Parece que há muita poesia fantasiosa ao redor daquilo que
compreende o ofício de um artista, seja porque temos a ideia de que ele é um
privilegiado abençoado por Deus e, portanto, escolhido dentre tantos para
contradizer o senso comum de que temos a respeito da palavra ‘trabalho’, ou,
talvez, porque vendem-nos a sensação, tão enganosa quanto, de que o ator é
deveras espontâneo, extrovertido e predestinado a ser alegre naquilo que faz,
revertendo seu suor em batidas entusiasmadas de um coração sensível, sempre
encantado com a vida e com o próprio ofício. Nesse caso, entendemos que o
artista é esse ser de luz imbuído em construir e defender uma auto-imagem (hoje
chamaríamos de selfie?), quase que uma falsa personagem, subproduto de uma
identidade forjada para agradar e ser agradável, embalagem que muitas vezes
desejamos e consumimos com ânsia e prazer. Talvez seja um diagnóstico
equivocado do nosso tempo, ou então a qualidade mesmo do que virou isso a que
chamamos de ‘arte’ cujo intuito maior é dar prazer aos outros, promover
instantes de satisfação e refrigério para as tantas crises que nos assolam em
decorrência dessa vida tão esquizofrênica a que fomos condenados a viver. Tenho
a dizer que o trabalho de um artista – é o que me cabe concluir ao menos - é
coisa tão complicada, minuciosa, estafante e fadada muitas vezes ao erro do que
o repertório de aflições das outras tantas profissões as quais convencionamos a
chamar de normais. Aliás, arrisco a dizer que o artista tem sim um privilégio
diferente dos outros ofícios, sendo este a gigantesca tarefa de conviver e estar
atento diariamente àquilo que nos torna o que somos, revertendo tais
ponderações em um encontro de diálogo coletivo com o público onde há sempre o
risco de nada funcionar. O ator de teatro transita o tempo inteiro em cima de
uma corda bamba e convive com o fracasso a cada apresentação, a cada cena, a
cada encontro com a plateia. Igual ao trapezista que não pode perder o tempo
para não se esborrachar ao chão, o ator também engole a seco quando pisa todos
os dias no palco, e não por desejos íntimos de se realizar, mas consciente de
que sua tarefa é monumental ao ter de instaurar um novo tempo e espaço diante
da assembléia que se forma a cada vez na sala de espetáculos. Portanto, a
pergunta que se faz: por que você se sujeita a isso, ao risco diário de
naufragar, de perder a voz, de não dar conta de dimensões tão grandiosas
contidas nos textos como nos de Shakespeare, a essa pergunta prevalece
inteiramente a interrogação, em diversas vezes, na beirada limite entre coxia e
palco, antes de dar o primeiro passo que fará definitivamente com que tudo
comece e não possa mais retornar ao que era, eu titubeei, desejando fervorosamente
que não estivesse ali, que aquilo não estivesse prestes a se iniciar, que tudo
não passasse de um sonho resolvido com um beliscão. Mas, entendo, essa aflição
é a mesma que impede o equilibrista de cair, essa dor constante, o medo
terrificante de se expor na arena dos leões é que mantém vivo o gladiador que
sabe, por alguma razão misteriosa, que deve prosseguir. E é assim que acontece,
nós prosseguimos, entramos em cena, desejamos o perigo e aproveitamos ele para
preencher de força e substância o discurso que temos por desejo e necessidade
compartilhar. Em resumo, o artista, como diria Plínio Marcos, é antes de tudo
um mártir do que um predestinado aos louros do reconhecimento público, ele
antes renuncia a todo o falso glamour que contamina a indústria do
entretenimento para emprestar seu corpo e voz a uma tarefa mais urgente e em
nada afeita às purpurinas do estrelado: a de ser o porta-voz daquilo que
necessita ser compartilhado, argumento que nos desnuda, nos põe em contato com
a verdadeira essência do ser humano, e esse processo não é nada fácil, nem para
o ator, tampouco para o público. Fazer parte dessa experiência e sentir na pele
que todos nós somos desejosos por contar e ouvir histórias é o que torna o
teatro um local mágico e extremamente revigorante. Evidentemente que o ator
deve amar aquilo que faz, mas isso não é privilégio algum, ao contrário, é
ponto de partida, na mesma medida em que um advogado, veterinário ou dentista
devem também amar o seu ofício, e nesse amor também está contido o ódio, o
sentimento de infortúnio, a esperança, a alegria, a satisfação por ter
realizado um bom trabalho em determinada ocasião, enfim, todos os afetos
reunidos e concentrados. Ao término de um espetáculo, absolutamente entregue ao
cansaço e empapado de suor, se rememoro o que acabei de fazer entendendo que
pude por um breve período de tempo contribuir para que algo acontecesse, algo
diferente do enredo ordinário dos nossos dias, algo que possa ter despertado
interesse e atenção por parte do público, aí, então, sinto-me satisfeito, mas
somente até a noite seguinte, quando tudo deverá ser construído novamente, com
as mesmas doses de aflição e entusiasmo.