quinta-feira, 10 de julho de 2014

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Retornando de um retiro forçado longe do Bardo, o primeiro ensaio de Ricardo III como preparação para a curta temporada de apresentações no interior de SP se deu num sofá. Isso mesmo, num sofá deveras amplo e de aconchego inequívoco! Sentem-se, senhores, convocou-nos Shakespeare. York e Lancaster dividindo almofadas. E eis que tudo começa. E incrivelmente as palavras ganham sentido! Nota-se um grande poeta através de sua capacidade de inocular imagens em qualquer suporte. O sofá deixa de ser sofá rapidamente, o chão de madeira já não mais range como antes rangia, quando os nossos passos eram passos arrastados trazidos pelo enredo morno das ruas, até a bendita garrafinha de água em sua arrogância diária torna-se absolutamente ameaçadora perante ao veneno de verbos afiados, agora é ela própria, a garrafinha, o receptáculo de perigos meticulosamente administrados em cadências musicais para tratar daquilo que não é móvel (ainda menos acolchoado), ou seja, a eterna dureza das aflições humanas. Chego cansado em casa e com a garganta arranhada, ligo a TV e vejo a quantidade de sofás ultra sofisticados a polvilhar os chiques cenários dessa novela cujo autor até hoje não desiste das lágrimas piedosas, todos eles servindo de assento a tantos personagens plastificados, nada vivos, cada um defendendo a imagem de uma beleza falsa, triste e sem contornos...

Enfim, como sou privilegiado em poder fazer teatro, arranhar a garganta, e fazer dos meus sofás sofás impossíveis, ainda que longe de serem tão suntuosos quanto esses que estão na moda.

Feliz!


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