segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

Quando você quiser ser ator, não dê tudo de si, não. Dê metade mesmo. Deixe que o 50% restante venha de fora, não dependa do seu talento fulgurante. Ou melhor, dê 30%! Vai que na proporção anterior esteja incluso aquele momento emocionante em que você aperta os olhinhos e embarga um soluço lacrimoso para provar que a personagem está lá, latejante, toda ela sob seu domínio? Olha, quer saber? Dê 5%. Se 5% determinar somente que você esteja lá, de corpo inteiro e sem afetações para representar a bendita da personagem, então é só desse mínimo mesmo de que você precisa. Aliás, compre um gato e jogue fora todos os métodos Stanislavskis e os laboratórios de imersão com a Fátima Toledo. Observe seu gato e veja que qualquer mínimo esforço a mais do que o estritamente necessário já é motivo pro bichano cofiar os bigodes do focinho e, impassível, responder: Miau***

***em livre tradução: Melhor Não.


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Se o teatro fosse uma orquestra, duvido que ao ator coubesse o papel de spalla. Regente? Muito menos. Quem dirige o teatro é a cena, não o ator. No máximo ele estaria lá, misturado no meio da fanfarra, com um olho atento à partitura, o outro olho no maestro. Toda grande interpretação de qualquer ator é fruto de uma boa arquitetura da cena. E cena quer dizer tudo: espaço, cenário, figurino, música, maquiagem, luz... Não se sobrevive debaixo do refletor sem um edifício erguido para sustentar quem no palco se arrisca. E esse edifício pode perfeitamente ser todo vazado: não haver nada, e ainda assim será a maior força a agir sobre o ator. Acredito mais em encenadores do que em diretores. O bom diretor é um bom encenador. Não sendo um bom encenador, dificilmente ocorrerá de saber dirigir qualquer coisa. O erro é deduzir que o ator é protagonista porque é dele que emana essa coisa de 'viver' a personagem, e nisso gasta-se um tempo enorme, tentando dar conta de uma coisa que não existe e jamais existirá. Um palco de madeira existe. Um tecido existe. Um acorde é palpável e tangível. Hamlet não. Hamlet é assunto para a plateia, não para o ator que o finge ser. Para o ator que representa Hamlet, saber apanhar um punhal é tratar de Hamlet mais do que tentar viver Hamlet. Acho um pleonasmo dizer que o teatro é um arte coletiva. Ou melhor, acho um erro mesmo, porque por 'coletivo' quase sempre se pressupõe igualdade de territórios. Não acho. Acho que há hierarquias bastante claras. E o ator nunca é o sortudo que tem a rapadura nas mãos. Ele é mais vítima do que herói, sempre. E para seu próprio benefício.


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... "(...) finge que é dor a dor que deveras sente" é verso lapidar. É dizer que representar é potencializar o sentir. Mas não o sentir da dor genuína, que pelo fingimento é filtrada - e só porque filtrada é que pode ser representada. É o sentir da inteligência. A dor que de tão genuína para ser fingida como verdadeira recebe o direito de mergulhar para o centro, não onde fica o coração, mas muito mais profundo que isso: lá de onde articulamos a inteligência. Há dor mais profunda que a de pensar? O artista age pela inteligência, que é o principal e mais poderoso músculo do sentir.

Fernando Pessoa é o maior dos teóricos da arte de representar. Ultrapassa a todos porque está sempre nas entrelinhas, no lusco-fusco, entre a sombra dos bastidores e a luz escaldante dos refletores. Que é a mesma condição do ator: que só é ator porque não nega o vão que existe entre seu rosto e a máscara que ostenta.


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terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

Amo a máxima de quem despeja uma tonelada de gente com DRTÊ no mercado sob o argumento de que 'o teatro naturalmente seleciona quem é do teatro'. U-hum, também acho. Enquanto formamos um contingente de espectadores tapados: um tapado debaixo do refletor só pode produzir tapados silenciosos na plateia (assim como tapados-dramaturgos, tapados-diretores, tapados-de-tudo-quanto-é-espécie-de-tapados), lavamos as mãos deliberadamente de qualquer responsabilidade ética que possa haver no fato de existir publicamente diante do outro. Em outros termos, usamos o teatro para não perder clientela. Os tapados vão ficando pelo caminho, dirão os defensores da enxurrada de DRTÊ. U-hum. Prefiro ficar ao lado da Fernandona Montenegro quando ela diz: SAIA DA FRENTE! Não me vá empatar o meio de campo com as suas demandas pessoais de autoafirmação... Corretíssima. Se a desculpa é o bendito DRTÊ, melhor eliminar de vez esse carimbo que não significa absolutamente nada, já que a educação - a formação do artista - é preterida em função da necessidade minha ($$$) de empurrar o fulano para ver se o palco o aceita ou não. U-hum. Sabem por que o Bolsonaro está no poder, por que verdade e mentira são a mesma e única coisa, por que a complacência tomou a todos de sopetão? Porque tanto faz, tanto fez... Eu estou aqui para garantir o que diz respeito a mim, o impacto que isso terá no outro já não é mais problema que me abale, ou, resumindo, o teatro - o Grande Teatro do Mundo - que se vire!
Da próxima vez que for a um neurologista, deixe ele abrir o seu crânio. A depender se você sairá vivo ou não, a medicina irá naturalmente separar o verdadeiro do falso médico.


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Com Shakespeare há uma dupla vantagem: você representa o papel ao mesmo tempo em que olha para a plateia e diz diretamente a ela: veja como eu represento o papel. Com Shakespeare você aprende a ser ator. E, se aprender direitinho, capaz de você também representar o papel.
Resumindo: jogue o velho Stan no lixo e aprimore o fingimento SEM envolver VERDADE alguma.


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É isso que dá chamar de ator quem nunca foi ator, empregado de uma emissora que forma qualquer espécie de produto vendável, exceto atores: o nunca-ator-que-sempre-fora-chamado-de-ator por trabalhar em obras vendáveis que o classificavam como ator foi parar na câmara dos deputados, e pelos votos daqueles telespectadores que cresceram formados na mediocridade do desempenho desses-que-haviam-sido-vendidos-como-atores, incrementando de vulgaridade o espetáculo pavoroso começado lá atrás, na singela e inofensiva mentira de dizer que um Zé Ninguém é um ator. É a junção perfeita do enredo ruim com a platéia de acéfalos criada pela força de um elenco de energúmenos vendáveis. PLIM-PLIM (barulho de moedinhas caindo na caixa registradora).

De nada adianta estampar a #hashtag#RIPdamaDOteatro. Melhor seria homenagear a burrice que nos brota ali ao lado, na esquina.

Como bem diz Hamlet: Cuide dos atores, eles são a crônica e o resumo do seu tempo.... Ou, em outros termos, diante de um espetáculo lamentável, os bons saem de cena.



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Teatro é simples, simplérrimo. A sua dificuldade é essa: de tão simples, não compreende métodos, resolve-se na experiência imediata de se jogar diante de uma plateia e cumprir com a monumental tarefa de não deixá-la cair no sono, de fazer com que um mero entre-ato forjado artificialmente pela teimosia de alguém seja mais interessante que a vida. Viu como é simples? Teatro é a tarefa de tentar ser mais interessante que a vida sem fazer com que a plateia ronque a plenos pulmões. Tudo o que proponha qualquer tipo de esquematização para explicar, teorizar, mapear o trabalho do ator é um passaporte direto para complicar o que nasceu explicitamente fácil de se compreender. O que não significa, evidentemente, facilidade em se executar o combinado. Mas reparem só na chatice danada, no infrutífero objetivo que paira no esforço hercúleo de fazer do ator (ou da personagem - o que é ainda pior) um troço complexo, pluridimensional, cheio de idas e vindas, cores e espectros infinitos de desejos, emoções, pensamentos, vontades e contra-vontades e afins. Ai que chatice e que tristeza ser obrigado a fugir da maravilhosa crueza precária que é atirar-se numa corda bamba para caminhar aos tropeços e perigos de queda até a segurança do lado oposto. Fazer do teatro (do ator e da personagem) essa incrível rede de teorias e práticas e moldes e métodos e princípios e etc é o mesmo que diante duma bela paisagem o fulano resolver abrir um caderninho de notas para confirmar a composição da fórmula da pólvora. Encha os benditos pulmões e aperte os olhinhos para o horizonte, ÓH CÉUS!


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Que bela profissão essa em que estar diante do outro já é um ato político! Repare: um ator confortável em cima do palco, todo ele entregue ao mesmo registro de tônus muscular que ele carrega quando está no aconchego de sua casa esquentando água pro seu chá de camomila equipara-se em gênero, número e grau a esse nosso presidente atual - o mito da nova política -, que não mede esforços em nos mostrar que ele é um homem comum, que não há problema algum em vestir um chinelo para uma foto que será estampada em todos os jornais e confirmará o maior representante nacional de um cargo público relaxado (espontâneo!) em pleno horário de serviço. Relaxado. A mesma corrupção latente que existe nesse ator que apoia o peso do corpo numa das pernas como se estivesse pedindo um café com leite no balcão da padaria e profere o seu texto decorado com o mesmo esforço em que os pulmões se inflam para um bocejo prenunciador de uma soneca pós-almoço de domingo. E tudo isso feito e organizado para existir diante de uma plateia que em nada tem a ver com o jeito despachado e confortável de se existir dessa figura que deveria estar justamente orientada para o inverso dessa 'naturalidade' faceira e 'goishtosa'. Há que se ter muita tensão, muito retesamento muscular, muita força nos pulmões, pupilas extremamente dilatadas e orelhas abertas para 360 graus de atenção ao menor sinal de movimento. Existir publicamente demanda um esforço hercúleo, preparo monumental e uma trajetória que não se resolve nas linhas invisíveis de uma internet que faz nublar a inteligência viva em prol dos filtros de fotografias posadas. Aliás, esse é o nosso tempo, que é um tempo de miséria da política e da expressão, da ética e da estética: o homem comum (a saber, medíocre) que veste a faixa presidencial é o mesmo homem comum (a saber, preguiçoso e vaidoso) que sobe ao palco para se dizer ator e mostrar um pouquinho para nós todos o quanto ele é natural e sincero no seu jeito peculiar de ser, fruto dessa indústria da burrice que virou a imagem televisiva, das novelas e afins, que atribui a qualquer mentecapto com o topete penteado o nobre título de ator/atriz. Bolsonaro, o medíocre, está mais perto de nós do que imaginamos. Basta um DRTÊ no bolso e uma água de colônia para refrescar o sovaco.

Que bela profissão a minha, que me ensina cada vez mais a ficar atento para quem eu sou e para o perímetro que habito.



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Cheguei a uma conclusão. Antes acreditava que era culpa nossa, do ódio (ou inveja) que nutrimos uns pelos outros. Mas num é não. Nunca houve uma Cia Estatal de Repertório Dramático nesse brejo-tropycal (quem patrocinava o TBC era o Zampari, um empresário ITALIANO) por uma razão simplérrima: é perigoso demais para o poder instituído. Da música sinfônica à dança - sempre com grupos bancados com algum aporte do governo (OSESP, Cia SP de dança... entre outros) um ator diante de uma plateia soltando o verbo é diferente, coisa deveras ameaçadora para quem tem a rapadura nas mãos. Desde os tempos da Grécia Antiga até hoje é (e continuará sendo) assim: cuidado com o teatro!

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