domingo, 29 de maio de 2016

Acredito piamente que só sou ator porque me é complicadíssimo 'ser natural' na vida. É como se a vida me exigisse um fingimento do qual não consigo dar conta. Uso a artificialidade do palco para fazer-me consciente da minha inadequação, e aí sim, dobrando os fingimentos, consigo extravasar uma certa potência antes acumulada e reprimida. Nesse sentido, o teatro me é terapêutico ao ensinar que tudo, absolutamente tudo, é mentira. E que 'ser natural' é simplesmente um 'ser mentiroso' sem estar consciente de que mentimos. E o teatro também me é um tremendo fardo, porque a consciência é um estado de alerta cujo preço a ser pago traduz-se numa grande dose de sofrimento. O que é preferível: mentir sem saber que mentimos, ou mentir de posse das artimanhas do mentiroso? Já não é mais possível escolher. 

Ser ou não ser, eis a questão... (já respondida!)

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sexta-feira, 27 de maio de 2016

Ser ator de teatro é fracassar tendo a consciência de que se fracassa. E é só isso que pode redimir o ator: a consciência de que sua única certeza é a de fracassar. Porque algo que precisa ser reiterado toda santa noite e diante de pessoas diferentes é um sinal bastante evidente de que não há jeito de conseguir perpetuar-se, que o fim iminente é não só um destino previsível como também desejável. E é por isso que o fracasso não é um diagnóstico de derrota, mas de vida. Morre-se para poder viver. A impossibilidade de habitar uma ideia que atravessa o tempo e imortaliza o seu autor, conferindo à presença física do corpo vivo o sentido maior de uma existência, é o que imprime ao instante, ao que acontece agora, nem antes nem depois, uma razão superior às vocações de eternidade. Vive-se mais plenamente na medida em que sabemos que estamos morrendo. Esse é o principal ganho moral e ético do ator: ele desconfia de verdades absolutas e infinitas, daquilo que é impossível tocar porque foi feito para não ser tocado. Ao mesmo tempo em que preserva para consigo um mistério grandioso, que é o mistério da própria vida: por que insistimos em existir em um hiato tão breve de tempo? E sabendo que será breve, por que ainda assim insistimos em não abandoná-lo? Por que entramos em cena? Por que? 

Ser ou não ser, eis a questão.



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domingo, 22 de maio de 2016

Faça uma pressão excessiva nas cordas e a coisa desanda. Relaxe demais a mão do arco e o edifício desmilingue. O violino é como o ator. Trata-se de encontrar uma justa medida, um caminho do meio, que por si só já é um paradoxo de mistério: uma tensão relaxada, ou um relaxamento tensionado.

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sábado, 21 de maio de 2016

A maior das bênçãos da qual o ator é portador é que é dever dele ser ridículo em seu ofício. E quanto mais ridículo melhor. Quer coisa mais ridícula que um ator recitar o 'ser-ou-não-ser-eis-a-questão' diante de uma plateia, tentar convencer a todos de que estamos na Dinamarca, e que ele não é o Fulano-de-Tal e sim o próprio Hamlet encarnado? Coisa pateticamente ridícula. E esse ridículo é pedagógico. Porque viver o ridículo é precaver-se dele fora do campo da ficção, onde ser ridículo pode ser - e é na maioria das vezes - um grandessíssimo atestado de burrice. Porque chacoalhar um pato amarelo de borracha exigindo o fim da corrupção - e acompanhado de outros chacoalhadores de patos de borracha amarelo - é algo, no mínimo, estupidamente ridículo. A cena é ridícula. E é um ridículo da pior espécie que pode haver de ridículo porque é uma cena emoldurada sem a consciência do ridículo da qual o ator lança mão em cada passo que dá quando ele entra em cena. O ator é um ser iluminado porque faz teatro e tem consciência do teatro, e sabe o precioso significado de ser ridículo dentro e fora dele. Saber quando vale a pena ser-ou-não-ser-ridículo é uma pérola de valor inestimável. Eis a questão.


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Suassuna ensina-me que é do dever do artista desenvolver uma absoluta instransigência com relação a tudo o que nos bate à porta pedindo permissão para entrar. Que o artista tem como obrigação moral defender o seu território. Que o chão onde se pisa é fundamental para que se desenvolva a vocação do ofício do artista. É sagrado pertencer à algum lugar e ser fiel a este lugar. Suassuna ensina-me a maravilhosa arte de mandar bananas para tudo o que não diz respeito a uma verdade interior, coisa que lateja na individualidade de uma região, de um povo, ou mesmo dentro disso que eu sei que sou: uma região imensa e invisível, um povo numeroso e silencioso, enfim, um território que é o meu território, e que pode ser o território de todos somente na medida em que ele permaneça sempre assim: o meu querido e inviolável território. 

Ou o artista rema sozinho, ou não rema com ninguém.


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Fernanda Montenegro disse em recente entrevista que o pipoqueiro que marca ponto diante do teatro ganha mais do que os artistas do palco. Ela está certa. E se a pipoca for doce e também salgada periga o pipoqueiro ganhar mais do que a soma dos rendimentos do elenco inteiro. E acrescento eu: o pipoqueiro tem também mais clientela que o ator das ribaltas. Hoje fizemos um espetáculo para exatas 23 pessoas num teatro com capacidade para mais de 200 na cidade de Itatiba. Um teatro lindíssimo. E vazio. Uma peça com indicações a prêmios no currículo, casas cheias em temporadas pregressas aqui em SP, ótimas críticas nos jornais... Mas o que isso importa? Para que serve ir ao teatro? Quem sai de casa para ir ao teatro? O teatro é um acontecimento que vale a pena ser divulgado? Para que fazer esforço pedindo atenção para uma coisa que já deveria ser interessante por princípio? Que tipo de investimento capenga é esse cujo produto nem bem consumido já evapora no exato instante em que deixa de existir? Pode parecer vaidade ferida, desejos de aplausos, recalque do fracasso não admitido, teimosia de gente teimosa - e talvez seja isso tudo junto. Mas é também uma outra coisa, um grito de revolta ao título de retumbante carência de necessidade e urgência ao qual o teatro foi contemplado nos últimos tempos. O galã da novela precisa aportar seus perfumes no teatro para que a casa possa lotar de espectadores? Quase sempre espectadores histéricos e cujo motivo de vida é prezar pela histeria na submissão ao ídolo famoso... Ou então faz-se necessário estruturas mirabolantes de cenários e maquinarias, figurinos e purpurinas, passos marcados e gogós afinados, pandarecos e trecos, tudo importado do Uncle Sam e com o nobre intuito de impressionar cada vez mais os olhos daqueles que tanto já se impressionaram com a mesmíssima repetição do impressionante-nunca-antes-visto-na-face-da-Terra? Quando foi que o teatro deixou de ser teatro (encontros humanos!) para virar programa de auditório, cassino do Chacrinha ou desfile fashion? E por que insistimos em continuar? Por que? 

Nossa miséria política e ética não é fruto de uma completa ausência de encontros marcados fisicamente nas atividades de teor simbólico? E substituídos pela lambeção virtual e televisionada de gente de sorriso plastificado, portadora da mesma melodia enjoativa da voz, tão vazia de substância quanto transbordante de coisa nenhuma... E é a isso que depositamos o nosso modelo mais bem acabado do que seja o 'artista'?

As tetas de que nós - atores de teatro - mamamos, são tão murchas quanto a inteligência daqueles que não desgarram das tetas alheias para mamar até explodir de tanto gorfar.

Obs: a referida apresentação do espetáculo para as 23 pessoas e mais de 100 cadeiras vazias foi uma das melhores sessões que já fizemos. Há essa misteriosa força que nos leva adiante e não computa valores de espécie alguma a partir do instante em que a cortina abre suas franjas.

Viva o teatro! Viva o teatro sempre!


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sexta-feira, 20 de maio de 2016

A grande personagem será sempre aquela que está por ser representada. E assim deverá permanecer: uma projeção do impossível. E mesmo aquilo que é tangível deve sustentar uma proporção equivalente de ausências. O ator que representa uma personagem carrega consigo a frustração constante de nunca conseguir tocá-la. E é por isso que ele insiste em continuar representado: para nunca se livrar da tristeza de saber ser impossível representá-la. A felicidade por ser artista é dividida com a equivalente angústia da consciência da derrota. Que é como a vida: vive-se para viver, mas também para confirmar que foi impossível ter vivido.


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domingo, 15 de maio de 2016

Esqueça do 'caráter' da pessoa. Repare nos arredores dessa pessoa. Ela é o que a circunda. Porque podemos fingir o caráter que quisermos ter. E há essa maravilhosa capacidade de deixarmo-nos convencer pela mentira que nos entregam como verdade. Somos excelentes fingidores e igualmente excelentes crédulos. Mas os arredores não mentem. E nem fazem esforço para dizer a verdade. Eles são o que são. E fazem da pessoa o que ela é. Quer queira ela ou não. Os arredores! O entorno! O cenário! A periferia! O bom diretor de teatro não dirige os atores. Muito ao contrário! O bom diretor de teatro é um arquiteto da cena, sabe perfeitamente que é tempo perdido a tentativa de 'moldar' alguém. Molda-se o espaço, aí sim! E, como consequência, aparece quem nele possa habitar. Aquilo que está fora! Os figurinos! A música que toca ao longe! Tudo o que é externo ao 'eu'! É aí que se precisa prestar a máxima atenção. A personagem, seja ela quem for, não interessa nem um pouco.

sábado, 14 de maio de 2016

Há teatro em tudo porque há artificialidades em tudo. Exceto nos extremos da vida - nos bebês e nos velhos senis, nos loucos - naqueles que estão à margem do sistema das coisas conscientes. Os bichos igualmente não são nada teatrais. Essa espontaneidade natural pode ser invejável, admirável até, mas ela não sobrevive por muito tempo. Não gostamos dela. Desejamos, ao contrário, o artificialismo das coisas, e construímo-nos artificiais, excluindo tudo o que foge desse teatro forjado. Somos seres solenes, inventamos solenidades, adoramos enferrujar o fluxo natural dos dias em eventos que mais parecem encenações patéticas ao olhar de algum ator distanciado de nossos hábitos culturais. Somos patéticos. Atores patéticos. Vestimos e desvestimos máscaras ainda que o uso dela, da máscara, seja atribuído à falta de caráter. Nosso caráter é não ter um caráter, mas milhares deles, feito um canastrão que se adapta à música conforme a vitrola toca. Se o mundo é um palco, como Shakespeare afirmou, ou uma ópera - segundo Machado de Assis - o palco, ele próprio, já é o mundo que basta. Não é preciso sair do teatro para entender o homem. O ator, por experimentar em seu ofício o que para os outros parece 'natural' - o fingimento -, destaca-se como o grande e talvez único verdadeiro conhecedor da essência humana. É ele, o ator, um eterno Hamlet, sabe que o mundo está fora dos eixos, e que a única alternativa para emendá-lo é não querer emendá-lo, senão continuar representando uma outra peça dentro dessa outra peça maior, que já é a vida ela mesma.


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sexta-feira, 13 de maio de 2016

A maior contribuição política do teatro é não mentir que teatro é teatro. Porque teatro que é teatro diz claramente ao mundo - esse mundo que aí está, que é mundo desde que o mundo é mundo, e que é inevitável deixar de sê-lo - que há uma chance de salvação, uma pequena chance de salvação. Que é possível inventar uma outra coisa para além daquilo que já existe, que se paramentar de um jeito esquisito é inaugurar uma esquisitice da qual somos carentes porque contaminados estamos pela ladainha sistemática dos dias sempre iguais. E esse é o maior fardo a se carregar: o tédio insustentável de ter de ser alguém já previsto no script sem sal do destino, de justificar a obra da qual não se é o autor, que nos foi imposta sem abertura alguma para subversões. A maior contribuição política do teatro que é teatro é poder inventar, é ter a audácia e a irresponsabilidade descarada de agir como a criança que entorta os eixos do teatro do mundo. Inventar, não sonhar! Porque sonhar podemos sonhar sozinhos, na intimidade dos nossos gabinetes íntimos. E quando o sonho é coletivo ele é perigoso, esbarra em utopias, em abstrações tomadas como verdades, em cerceamento da capacidade de fugir do status quo. Mas inventar é verbo primordialmente generoso, é convocar o outro para brincar também. É deixá-lo brincar. E é saber também que uma hora o jogo termina, a caixinha de música é fechada, a sanfona silenciada. A invenção só é inventada para poder ela própria deixar de existir, para que depois possa dizer a quem dela tomou parte: "bobinhos! Enganei a todos!" A maior contribuição política do teatro que é teatro é organizar o tempo num começo, meio e fim, e que, por fim, acabe, devolvendo a consciência de que tudo o que se viveu não passou de uma tremenda farsa tragicômica, triste e feliz, melancólica e delirante. A maior contribuição do teatro que é teatro é transmitir esse cinismo carregado de ceticismo que nos prova que a vida que vale a pena viver ainda não está pavimentada, ainda não foi descoberta, e que alcançá-la será sempre uma sentença de morte. O melhor tipo de teatro é esse teatro sem leme, que nos embarca numa aventura de rumo incerto, sem respostas, sem mensagens ideológicas, sem receitas prontas, sem prestar contas ao desejo do mundo de ser ele explicado, analisado, aplaudido. O melhor tipo de teatro é teatro que faz política mostrando a língua para a plateia. 

Em tempos de horizontes sombrios, o teatro aparece como esse oásis de esperança, sempre receptivo ao desejo de mandar às favas tudo o que há de podre no reino da Dinamarca.


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quinta-feira, 12 de maio de 2016

Minha próxima personagem será um 'imperador de si mesmo'... E, ao cabo de suas impulsividades íntimas e tempestuosas, chegará à conclusão de que ele é um legítimo ninguém, destituído de qualquer identidade. Tal qual o ator, passou a vida paramentando-se de muitos 'alguéns' e esqueceu da necessidade que há em consolidar alguma essência. Ou será essa, precisamente, a sua essência: não ter qualquer essência? Esse é o fardo e a recompensa que carrega o ator: com o dever de ser muitos, esquece de quem se é. Que maravilha que é ser ator! Aqui de dentro, do ninho vaidoso do meu ego dilatado, vejo-me pelo lado de fora, enxergando o ridículo que sou, moldado por um teatro do qual sempre tive total domínio, e, igualmente, fui um perfeito refém. Meu epitáfio está sendo esse: 
'Aqui jaz ninguém'... Acrescento eu: 'um maravilhoso ninguém'.


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segunda-feira, 9 de maio de 2016

Para gostar tanto de teatro é necessário não gostar tanto de teatro. É como a vida. Amamos verdadeiramente a vida pelo ódio que temos a ela. Ou então não se ama verdadeiramente nada. Muita poesia envenena a alma. É preciso também de veneno para poetizá-la.


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domingo, 8 de maio de 2016

Tenho medo da plateia. Sempre tive medo da plateia. Essa coisa de que o ator é essa figura destemida que chama o espectador para dançar, no meu caso, é a mais pura balela. Sou travadíssimo. Tenho pavores espetaculares de pisar nos dedões dos espectadores. E se entro para a cena ainda assim é porque mantenho comigo esse medo. Preciso dele. Ou dele não consigo me livrar. Nunca é agradável o teatro no instante em que o teatro acontece. Agradável é quando termina. Mais ou menos, imagino eu, como acontece com o paraquedista: o instante da queda livre não é exatamente um instante agradável. Agradável é pousar. Mas para pousar foi necessário antes saltar. E o instante prévio ao salto, então - também imagino - é equivalente ao momento prévio à entrada do ator no palco: pavor completo. Agora, protejo-me do meu medo no teatro. Digo, no edifico do teatro. O teatro é a coisa de que mais gosto do teatro. Às vezes acho que o teatro vazio, completamente vazio, sem atores e espectadores, sem espetáculo algum, sem luzes acesas, cortinas abrindo e fechando, aplausos e murmúrios, só o teatro silencioso - palco e plateia como imensidões desoladas -, é suficiente para manter o maravilhoso mistério do qual o teatro é portador. É esse mistério que me encanta, que me faz suportar o medo da plateia. Mas e quando o teatro é feito sem que haja teatro, na rua? Aí o medo é quadruplicado. A plateia vira automaticamente um lar de feras selvagens, cada uma delas sedenta por abocanhar a minha jugular. A ideia da espontaneidade - de que é preciso lidar com o frescor da rua, adaptar-se às contingências da rua -, eleva meu pavor a enésima potência. Não, não! Definitivamente eu não sou nada espontâneo, nada extrovertido, nada afeito às idiossincrasias daquilo que está por acontecer e não foi planejado. Muito ao contrário! Gosto mesmo é da solenidade, do ritual há séculos ensaiado, repetido e testado à exaustão! Que maravilha que é o spalla entrando na sala de concerto, todos os
músicos levantando-se, a plateia aplaudindo, o violinista pedindo pela nota lá do oboé, a afinação da orquestra na sequência, o silêncio que advém disso, o vácuo incrível preenchido pela expectativa da entrada do maestro que, finalmente, aparece na sala para receber novos aplausos e instaurar novo silêncio para, enfim, dar início à sinfonia. Sou desse tipo: da solenidade. Solenidade que só é possível de acontecer num espaço interno, de teto artificial. O teto do céu me dá medo. A plateia da rua me apavora. Eu piso no pé de todos. Eu tropeço em mim mesmo. Gosto da mentira. Gosto da artificialidade das danças ensaiadas. Quando chamam-me a gingar na cadência daquilo que é improvisado, tenho desejos incomensuráveis de sumir. 

Viva o teatro! Viva o teatro que acontece no teatro!

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Teatro é uma ladainha. Você se salva pela repetição, só pela repetição. E pouco importa o seu conteúdo. A absolvição é garantida tanto para quem leva ao palco 'O Rapto das Cebolinhas' quanto 'Hamlet'. Rezando as contas repetidamente, todos se salvam.


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Às vezes eu tenho a certeza absoluta de que eu só escolhi ser ator para aprender a escrever. Afinal, se a comunicação do palco é maravilhosa justamente porque quando você fala alguém está sempre lá para lhe responder, a do escritor, por seu turno, é maravilhosa ao infinito, e justamente porque quando você fala, ninguém - rigorosamente ninguém -, tem a audácia de lhe devolver uma única e mísera interjeição como resposta.

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Eu não acredito em verdade nenhuma da qual queiram convencer-me. São sempre mentiras deslavadas. Agora, quando mentem diretamente para mim, sem medo de esconder que mentem, munidos da graça despretensiosa que só a mentira pode carregar, aí, então, eu acredito. As mentiras assumidas são tão translúcidas quanto a mais pura das verdades sonegadas.


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sábado, 7 de maio de 2016

Assistindo a um documentário no canal Arte 1 sobre a história dos violinos Stradivarius e penso cá comigo como o músico é mais sortudo que o ator. O violino supera o músico. Mas não porque o violino seja 'melhor' do que o músico, senão porque o violino é anterior ao músico. É nisso em que o violino é superior ao músico: ele já existe previamente a quem irá tocá-lo. E o músico só será um músico de qualidade caso consiga dar passagem ao som que já está contido como potência no seu violino. O som do violino já pertence ao violino, é dele! O bom músico é aquele que faz o seu violino tocar. Ele que toca só toca para que o violino toque... Com o ator essa consciência de estar a serviço do ofício é tão falha. A personagem - que deveria ser o violino do ator - é quase sempre um argumento abstrato que só é importante como mero pretexto para que o ator brilhe. O ator, ao contrário do músico, não tem em o que se apoiar, não há instrumento com que dialogar, é ele próprio o seu instrumento, um instrumento invisível, íntimo, e quase sempre vaidoso ao grau de cegar o ator para tudo o que o cerca. O ator, que antes portava máscaras - essa sim, a máscara, um instrumento tangível tal qual é o violino para o músico -, hoje, em quase a totalidade do seu trabalho, tem de lidar com uma solidão espetacular: ele com sua personagem, que não é nada, só letras impressas, nada para se tocar. Ou é possível tocar as palavras? Até acredito que seja, mas quanta diferença para com o músico, que já guarda dentro do seu instrumento a poesia que necessariamente já está pronta, somente à espera de quem a saiba cantá-la.

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Não há nada mais entediante do que uma personagem que 'se identifica' com os espectadores. Gosto dos dramaturgos que constroem personagens esquisitas, monstruosas, de sobrancelhas pesadamente arqueadas, que em nada se parecem com as dores ou alegrias da plateia. Para identificar-me com as dores ou alegrias de alguém eu só tenho que dobrar a esquina da minha casa, não preciso ter o trabalho de ir até o teatro. Ou o teatro é espetacularmente apartado dessas instâncias comezinhas do cotidiano, ou, então, é mais adequado sentar a bunda no sofá e assistir a um bom melodrama televisionado. A identificação da personagem-espectador, no teatro, deveria ser sempre pelo assombro da incompatibilidade entre poesia e vida. Todo o resto é desperdício de tempo e paciência.


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sexta-feira, 6 de maio de 2016

Ser ator é padecer a cada final de espetáculo do desejo desesperado de aposentar-se por justa causa e merecimento, e, por alguma razão misteriosa, sobreviver, e voltar na noite seguinte, e só para ver se depois do novo espetáculo a bendita aposentadoria finalmente sai. E assim sucessivamente, repetidamente e eternamente, ad eternum, infinitum, in memorium, pater, fili, spiriti-santi. Réquiem.

Amém.

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A ausência da máscara enquanto objeto concreto e tangível deixa o ator dos nossos tempos - o tempo da psicologia (ainda ela?) - numa enrascada: como interpretar a personagem? Pois o ator que veste a máscara ou dela tem consciência sabe perfeitamente que essa é uma questão vazia. Lidar com o que não existe para tentar ao invisível imprimir existência é como semear uma horta com sementes de plástico na espera de que uma árvore frondosa seja dali brotada. E o invisível ao qual a ideia de personagem se pauta é diferente daquele invisível da imaginação poética, tão caro ao evento artístico. Porque uma coisa é convidar a audiência a brincar - e para isso é necessário que haja jogo, faz de conta, combinações lúdicas, parcerias coletivamente estabelecidas -, e outra, bastante diferente, é ensimesmar-se numa disputa íntima em que se gasta precioso tempo a correr atrás de uma abstração pincelada nas entrelinhas de um papel. Porque a questão é justamente essa: o ator que identifica na personagem o real motivo dos seus esforços está sempre a correr atrás da ideia de uma personagem que se encontra, por seu turno, num outro tempo que nunca é o tempo do aqui-agora, noutro tempo que não é este tempo que está acontecendo aqui e agora. E, assim, porta-se o ator que é fiel à personagem como o principal protagonista, é ele quem aparece a despeito da sua vontade de 'viver' a personagem e esquecer de si próprio. É um ator que imagina-se livre, capaz de tudo, e que, por depositar confiança no sentimento e não na razão, faz do edifício do invisível uma estrutura frágil e triste, sem possibilidade de ser habitada senão por ele mesmo. Por outro lado, o ator que tem consciência do artifício da máscara - e ainda que a máscara não exista como objeto de extensão ao corpo do ator -, é preenchido da certeza de que é ele um instrumento determinado a agir por condições que ao seu íntimo fogem à vontade. O ator da máscara é um ator do desejo, que é a sua potência de existir no tempo e no espaço. E o desejo não é carência ou vontade, é amálgama concreto que direciona o artista à ação. Ação esta que é assentada no aqui e agora, nem antes, nem depois. O ator da máscara, por não preocupar-se com a personagem, inventa personagens infinitos e que podem ser lidos e comungados pela audiência. O edifício do ator da máscara é generoso, nada ensimesmado, afeito à convivência do coletivo. 

Há um ator spinoziano em contraponto ao ator stanislavskiano. Um ator de posse de uma inteligência racional interna, e outro entregue aos sabores do abstrato íntimo. 


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terça-feira, 3 de maio de 2016

O ser é o agir. É essa separação entre quem eu sou e o que eu faço, por vontade ou desejo, necessidade ou razão, que mata o ator. A vontade e o desejo já são a necessidade e a razão. Essência e potência são uma única e mesma coisa. O ator teria ganhos infinitos se fosse ele menos ator - nesse sentido psicológico de que é preciso investigar uma substância interior até alcançar o modus operandi da personagem - e mais bailarino. O bailarino não salta no instante do salto porque alguma coisa interna o motiva a saltar. Ele salta porque o salto já o motivo interno por si. E é o mesmo que dizer: não existe separação alguma entre ator e personagem. O ser já é o agir. Ator e personagem são uma única e mesma coisa.
Há uma gramática Spinozista (sua ética) que faz frente a todo um edifício stanislavskiano que aí está como verdade arraigada nas nossas considerações sobre a arte da interpretação.



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segunda-feira, 2 de maio de 2016

Fui ao teatro e havia na fileira da frente da que eu estava sentado duas senhoras de idades matusalímicas que preferiram odiar-me a assistir ao espetáculo. E tudo porque a peça que víamos mostrou-se ser duas peças diferentes: enquanto eu me divertia horrores com o que os atores faziam no palco, as duas senhoras - duas tiranossauras-rexas recém saídas do ovo jurássico -, entediavam-se em proporções semelhantes. A cada gargalhada minha as duas senhoras-mesozóicas ajeitavam-se nas poltronas, bufavam, ameaçavam encarar-me, suspiravam de raiva e indignação por haver um pobre idiota - eu - a estrebuchar-se daquilo que, na
visão delas, graça nenhuma tinha, e que não era, evidentemente, a minha interpretação do que ocorria. E claro que eu, consciente da irritação da qual eu era autor e ator principal, passei a gostar ainda mais do espetáculo, e por duas razões: primeiro porque o espetáculo era definitivamente um espetáculo para se gostar, quer houvesse duas senhoras entediadas diante de você ou não, segundo porque desenvolvi um prazer sádico em aporrinhar aquelas duas senhoras entediadas que aprenderam a detestar duas coisas na mesma ocasião: a peça e eu. Às vezes eu ria ainda mais alto só para vê-las fervendo de cólera. Às vezes eu ria em instantes despropositados, e só para observá-las, as duas matusalímicas, arrancarem as perucas brancas de vontade de me esganar vivo. E pensei cá comigo: teatro não é uma coisa maravilhosa? Mesmo na plateia, há sempre espetáculos silenciosos tão interessantes quanto o que acontece na moldura da ficção. E não é um belo exemplo de forçada democracia também? Porque a convivência dos contrários é necessária, e quase que natural e bem vinda. Em tempos de golpe jurídico, não há jurisdição imposta de fora que faça do teatro uma ditadura. Até mesmo eu, sádico que sou, ou fui - ou serei -, tenho, ou tinha - ou vou ter -, a minha margem de atuação garantida.


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