetiva, a praça pública vira uma enorme creche, com bandos de manifestantes portando-se como perfeitas crianças mimadas que tiveram suas chupetas arrancadas à força sabe-se lá por qual razão. O paradoxo é bastante claro: para que haja um comprometimento com os outros e consigo próprio é necessário exercitar o sumiço; o bom ator aparece justamente porque abre espaço para um corpo e uma voz que não são suas, o craque só é craque porque treina para inventar molejos e artimanhas no campo que fogem àquilo que ele é na rua. E o mesmo para as demais reivindicações: silenciar o íntimo é saber estar atento e respeitoso aos fatos que necessariamente pertencem ao espaço do coletivo e merecem ser discutidos.

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quinta-feira, 10 de julho de 2014

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Retornando de um retiro forçado longe do Bardo, o primeiro ensaio de Ricardo III como preparação para a curta temporada de apresentações no interior de SP se deu num sofá. Isso mesmo, num sofá deveras amplo e de aconchego inequívoco! Sentem-se, senhores, convocou-nos Shakespeare. York e Lancaster dividindo almofadas. E eis que tudo começa. E incrivelmente as palavras ganham sentido! Nota-se um grande poeta através de sua capacidade de inocular imagens em qualquer suporte. O sofá deixa de ser sofá rapidamente, o chão de madeira já não mais range como antes rangia, quando os nossos passos eram passos arrastados trazidos pelo enredo morno das ruas, até a bendita garrafinha de água em sua arrogância diária torna-se absolutamente ameaçadora perante ao veneno de verbos afiados, agora é ela própria, a garrafinha, o receptáculo de perigos meticulosamente administrados em cadências musicais para tratar daquilo que não é móvel (ainda menos acolchoado), ou seja, a eterna dureza das aflições humanas. Chego cansado em casa e com a garganta arranhada, ligo a TV e vejo a quantidade de sofás ultra sofisticados a polvilhar os chiques cenários dessa novela cujo autor até hoje não desiste das lágrimas piedosas, todos eles servindo de assento a tantos personagens plastificados, nada vivos, cada um defendendo a imagem de uma beleza falsa, triste e sem contornos...

Enfim, como sou privilegiado em poder fazer teatro, arranhar a garganta, e fazer dos meus sofás sofás impossíveis, ainda que longe de serem tão suntuosos quanto esses que estão na moda.

Feliz!


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quarta-feira, 9 de julho de 2014

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O trabalho do ator está no intervalo entre a personagem que deseja existir de fato e o próprio ator, que reconhece com dor a impossibilidade de tal engenharia...

O resto é desperdício auto-referente, piedoso e terapêutico.

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quinta-feira, 3 de julho de 2014

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Até quando evitaremos a loucura que insiste em bater à porta para nos dizer: surte sem medo, que o caminho é exatamente esse?

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terça-feira, 1 de julho de 2014

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Vender a inteligência é coisa simples, simplérrima, e até desejável... A dureza é que para ser uma anta é necessário um baita talento, persistência no rumino de capins selecionados, e cuidado constante para que o focinho não perca a umidade.

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