domingo, 13 de julho de 2014

Ponderações

Parece que há muita poesia fantasiosa ao redor daquilo que compreende o ofício de um artista, seja porque temos a ideia de que ele é um privilegiado abençoado por Deus e, portanto, escolhido dentre tantos para contradizer o senso comum de que temos a respeito da palavra ‘trabalho’, ou, talvez, porque vendem-nos a sensação, tão enganosa quanto, de que o ator é deveras espontâneo, extrovertido e predestinado a ser alegre naquilo que faz, revertendo seu suor em batidas entusiasmadas de um coração sensível, sempre encantado com a vida e com o próprio ofício. Nesse caso, entendemos que o artista é esse ser de luz imbuído em construir e defender uma auto-imagem (hoje chamaríamos de selfie?), quase que uma falsa personagem, subproduto de uma identidade forjada para agradar e ser agradável, embalagem que muitas vezes desejamos e consumimos com ânsia e prazer. Talvez seja um diagnóstico equivocado do nosso tempo, ou então a qualidade mesmo do que virou isso a que chamamos de ‘arte’ cujo intuito maior é dar prazer aos outros, promover instantes de satisfação e refrigério para as tantas crises que nos assolam em decorrência dessa vida tão esquizofrênica a que fomos condenados a viver. Tenho a dizer que o trabalho de um artista – é o que me cabe concluir ao menos - é coisa tão complicada, minuciosa, estafante e fadada muitas vezes ao erro do que o repertório de aflições das outras tantas profissões as quais convencionamos a chamar de normais. Aliás, arrisco a dizer que o artista tem sim um privilégio diferente dos outros ofícios, sendo este a gigantesca tarefa de conviver e estar atento diariamente àquilo que nos torna o que somos, revertendo tais ponderações em um encontro de diálogo coletivo com o público onde há sempre o risco de nada funcionar. O ator de teatro transita o tempo inteiro em cima de uma corda bamba e convive com o fracasso a cada apresentação, a cada cena, a cada encontro com a plateia. Igual ao trapezista que não pode perder o tempo para não se esborrachar ao chão, o ator também engole a seco quando pisa todos os dias no palco, e não por desejos íntimos de se realizar, mas consciente de que sua tarefa é monumental ao ter de instaurar um novo tempo e espaço diante da assembléia que se forma a cada vez na sala de espetáculos. Portanto, a pergunta que se faz: por que você se sujeita a isso, ao risco diário de naufragar, de perder a voz, de não dar conta de dimensões tão grandiosas contidas nos textos como nos de Shakespeare, a essa pergunta prevalece inteiramente a interrogação, em diversas vezes, na beirada limite entre coxia e palco, antes de dar o primeiro passo que fará definitivamente com que tudo comece e não possa mais retornar ao que era, eu titubeei, desejando fervorosamente que não estivesse ali, que aquilo não estivesse prestes a se iniciar, que tudo não passasse de um sonho resolvido com um beliscão. Mas, entendo, essa aflição é a mesma que impede o equilibrista de cair, essa dor constante, o medo terrificante de se expor na arena dos leões é que mantém vivo o gladiador que sabe, por alguma razão misteriosa, que deve prosseguir. E é assim que acontece, nós prosseguimos, entramos em cena, desejamos o perigo e aproveitamos ele para preencher de força e substância o discurso que temos por desejo e necessidade compartilhar. Em resumo, o artista, como diria Plínio Marcos, é antes de tudo um mártir do que um predestinado aos louros do reconhecimento público, ele antes renuncia a todo o falso glamour que contamina a indústria do entretenimento para emprestar seu corpo e voz a uma tarefa mais urgente e em nada afeita às purpurinas do estrelado: a de ser o porta-voz daquilo que necessita ser compartilhado, argumento que nos desnuda, nos põe em contato com a verdadeira essência do ser humano, e esse processo não é nada fácil, nem para o ator, tampouco para o público. Fazer parte dessa experiência e sentir na pele que todos nós somos desejosos por contar e ouvir histórias é o que torna o teatro um local mágico e extremamente revigorante. Evidentemente que o ator deve amar aquilo que faz, mas isso não é privilégio algum, ao contrário, é ponto de partida, na mesma medida em que um advogado, veterinário ou dentista devem também amar o seu ofício, e nesse amor também está contido o ódio, o sentimento de infortúnio, a esperança, a alegria, a satisfação por ter realizado um bom trabalho em determinada ocasião, enfim, todos os afetos reunidos e concentrados. Ao término de um espetáculo, absolutamente entregue ao cansaço e empapado de suor, se rememoro o que acabei de fazer entendendo que pude por um breve período de tempo contribuir para que algo acontecesse, algo diferente do enredo ordinário dos nossos dias, algo que possa ter despertado interesse e atenção por parte do público, aí, então, sinto-me satisfeito, mas somente até a noite seguinte, quando tudo deverá ser construído novamente, com as mesmas doses de aflição e entusiasmo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário