segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Qual é o mínimo que cabe a mim contribuir? É disso que deveríamos tratar: do minúsculo. É dessa ética, ou da falta dela, que padecemos. Porque dar ao mundo a excelência dos nossos esforços naquilo que é visível é tarefa fácil, cumprimos ela sem grandes dificuldades. Um grande ator se nota no silêncio, na sombra. Os holofotes são geralmente disputados a tapa por aqueles que não têm talento algum para sustentar um foco de luz. Estar na evidência não garante uma boa cena. Estar exposto não é sinônimo de angariar atenção. Um dos ensinamentos mais importantes do teatro é a compreensão de que é preferível nada fazer do que plantar mil bananeiras no centro do palco. É dificílimo entrar em cena e estar diante de algo sem querer emitir opiniões, sem desejar arrastar os olhares da plateia. Mas é isso mesmo: só consegue botar uma plateia abaixo quem antes é experimentado nessa importante arte que é a de frequentar a periferia dos acontecimentos.

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quarta-feira, 18 de outubro de 2017

Faço dois personagens atualmente no teatro. E por isso tenho que me desdobrar em quatro: os dois personagens que tenho de fazer, e mais outros dois de mim que me vigiam ao fazer cada personagem que faço. Na verdade, são cinco: os dois personagens, os dois de mim que vigiam cada personagem que faço no instante em que estou lá a fazê-los, e um outro distanciado desses todos que gerencia essa equação para que tudo ocorra sem grandes percalços. Ou melhor, devo admitir, são seis. O último deles um outro de mim que assiste a tudo o que faço e fazem por mim sem precisar entrar em crise ao calcular se o resultado do meu esforço é bom ou não. Para terminar logo com isso, são sete os de mim que existem ao mesmo tempo para que haja teatro naquilo que me proponho a fazer. O sétimo eu deixo no camarim, dormindo, a espera de que tudo acabe. Esse sétimo odeia ter de esperar que tudo acabe. A depender dele eu nem teria ido ao teatro para fazer teatro. Mas amo de paixão o sétimo, porque sempre valorizo as contra-vontades e aqueles que carregam uma certa síndrome de Bartelby: MELHOR NÃO SUBIR AO PALCO. O oitavo de mim só existe para contrariar esse que nasceu para me advertir das enrascadas que é ser ator. É por esse oitavo que eu confiro a razão de eu não desistir nunca, ou melhor, de não desistir naquele instante, porque depois que tudo acaba eu desisto, e o sétimo - o cético-sábio e emburrado - volta a imperar. Guardo ainda dois de mim na reserva: o nono e o décimo. O nono me ama, quer que eu seja o melhor ator do universo - e sabe perfeitamente que eu sou o melhor ator da face da Terra -, vive a bajular-me e soltar confetes no meu cocuruto já quase careca. O décimo me consola, diz que eu nasci no tempo errado, me oferece uns tragos para acalmar os ânimos feridos e evitar que eu me atire da ponte em razão da certeza de que tenho de que sou um completo fracasso, um erro das ribaltas, um zé ninguém que veio ao mundo para fazer o pior tipo de figuração possível...

Enfim, carrego dez de mim...
E só consigo fazer teatro assim
Quando quem eu sou decide por bem estapear
Ou beijar
O pobre diabo que me faço ser
E isso todas as noites
Debaixo de aplausos
Ou desviando dos tomates.

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terça-feira, 10 de outubro de 2017

Não sei se gosto mais do que faço ou de pensar no que tomei por decisão fazer. E uma coisa não alivia a outra, ao contrário. Quanto mais penso nessa atitude maravilhosamente maluca que é fingir quem eu não sou, mais decididamente complicado se torna o ato deliberado de fingir. É uma dúvida hamletiana na acepção do termo. Porque se finjo quem eu não sou eu dou-me por certo de que eu sei quem eu sou para poder deixar de sê-lo e virar um outro que não eu. Mas também desconfio de que isso seja possível e, então, chego a conclusão de que eu finjo sempre e, portanto, representar não passa de um estado natural e potencializado desse eu genuíno que eu já sou e sempre fui. Mas aí complica ainda mais porque não há ideia mais triste do que ser quem se é no exercício do ofício que escolhi fazer. E então finjo que eu finjo que eu não sou um fingidor para poder, aí sim, enganar aos outros e a mim, esses outros e eu mesmo que adoramos ser enganados. É por isso que o exercício de vestir uma máscara, o de representar um papel, é uma atitude essencialmente política, porque ela é dialética quer se queira quer não. A cada esforço criativo um abismo de dúvidas e espaços incompletos se abre diante de nós. E é por isso que ser ator é um encargo de extrema angústia, porque olhar-se no espelho e nunca ter a imagem precisa de quem se é é, no mínimo, desesperador. Mas também fascinante. Conviver nesse intervalo de vazios é ganhar o direito de não pertencer a nada nem a ninguém. É poder rir e chorar do mundo com uma intensidade ainda maior do que seria rir e chorar fazendo parte desse mundo. É ser um Brás Cubas, um defunto-autor, e também um autor-defunto.

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segunda-feira, 9 de outubro de 2017

Arte tem a ver com inteligência. Todo artista deveria ser um intelectual, alguém que pensa, e que pensa para além do que é pensado pelas esquinas da vida. Pensamento que em nada tem relação com alternativas para o alívio das moléstias dos dias, soluções para problemas, remédios para doenças éticas ou morais. Pensamento puro e simples, de quem pensa e assume as dores e dificuldades de pensar, doa a quem doer. E, para isso, arte tem a ver com formação, com preparo, com temporadas de silêncio para que se possa alçar o direito de poder dizer alguma coisa com um mínimo de autonomia. Nossa miséria é que essa ideia neoliberal que confere ao mercado o sentido de sucesso de tudo o que se entende por mercadoria transmite à arte uma idiotice exemplar para aquilo que entendemos por ser artista hoje. E a arte - que necessariamente é, ou deveria ser, um terreno pedregoso - vira um pagode de boteco. Tudo fica fácil e gostoso porque fazer o que se faz é tão gostoso quanto filar um churrasco enquanto se batuca um samba no tamborim. Hoje o artista é o oportunista, aquele que agarra a oportunidade com unhas e dentes, aquele que está no lugar certo e na hora certa para poder acontecer no instante certeiro. É aquele que é famoso pela imagem que o tornou famoso, mas que de substância é tão cru e vazio que mal consegue se suster de pé. E as plateias de hoje já são idiotas o suficiente para louvar esse grande ícone da idiotice aclamada que virou o ser-artista de hoje.
Todo artista só deveria ser assim chamado caso fosse alguém culto, de uma erudição ímpar, alguém que pudesse enfrentar o mundo com a petulância de querer contestá-lo, jogar no focinho dos outros as nossas idiossincrasias que nos tornam maravilhosos e hipócritas ao mesmo tempo. Arte tem a ver com inteligência. Com gente inteligente e extremamente evoluída em todas as faculdades que competem a tarefa do pensar.


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