sexta-feira, 14 de setembro de 2018

Cada vez mais me convenço de que uma boa preparação para o ator em nada tem a ver com a sua personagem. O ator bem preparado nunca sabe representar personagem nenhuma, quanto mais representar a sua personagem, que é totalmente desconhecida para ele. O bom ator é aquele que é bem preparado para dar conta de uma certa trajetória recheada de incógnitas. Na medida em que o ator estiver desocupado dessa coisa chamada personagem, essas dúvidas de percurso estarão em evidência, e somente parte delas poderá ser solucionada pelo contato que haverá com a plateia. Outras permanecerão misteriosas até o fim da temporada. É desse terreno arenoso de desequilíbrio que se ergue o bom ator. E é preciso que seja assim para que haja uma boa peça de teatro. Teatro nunca é um lugar de apresentação de alguma coisa organizada, bem acabada. É o inverso disso. A coisa estará viva e pulsante se souber que nada está garantido, bastando um empurrãozinho para tudo se desmoronar. Bons diretores nunca dirigem atores, muito menos fazem questão de entender essa coisa de personagem. Bons diretores preocupam-se com trajetórias, são bons diretores na proporção exata em que são bons encenadores. Bons atores também, preocupam-se mais com o desenho da cena do que com qualquer coisa que lhes passe pelas entranhas emotivas da personagem. O espaço é muito mais valioso que qualquer ideia abstrata de humanidade.


...



...
Ser ator é uma dádiva. É ser exibido porque é do ofício exibir-se. Mas é também um alerta ao exibicionismo afetado, que é coisa do homem seja ele ator ou não. Para todo protagonismo do ego dilatado o teatro devolve a máscara que anula o ator da cabeça aos pés. Não é curioso pensar assim: o ator é a cura e o veneno das qualidades e defeitos humanos. O teatro é lugar de elevação e de aniquilamento. Um combo extraordinário que mata e redime.
Ser ator é uma dádiva. Ninguém que pisa no palco tem o direito de ser um imbecil completo fora dele. Ninguém!


...


....

Aos membros da banca,


Nelson Rodrigues dizia que o calvário de todo escritor é ensaiar quais seriam as suas últimas palavras. E como é da natureza do ponto final ficar lá no fim de tudo, gastam-se laudas e mais laudas só para permitir que aquele punhado final de verbos – as últimas e definitivas palavras - determine a conclusão de tanto desperdício de gramática. As palavras mais importantes não só precedem o silêncio, mas o convocam a se instalar. Depois das últimas palavras, fim. Não é curioso pensar que somos artistas porque falhamos, ou porque não cansamos em continuar falhando? Já que é impossível antecipar o ponto final para o início, a nossa vida é um constante, ininterrupto e maravilhoso adiamento ao que de fato interessa. O sucesso decreta o nosso fim. Mas o ator tem uma sorte especial, ele tem a chance de experimentar o seu cadafalso e sobreviver a ele para vive-lo novamente no dia seguinte. O ator de teatro não estreia um espetáculo para fazer o espetáculo, mas para termina-lo. Tão logo tudo começa e o ator atira-se numa corrida desabalada em direção ao seu fim. Nada mais legitimador do talento de um ator do que o instante em que a cortina se fecha diante dele, o instante em que a luz que o banhava é apagada.  Um bom ator de teatro não é aquele que sabe dar vida a sua personagem. É o inverso disso. O bom ator é aquele que sabe conduzir sem piedade a sua personagem e a si mesmo para o fim iminente que os aguarda. Enquanto o escritor é no máximo um arauto do seu ocaso – o seu fim é só uma extensão da sua energia que termina na última página, o ator é ele próprio um suicida. Mata-se diariamente. E isso Nelson Rodrigues também dizia a respeito do homem, da sua natureza entregue ao eterno e inseparável desejo do fim.  

Escrevo tudo isso com uma única intenção e já fujo dela porque outras coisas me parecem interessantes de escrever no instante em que escrevo. Eis a prova cabal da teoria: adio as minhas últimas palavras com um contingente enorme de outras tantas palavras. Palavras, palavras, palavras, já sentenciava Hamlet.

Vamos ao que interessa. Há pouquíssimo tempo tive uma sensação assustadora com uma sentença que me soou fatal. Uma frase. Uma simples frase que me derrubou. Eu, que passei tanto tempo desfiando parágrafos e citações para tentar compor o que seria uma tese acadêmica adequada aos moldes que me fariam merecer o título de doutor em artes da cena na UNICAMP, fui acometido por uma felicidade profunda: eu havia encontrado as minhas últimas e definitivas palavras como agente criador de uma tese de doutorado! Felicidade e desespero, assumo. Felicidade porque tive a sorte das minhas últimas palavras terem vindo ao meu encontro depois que eu havia escrito a tese toda – do contrário agora eu não estaria lendo essa carta aos senhores membros da banca, mas talvez uma receita de bolo, um poema qualquer, um e-mail corriqueiro, qualquer coisa que justificasse o meu fracasso em não ter conseguido ensaiar um texto digno de um doutoramento.  

Durante uma dessas pendengas virtuais sobre o direito de expressão dos atores mediante a qualidade de discurso da personagem representada, eu da opinião de que os atores são completamente livres para representar todo e qualquer papel independente da temperatura ambiente e da cotação do dólar no mercado financeiro, um sujeito a mim anônimo rebateu minha audácia dessa maneira: FÁCÍL FALAR QUANDO NÃO SE ESTÁ NA PELE DE QUEM SOFRE. O assunto era sobre a polêmica de um ator não-transsexual subir ao palco para representar uma personagem transsexual sabendo que as transsexuais ‘verdadeiras’ não tem a mesma voz social que a maioria de nós desfruta, portanto seria mais justo que uma atriz transsexual fizesse a personagem transsexual. Vejam bem a qualidade impecável da frase do meu interlocutor: FÁCIL FALAR QUANDO NÃO SE ESTÁ NA PELE DE QUEM SOFRE.
Ele não só resume magnificamente bem o conteúdo das minhas crises intelectuais sobre o ofício do ator como, principalmente – e ainda mais admiravelmente – põe um ponto final. Em linguagem da moda: LA-CROU! Difícil prosseguir depois desse pedaço lapidado de raciocínio. Ele me calou. E teria me calado por um bom tempo, senão por definitivo, caso sua frase me viesse ao conhecimento no meio ou no princípio do meu percurso de redação da pesquisa.  

Como um caleidoscópio de preciosidades, há muitas ideias contidas nessa simples e derradeira frase. Vamos por partes. A principal delas diz respeito a sua leitura corrida em um plano geral de enfoque: FÁCIL FALAR QUANDO NÃO SE ESTÁ NA PELE DE QUEM SOFRE. Realmente ele tem razão: uma das maravilhas do ator é que é facílimo ser ator. Diferente dos engenheiros que não nascem com calculadoras nas mãos, ou dos médicos que só muito depois de abandonarem as fraldas vão se preocupar em entender a fisiologia dos rins, o ator já nasce ator, com essa facilidade incrível de não tomar as dores de ninguém e inventar peles que não são as suas para poder frequentar um outro tipo de realidade que não é essa que é determinada pela causa e efeito das leis da termodinâmica. Vejam bem: É facílimo ser ator, o difícil talvez seja continuar a ser ator depois que se sabe que se é ator e a elaborar as técnicas do que é ser ator depois que se tem a consciência e o desejo de se permanecer ator. Mas repito: a facilidade que o homem tem em ser ator é a mesma que ele tem em vir ao mundo com duas orelhas, um nariz, dois olhos e uma boca. O que o meu interlocutor quis dizer - e disse sabiamente, irretocavelmente -, é que entre o sujeito e o objeto de representação, ou seja, a personagem, há uma necessária DISTÂNCIA que impede que uma coisa não tenha exatamente a mesma pele da outra. Isso chama-se metáfora, símbolo, capacidade de produzir ficções, irrealidades,  fantasmagorias, assombrações e assombramentos, tudo ingredientes que uma criança sabe perfeitamente elaborar e colocar em prática tão logo abre os olhos.

Notem que exatidão feliz! Ao dizer FÁCIL FALAR QUANDO NÃO SE ESTÁ NA PELE DE QUEM SOFRE, ele está também dizendo: DIFÍCIL FALAR QUANDO SE ESTÁ NA PELE DE QUEM SOFRE.  Claro! Já imaginaram que profissão pavorosa seria essa a de tomar as dores de Édipo? E não só uma vez, mas reiteradas e repetidas vezes até que não sobrasse mais sangue para vazar dos olhos do pobre intérprete que se prestou a se imolar diante da notícia de que havia matado seu pai e casado com sua mãe? O ator não está na pele da personagem, algo que deveria parecer óbvio, elementar, e que o meu interlocutor resolve através de uma perspicácia que até agora me deixa admirado – graças aos santos que essas palavras definitivas: FÁCIL FALAR QUANDO NÃO SE ESTÁ NA PELE DE QUEM SOFRE ocorreram depois do termino da minha pesquisa. Voltemos a mais uma dedução espetacular contida nessa sentença. Meu interlocutor quando emprega a palavra FÁCIL está sugerindo também – e através da ironia – que alguém que não se permite colocar no lugar do outro demonstra um comportamento condenável pela evidente INSENSIBILIDADE que há nessa recusa. Bravo! Nada mais correto do que dizer que um dos pilares do ator é justamente a INSENSIBILIDADE para tudo o que envolve o empréstimo de suas emoções à causa representada. Imagine que desespero seria além de ter de falar tudo o que Hamlet fala debaixo do refletor o ator ainda se preocupasse com o grau de sinceridade que existe em cada palavra que emite, de modo que o seu conteúdo emocional estivesse ajustado aos sentimentos do príncipe da Dinamarca? Reparem que o FÁCIL e o NÃO ESTAR NA PELE querem dizer DISTÂNCIA E INSENSIBILIDADE. E aí há outra conclusão evidente na frase que salta aos olhos. FÁCIL FALAR QUANDO NÃO SE ESTÁ NA PELE DE QUEM SOFRE é uma defesa maravilhosa da inexistência da personagem enquanto matéria humana. É fácil não estar na pele de quem sofre justamente porque é impossível estar na pele se quem sofre não existe de fato. Por isso é fácil ser ator, porque as dores humanas não são revividas pelo ator, porque o ator tem muito mais com que se ocupar do que tentar fazer do seu ofício uma réplica fiel do que é ser humano fora do seu local de trabalho, e isso também implica em não abandonar a consciência de que tudo o que é real para o ator é matéria de ação, de movimento inscrito dentro de uma narrativa elaborada previamente a ele, que a personagem não é coisa que se encarne através de peles vivas, reais, mas sim uma indumentária que deve ser vestida pelo ator com o SARCASMO DA IRONIA. A pele de que se trata é uma pele de ARTIFÍCIO, ARTIFICIAL. O pavimento do real, do palpável, é o que está ao alcance do ator como ferramenta de alavanca para que uma história seja contada. E isso é de uma facilidade maravilhosa tendo em vista que viver de fato as responsabilidades da vida implicam em escolhas misteriosas com relação as consequências  dessas mesmas escolhas, ao passo que para o ator, depois do famoso solilóquio do Ser ou Não Ser vem, necessariamente, a cena da devolução dos presentes da Ofélia. Impreterivelmente e necessariamente o ator está a serviço de algo que NÃO SE RESOLVE NO EXERCÍCIO DA SUA INTIMIDADE quando o assunto é dar contornos e formas ao itinerário previamente existente a ele: QUANDO SE ESTÁ NA PELE DE QUEM SOFRE é melhor não falar, o teatro não poderia arcar com a gigantesca responsabilidade que é ter de sanar crises e lágrimas fiéis ao sujeito que experimenta uma dor verdadeira. Vejam que interessante! Isso quer dizer, então, que o TEATRO NÃO É TÃO IMPORTANTE ASSIM. Ou melhor, que é preferível NÃO LEVÁ-LO TÃO A SÉRIO, que a INSENSIBILIDADE, a DISTÂNCIA e o ARTIFICIALISMO são pistas para uma condição possível MAS NÃO NECESSÁRIA em que o que é dito não é urgente de ser dito, mas pode vir a ser interessante justamente pela falta de IMEDIATISMO, de relação de CAUSA E EFEITO, de CONSEQUÊNCIAS PRÁTICAS que o discurso do ator possa vir a acarretar. Olhem, senhores membros da banca, que deslumbrantes conceitos puros e cristalinos que essa simples frase concentra, ela toda latejando naquilo que acredito ser a maior das qualidades do ator: a sua RETUMBANTE E ESPECTRAL INUTILIDADE para tudo o que compete às demandas do viver em seu estado mais ordinário. O ator é INÚTIL, INSENSÍVEL, MENTIROSO, FARSANTE, CÍNICO, ARTIFICIAL e, por tudo isso e por causa disso, ADMIRÁVEL, afinal, quem duvidaria de que a real fisionomia do homem é desenhada não na seriedade, e sim na brincadeira, na loucura, quando o mundo é virado de cabeça para baixo para entender onde é que estão, de fato, as estruturas que o erguem de pé? E antes de terminar, não poderia desprezar a palavra QUANDO. FÁCIL FALAR QUANDO NÃO SE ESTÁ NA PELE DE QUEM SOFRE. Esse QUANDO é sábio. Diz que DE VEZ EM QUANDO uma coisa é assim, DE VEZ QUANDO ela não é. Nada mais fiel ao espírito do ator. Uma coisa é assim QUANDO ela deve ser ASSIM, e depois ela termina para poder virar OUTRA COISA. O QUANDO, esse advérbio de tempo – e por vezes interrogativo - é a ignição de desmoronamento do ator, e também o solo fértil em que ele pode se colocar ereto. Ser ou não ser, eis a questão, ou, evocando as últimas palavras do maior personagem da história: o resto é silêncio.


Francisco Egydio de Carvalho.

São Paulo, 26 de agosto de 2018. 

A gente só faz teatro para voltar no dia seguinte e fazer de novo, a mesma coisa. Acho isso de uma sabedoria... Só é ator de verdade quem assume esse disco eternamente riscado da repetição e da certeza de não chegar a lugar algum sabendo que deverá começar tudo de novo na noite seguinte, e assim sucessivamente. Somos todos Sísifos a carregar a mesma pedra para o topo da colina, observá-la rolar ribanceira abaixo, e depois tornar a elevá-la para novo tombo. Não é o conteúdo da reza o que nos absolve, mas a sua métrica. A nossa liberdade está condicionada ao ritmo, ao pulso. A melodia que se faça pela consequência disso!


...


...

domingo, 29 de julho de 2018

Teatro é muito menos importante que a vida. Acho o teatro igualzinho ao palmito = não tem valor nutricional comparável ao arroz e ao feijão..., mas é infinitamente mais gostoso. Nenhuma constituição legislativa é mais importante que Shakespeare, mas Shakespeare é infinitamente mais legal e divertido que qualquer conjunto de leis. A vida viveria perfeitamente bem se os teatros cerrassem as cortinas. E essa é a maior das vantagens do teatro: a sua maravilhosa desimportância para tudo o que rege o essencial da vida. E, pasmem! O que restará para contar a nossa história não será nada do que está na pauta do urgente, do necessário, do justo. É Shakespeare, é o "era uma vez", é Machado de Assis = representantes da nossa maior benção, quase sempre inconsciente quando estamos mergulhados no fluxo implacável da existência, a saber, o nosso retumbante fracasso em tentarmos perseverar, e todas as alegrias e tristezas que envolvem esse remar para longe do naufrágio iminente.
A principal sentença de morte ao teatro não é considerá-lo inútil (esse é o maior dos prêmios!). É, ao contrário, dar ao teatro um protagonismo que nunca poderia ser dele.



...


....

quarta-feira, 16 de maio de 2018

É lugar dos disfarces, mas, sobretudo, também da revelação. Talvez o teatro seja o terreno por excelência da sinceridade. Ou se é ator, ou não se é ator, e finitto. Minto. As artes artesanais também são dessa alçada. Mas gosto do paradoxo verdade-mentira, que é matéria própria do teatro e de nenhum outro território. Ator verdadeiro mente tão verdadeiramente bem que recebe sua justa gratificação por isso. Ator ruim luta tão verdadeiramente bem para ser verdadeiro consigo que  nunca consegue esconder a sua genuína ruindade. Isso no teatro, evidentemente. Porque fora do teatro há um elenco tão numeroso quanto a torcida do Flamengo que se passa por atores, e nós acreditamos que assim o sejam, porque fora do teatro a burrice ganha atributos de louvor ao nada, e para a qual dobramos a espinha em sinal de profunda reverência, ou descabelamos a peruca em manifesta histeria. E há plateias ruins também no teatro, mas elas também não conseguem nunca disfarçar a sua retumbante burrice (já imaginou um único lampejo de inteligência que houvesse por milagre do Padinho Ciço invadir os miolos dos componentes do auditório do Faustão? Orelhas de asno pós-doc em Harvard imediatamente brotariam em todos os convivas, e, imagino, um silêncio sepulcral de vergonha admitida reproduziria a cena seminal do Adão e da Eva reconhecendo ambos - um ao outro - as suas partes pudendas). Ao passo que, voltando ao teatro, a platéia boa sabe perfeitamente repudiar o ator ruim e combinar-se com o bom ator. E todos esses lados são translúcidos, claros como um cristal. Curioso! O teatro nunca engana, nem para um lado, nem para o outro. Se é ruim, é ruim para valer (é uma experiência maravilhosa testemunhar péssimo teatro, coisa pedagógica!). Se é bom, é bom de cima abaixo.


...

....
Quem prepara elenco é o diretor. Essa figura up-to-date chamada de 'preparador de elenco' nada mais é do que um jeito bonito de se terceirizar o que é da esfera íntima do ator e do diretor, e de mais ninguém. Quem prepara o ator é a formação prática e intelectual (lê-se: acadêmica!) do ator, que, inclusive, serve tremendamente bem para separar picaretagem de trabalho criativo. Esse negócio de COACH, do sujeito que não sabendo fazer outra coisa nasceu para lhe soprar frases motivacionais no ouvido, ou então convencê-lo de que mamãe lhe era maligna na infância, razão pela qual seu olho esquerdo pisca mais rápido que a pestana direita, esse fulano, enfim, deveria ser extraditado prum arquipélago no meio do Pacífico de posse da obra completa do Paulo Coelho.
Nessa onda de privatizações, vão privatizar a vovózinha de vocês, e deixem meus miolos comigo que eu dou super conta.


...


....
A personagem não existe. Olha que coisa libertadora? A personagem deve ser inventada, porque é de praxe das coisas que não existem não encher a nossa sacrossanta paciência com demandas do tipo faça isso meu filho que será para o vosso bem. Digo, as personagens boas não existem, porque sempre haverá aquela personagem que por ser péssima personagem não arredará o pé do seu ouvido exigindo que você se aproxime dela, lamba o prato de feijão como ela costuma lamber, que solte um gritinho de pavor com o mesmo timbre que ela grita de pavor quando vê uma barata atravessar a sala. As péssimas personagens sempre exigem a sua cumplicidade para com elas, pode reparar! 
Mas olha que paradoxo gostoso? As boas personagens existem também. Hamlet, por exemplo, existe há muito mais tempo que eu e você juntos e somados. E é da qualidade das boas personagens que existem não fazer nenhuma questão que você e eu existamos também. As boas personagens carregam essa indiferença monumental para conosco. Elas pedem que sejam inventadas, mas só são inventadas porque existem de fato, uma existência ali, na concretude das palavras impressas, na urdidura de uma trama que não quer a sua ou a minha anuência. As boas personagens estão sempre distante de nós, não permitem nenhuma cumplicidade, são estrangeiras a qualquer intimidade nossa, estão pouco se lixando para a nossa vocação sentimental de emprestar nossas lágrimas verdadeiras a emoção delas. Aliás, personagem boa nenhuma pede empréstimo de emoção. Exige, ao contrário, um contrato feito as claras: você me deixa em paz com os seus choramingos, que eu prometo não comprovar a tua miséria minúscula em relação a mim.

...


....

terça-feira, 10 de abril de 2018

Meio bêbado e já avançado nas horas, escrevo: o barato do teatro é o que ocorre antes do teatro e depois do teatro. O teatro em si, o acontecimento que bota o ator debaixo do refletor, isso é de importância relativa em função ao antes e ao depois. Explico. A expectativa de se ver jogado à jaula dos leões e o alívio de ter sobrevivido à ela são o que movimentam os ânimos do atores. Antes da cortina se abrir e o instante final em que ela definitivamente cerra suas franjas, são nesses dois estágios em que se encontra o sentido máximo do trabalho do ator. É por isso que não se pode chamar de 'ator' esses 'atores' dos estúdios de gravação, porque não existe, para eles, a qualidade necessária e urgente de ter de começar algo para depois ter de terminar. Essa instância do terrível que é ver-se jogado aos olhares da plateia, esse desespero profundo que é estar na iminência de ser devorado por olhos estranhos, e a beleza de mandá-los todos às favas depois de tudo terminado, é nesse terreno que se configura o ator; ele, nessas condições, não comanda nada, ao contrário, é comandado. Erro crasso dizer que o teatro é o terreno do ator. Nada mais falso. O teatro é o terreno do teatro, o ator que se vire para acompanhá-lo na dinâmica que é dele, e só dele, do teatro. Nos estúdios refrigerados, aí sim, quem manda é o ator, que caso sinta incomodado com um ciso a lhe pinçar as pestanas ordena que tudo pare para que o bendito cisco seja retirado. É preciso reafirmar a beleza do teatro, que não é a beleza do ator que faz o teatro, mas do teatro que impõe ao ator a sua condição de arremessá-lo ao calabouço da exposição pública. Aprende-se muito com isso, inclusive uma tremenda bagagem ética e política o teatro dá conta de suprir. Quando você se percebe vítima dessa engrenagem maior que é a cena, é como se uma dose gigantesca de humildade, de resignação, de consciência do fracasso, tomasse conta da sua espinha de cima abaixo. Individualismo nenhum sobrevive a isso. Ocorre, ao contrário, um completo anulamento do seu ego brilhante, da sua vaidade trasbordante em prol de algo deveras maior que o vosso reluzente umbigo. O teatro hoje, mas digo o teatro de verdade, não esses musicais made-in-broadway que protegem o ator com trecos tecnológicos e badauês importados, ou esses shows solo de comédia barata, ou mesmo essas aulas de testemunho terapêutico...., digo o teatro em que há personagens, e personagens mais substanciosas que a psicologia mequetrefe do ator, esse teatro, hoje, é a coisa mais em extinção que poderia haver. Porque pertencemos a essa época da positividade, da ideia de que temos de ser bem sucedidos, empreendedores, vencedores, sãos, medicados até a tampa do cabelo. O teatro, esse teatro verdadeiro, injeta a experiência concreta do fracasso, da decadência a cada passo do ator, a cada gesto do ator, e é por aí, por esse meio, e só por ele, que esse ator se torna grande, incomparável. A cena é tão somente o produto de uma aflição somada a um respiro fulminante de dever cumprido. As tábuas do palco para o ator de teatro são quentes, pelando. Nunca é ou será confortável estar diante dessa coisa chamada teatro. Os espectadores deveriam, ao menos uma vez, encontrar com o ator nesses dois momentos: no antes e no depois. Aí está o segredo de tudo. A condenação e a alforria. 
Que tristes tempos para se fazer teatro, desses teatros verdadeiros, essencialmente verdadeiros.

...


...

quarta-feira, 7 de março de 2018


Nenhum bom personagem é 'complexo', como adoramos dizer. A gente diz que um personagem é 'complexo' como forma de refletir a nossa vaidade em tentar encarar o tal do personagem: 'vejam como eu sou corajoso para representar o tal do personagem! Não fosse eu bom o suficiente e nem chegaria perto de tamanha complexidade!'. Quando dizemos que um personagem é complexo nós estamos falando de nós mesmos, elogiando a nós mesmos, vendendo a nós mesmos para que o mundo nos veja e aplauda em nossa audácia de sermos corajosos o suficiente para enfrentarmos a complexidade de um personagem complexo. Nunca nada foi tão anti-personagem como essa coisa de vontade e contra-vontade que inventaram para resolver uma psicologia abstrata do personagem. Nenhum bom personagem é abstrato, tampouco psicológico, repare. Édipo Rei não tem psicologia alguma, tem é fogo nas canelas, isso sim. Freud veio na sequência e conseguiu inverter tudo. Todo bom personagem é de uma clareza e concretude translúcidas. O bom personagem é sempre difícil, mas não porque é complexo. O bom personagem é difícil porque o bom personagem é difícil de se escalar. É como uma montanha. Você diz que o Everest é uma montanha complexa? Aposto todas as minhas fichas que dizer que o Everest é uma montanha complexa é o primeiríssimo passo para desmoronar lá de cima, ou nem conseguir chegar ao ponto de desmoronar lá de cima ou lá do meio, tanto faz, porque dizer que o Everest é uma montanha complexa é o mesmo que nunca escalar o Everest. O mesmo com os bons personagens. Mas só com os bons personagens! Os péssimos personagens são ultra-complexos. Nascem complexos e fazemos deles ultra complexos. Como um morrinho qualquer! Há que se calcular, refletir, matutar, tergiversar sobre a razão, sentido e objetivo de um mundo tão vasto haver disposto ali, diante de nós, um morrinho daqueles, coisa inútil, sem função, completamente desnecessário, será? (haja interrogação e mergulho dentro de si mesmo!)... Aí há que se ter muita complexidade, vontade e contra-vontade, para fazer o raciocínio funcionar.


...


....

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

Sobre o ator:
Nós não somos privilegiados porque nos deram a sorte de viver tantas vidas quantas inventamos. Muito ao contrário. O que nos torna especiais é justamente o oposto: pelo exercício concreto da construção da imaginação, recebermos a certeza de que é impossível ser outro senão nós mesmos. É esse intervalo de impossibilidade real, a consciência da nossa absoluta incapacidade, o que faz de nós uma gente privilegiada. Estamos o tempo inteiro fingindo que vivemos quem não somos para voltar à tragédia de ser os mesmos de sempre. A personagem não é outra coisa senão uma clausura. Vivemos encalacrados. E isso, por paradoxal que seja, é altamente libertador. Por isso dizer que há um privilégio enorme em ser ator.


...


....

terça-feira, 30 de janeiro de 2018

No episódio épico é um monte de coisas que acontece ao mesmo tempo. Uma epopéia é um circo de acontecimentos. O narrador gerencia uma quantidade enorme de ações. Ele próprio - o narrador - sabe que não pode ter o controle sobre tudo. É uma versão de um olhar que viu o que se passou. A verdade, no épico, não é o mais importante. É a qualidade da narrativa que é o que conta. O drama (o trágico, no princípio) aparece para centralizar tudo. É um fato o que importa. E a sua verossimilhança diante de unidades de tempo, ação e espaço. Uma necessidade de corresponder às forças de causa e efeito. O vasto mundo vira um território sob olhares calculados. Depois vem o drama de gabinete. Depois o melodrama. Tudo se torna ainda mais pessoal, ainda mais restrito ao universo do fato ocorrido com o indivíduo sem tantas preocupações com o que existe para além do teto que abriga o indivíduo. Talvez o teatro do absurdo seja um diagnóstico da falência completa da narrativa épica - que desde sempre frequentou as habilidades do ator, que também era um narrador, um contador de histórias. E talvez tenhamos aprendido pouca coisa desse escancaramento de nossa incapacidade de voltar a contar histórias e tenhamos virado hoje o que em grande maioria somos: um bando de gente preocupada em viver uma experiência íntima diante dos outros, de confessar a uma audiência coisas e assuntos cuja importância são mínimas para além de nossas dores, ou das dores que também são dos outros, mas não de todos nós. Por que será que ainda não se escreveu uma trajetória do ator a partir desse viés: da sua perda sistemática de sua qualidade épica para, cada vez mais, preocupar-se em performar sem respaldo de ação nenhuma, história nenhuma, texto nenhum, máscara nenhuma, personagem nenhum? Não se trata de condenar quem somos agora, mas de admitir que perdemos muita coisa ao abandonar uma atitude que desde os primórdios fez parte da constituição física dos intérpretes: a força dos pulmões para dar conta de narrar uma história espetacular, impossível, maravilhosa, encantadora. Não parece triste, melancólico ao menos, a troca da força dos pulmões pela habilidade em verter lágrimas que secam ao menor soprar de uma brisa?


...


....

quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Nunca sabemos de fato o que é que estamos fazendo. Sabemos, em verdade, pouca coisa, ou o suficiente para cumprir com o combinado: ir de cá para lá, emitir o texto com a saúde dos pulmões, respeitar pausas, preencher tempos. E pronto. A nossa loucura é muito mais uma loucura do enfrentamento dessa duvida monumental que é a de desconhecer o que de fato estamos produzindo aqui, nesse instante - e ainda assim sermos impelidos para adiante -, do que alguma crise que pertence às dores das personagens. A nossa dor, que é a dor da dúvida, que é também um vazio enorme, já é suficiente para esgotar todas as energias de que dispomos para subir ao palco. A plateia nos devolve em parte o resultado do nosso esforço. Em alguma medida os espectadores nos respondem sobre o que procuramos. Mas também a plateia é matéria inconstante, ela também é por si só recheada de dúvidas quanto ao sabor daquilo que fazemos. Portanto, o terreno permanece movediço, e sempre assim: movediço. Um mesmo espetáculo que circula por diferentes palcos também acresce interrogações a nós, que somos os atores. A superfície em que se pisa é determinante para uma mudança de eixo, daquele eixo de equilíbrio em que estávamos acostumados ontem, e que hoje já não existe mais. A distância entre nossa cabeça e o urdimento, invisível ao espectador, é um espaço importantíssimo, que também modifica a nossa existência. O ângulo dos refletores, a altura do palco, o cheiro da sala, o tecido das poltronas e a disposição das fileiras de poltronas... Tudo, absolutamente tudo estampa dúvidas e mais camadas de dúvidas em nós.
Somos bombardeados o tempo inteiro por um contingente enorme de informações impossíveis de serem completamente assimiladas. E é assim sempre: até o final da temporada, até o último apagar do último refletor. É sempre de uma ignorância suprema interrogar o ator sobre a sua personagem. Não nos ocupamos dela nunca. O que nos guia é a urgência de continuarmos de pé, erguidos. De resto, não temos certeza de nada. E essa carência de certeza é de uma força retumbante. Talvez o exercício do ator seja muito mais o de resistir a sucumbir à ela do que a presentificação de alguma integridade imaginada.


...


....

terça-feira, 9 de janeiro de 2018

Acho ótimo que se tenha um fardo para carregar. Dá sentido à vida. Equaliza as euforias, relativiza os dissabores. O teatro, por exemplo, é um fardo. Um baita fardo. É um fardo ter de ir rotineiramente ao teatro repetir as mesmas deixas, preencher os mesmos tempos, aguardar que aquilo que se espera dizer seja dito. E depois esperar a cortina se fechar. Tirar a maquiagem do rosto. E rumar para casa. E no dia seguinte retornar ao palco. É um fardo. Que não é 'coisa ruim', tampouco 'coisa boa', ou é as duas coisas juntas. Ninguém que olha para o teatro e o cobre de elogios, de festas, de brindes, de urros e vivas diz a verdade. É comum acontecer isso: deslumbram-se com a beleza que é estar diante da plateia, com a magia da coisa, para fazer com que o teatro aconteça. Ou ainda pior: tentam sanar uma dívida íntima, uma incompetência particular, conferindo ao teatro esse local quase que espiritual de crescimento e aprendizado. Teatro é também escuridão. É um fardo, e dos grandes. Um ter de atravessar uma jornada. E ninguém que atravessa de fato uma jornada o faz jogando confetes para cima. E me parece bastante imprudente rumar numa jornada dessas sem antes haver se preparado para o sol na cabeça, a escalada íngreme, o equilíbrio precário do precipício. Com o prejuízo ainda maior de que uma queda, no teatro, é sempre um tombo coletivo. Leva-se todo mundo junto para o fosso. Haja responsabilidade!

Fardo é um dever, uma necessidade. Algo que minimiza o que pensamos sobre a vida e sobre nós mesmos para orientar-nos para a ação. Ter um fardo é ter que agir. É movimentar-se. E isso já é razão suficiente para encontrar sentido em estar vivo, e alerta.

...

....