Há alguma espécie de perfume irresistível nos defuntos que
nos faz vir correndo para cheirá-los. Nada de ironias mórbidas ou paródias com
o natural exalar da carne que a todos compete repetir quando as cortinas do
teatro vierem abaixo (modo à francesa) ou cerrarem-se no encontro das duas
metades corridas de ambas as coxias laterais (à italiana, acho eu). Digo dessa
tamanha sedução que o defunto desperta, e por isso mesmo o apelo de conhecê-lo,
convidando todo pobre diabo, ou rico santo, que ainda padece dessa tragédia que
é estar vivo, de, uma vez defronte ao recém empacotado, perguntá-lo a razão
pela qual resolvera ir sem antes considerar a hipótese de se despedir, ou mesmo
ficar um pouquinho mais enquanto eu, que ainda vivo, vou antes para lhe
preparar o terreno lá no além. O defunto é o personagem mais admirável de todos
os tempos, épocas e lugares, aquele que sem esforço maior dá conta de nos
arrebatar interesses e escrutínios vários! Repare! Se o defunto é um músico, lá
vamos nós cantarolar as suas melodias, comprar-lhe os discos, fazer luaus nas
areias das praias; agora, se o defunto é um filósofo, sairemos por aí
salpicando suas máximas, evocando apadrinhamentos com Platão e Aristóteles,
quiçá imprimir e colar frases impactantes de sua autoria no teto do quarto;
sendo escritor, e ainda que não tenhamos lido nada do elogiável compadre de Brás
Cubas, faz com que corramos até a livraria da esquina para encomendar as suas
completas obras. O defunto muito em breve terá seu mérito estampado em placas
de ruas, seu busto será cunhado em bronze e enfincado ao lado do coreto da
praça lá da cidadezinha de onde deu seus primeiros passos... enfim, tudo o que
demonizamos nos vivos retribuímos em troca ao defunto: respeito, admiração,
aplausos. Para voltar á metáfora inicial, o único que padece da triste herança
do eterno anonimato, coisa já cimentada durante a vida, é o ator. Digo o ator
de teatro, esse que propositalmente não deixa nenhum resquício do que foi,
nenhum espólio palpável, nada de livros para folhear, letras a repetir, ou
poesias passíveis de serem recitadas. Não, o ator morre para nunca mais ser
homenageado, e, mesmo em vida, faz do seu ofício um verdadeiro emblema do
desejo que tem de ser imediatamente esquecido. Ainda que o bom ator atormente o
público com a sua performance depois de terminado o espetáculo, é apenas isso
que lhe cabe compartilhar: uma imagem, uma lembrança e nada mais. Acredito que
o ator que defunta carregue essa gratidão inerente àquilo que tanto ensaiou
quando ainda pisava nas tábuas dos palcos: a satisfação de um completo,
retumbante, e agora definitivo, esquecimento.
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