terça-feira, 10 de abril de 2018

Meio bêbado e já avançado nas horas, escrevo: o barato do teatro é o que ocorre antes do teatro e depois do teatro. O teatro em si, o acontecimento que bota o ator debaixo do refletor, isso é de importância relativa em função ao antes e ao depois. Explico. A expectativa de se ver jogado à jaula dos leões e o alívio de ter sobrevivido à ela são o que movimentam os ânimos do atores. Antes da cortina se abrir e o instante final em que ela definitivamente cerra suas franjas, são nesses dois estágios em que se encontra o sentido máximo do trabalho do ator. É por isso que não se pode chamar de 'ator' esses 'atores' dos estúdios de gravação, porque não existe, para eles, a qualidade necessária e urgente de ter de começar algo para depois ter de terminar. Essa instância do terrível que é ver-se jogado aos olhares da plateia, esse desespero profundo que é estar na iminência de ser devorado por olhos estranhos, e a beleza de mandá-los todos às favas depois de tudo terminado, é nesse terreno que se configura o ator; ele, nessas condições, não comanda nada, ao contrário, é comandado. Erro crasso dizer que o teatro é o terreno do ator. Nada mais falso. O teatro é o terreno do teatro, o ator que se vire para acompanhá-lo na dinâmica que é dele, e só dele, do teatro. Nos estúdios refrigerados, aí sim, quem manda é o ator, que caso sinta incomodado com um ciso a lhe pinçar as pestanas ordena que tudo pare para que o bendito cisco seja retirado. É preciso reafirmar a beleza do teatro, que não é a beleza do ator que faz o teatro, mas do teatro que impõe ao ator a sua condição de arremessá-lo ao calabouço da exposição pública. Aprende-se muito com isso, inclusive uma tremenda bagagem ética e política o teatro dá conta de suprir. Quando você se percebe vítima dessa engrenagem maior que é a cena, é como se uma dose gigantesca de humildade, de resignação, de consciência do fracasso, tomasse conta da sua espinha de cima abaixo. Individualismo nenhum sobrevive a isso. Ocorre, ao contrário, um completo anulamento do seu ego brilhante, da sua vaidade trasbordante em prol de algo deveras maior que o vosso reluzente umbigo. O teatro hoje, mas digo o teatro de verdade, não esses musicais made-in-broadway que protegem o ator com trecos tecnológicos e badauês importados, ou esses shows solo de comédia barata, ou mesmo essas aulas de testemunho terapêutico...., digo o teatro em que há personagens, e personagens mais substanciosas que a psicologia mequetrefe do ator, esse teatro, hoje, é a coisa mais em extinção que poderia haver. Porque pertencemos a essa época da positividade, da ideia de que temos de ser bem sucedidos, empreendedores, vencedores, sãos, medicados até a tampa do cabelo. O teatro, esse teatro verdadeiro, injeta a experiência concreta do fracasso, da decadência a cada passo do ator, a cada gesto do ator, e é por aí, por esse meio, e só por ele, que esse ator se torna grande, incomparável. A cena é tão somente o produto de uma aflição somada a um respiro fulminante de dever cumprido. As tábuas do palco para o ator de teatro são quentes, pelando. Nunca é ou será confortável estar diante dessa coisa chamada teatro. Os espectadores deveriam, ao menos uma vez, encontrar com o ator nesses dois momentos: no antes e no depois. Aí está o segredo de tudo. A condenação e a alforria. 
Que tristes tempos para se fazer teatro, desses teatros verdadeiros, essencialmente verdadeiros.

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