segunda-feira, 31 de agosto de 2015




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Shakespeare é a coisa mais próxima do que se pode imaginar de uma orquestra de vozes, cores, tipos, melodias e formas. Somos todos instrumentos de naipes diferentes de uma mesma e única orquestra. Ninguém rege nada... Somos todos regidos.





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Que Deus me preserve o truque
Que o truque esteja sempre comigo
Que do truque eu possa sempre fazer uso e fazer do truque a minha ferramenta de trabalho
Que ninguém peça-me para ser verdadeiro
Que a vida nunca atravesse a fronteira artificial da arte
Que eu possa sempre mostrar-me artificial dentro dos domínios da arte - Essa é a única verdade que preservo
Que eu sempre - sempre! - seja um truqueiro de carteirinha
Um renomado falastrão
Que Deus me afaste do auto-conhecimento
Quero ver-me por fora, nunca por dentro
Sou oco!
Que eu seja sempre - sempre! - oco
Que o apelo à psicologia do invisível engesse e me alforrie das abstrações da alma
Que o meu corpo seja o meu monumento de sossego
Que minhas lágrimas e meu riso brotem da máscara forjada pelo truque
Que o teatro sempre me proteja dos adeptos do real, dos anunciadores das esquinas, dos pregoeiros da verossimilhança
Que o teatro e o truque sempre - sempre! - me acompanhem
Para todo o sempre...
Amém!



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sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Quando Shakespeare diz que o mundo é um palco, não é figura de linguagem. Para nós, atores, é coisa bastante concreta. É saber que o protagonista de Shakespeare são os arredores, as tábuas enfeitiçadas por sua bruxaria, que é, também, algo concreto e produzido. Portanto, mais importante do que pensar num trabalho de interpretação de atores, parece-me, Shakespeare convoca-nos ao desafio de produzir bruxaria. E quem dela toma parte, parece-me também, tem o dever de deixar-se contaminar por ela. Sempre carrego comigo a mais profunda convicção de que o bom ator que entra em contato com Shakespeare não preocupa-se em nenhum momento em dar conta de interpretar a sua personagem. Antes, ele sabe que é impossível responder à tamanha dimensão humana e poética ao singularizar a personagem dentro das reduzidas dimensões que lhe cabem como artista. O bom ator shakespeareano faz como Shakespeare pede, delega ao palco - e às bruxarias enfeitiçadas pelo palco - o desafio de o levar adiante em sua jornada.


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Arte deveria ser um negócio inalcançável, preservado no cume rarefeito do monte Everest. E a experiência estética deveria assemelhar-se a esse aventureiro que não sabe se voltará vivo depois de chegar ao cume rarefeito do Everest. Deveria faltar oxigênio para quem quisesse adentrar nesse terreno movediço e perigoso da arte. Os atores deveriam sentir o perigo de estarem expostos aos olhos de uma plateia composta por olhos inclementes. Mas faltam-nos olhos inclementes. O próprio ato de sentar-se numa plateia deveria ser calculado, nada aleatório. O que deveria ser privilegiado no campo da arte é a própria arte e não os seus arredores. Porque o sentido hoje de se fazer e contemplar arte resume-se ao ato de consumir arte na ante-sala da arte, como se a arte fosse um quartinho iluminado pelos sorrisos coletivos onde pode-se tranquilamente mastigar pacotinhos infinitos de salgadinho Doritos. E sorrir. Mastiga-se muito, lambuza-se muito com tanto sal e conservantes vários. E continua-se sorrindo, congelando essa máscara feliz nos rostos de todos os que comungam do mesmo piquenique. Todos viramos adeptos do piquenique. Enquanto o que deveríamos pleitear é a presença em jantares de gala, todos trajados à rigor, atentos ao ritual da comilança. O ator deveria ir ao teatro como um condenado que vai arrastado à forca, e não como quem decide dar uma flanada bucólica no parque florido. O público deveria rumar aos seus assentos tal qual uma horda de desesperados, sedentos pelo instante em que o patíbulo será aberto.


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Foram três personagens na sequência: um bajulador inveterado, um facínora sanguinário, e, agora, um espírito desejoso por sua liberdade. E são os três, nas suas mais abissais diferenças, uma única e mesma coisa. Porque a coisa de que se trata é o homem. Esse é o único personagem shakespeareano: o homem. É por esta razão que interpretar uma personagem do autor inglês é um desafio quase que esquizofrênico, porque a personagem nunca encerra-se naquilo que ela é ou mostra ser. Ela é tudo e todos ao mesmo tempo. Como é também o homem. Um personagem infinito. Interpretar uma personagem shakespeareana é afundar num precipício todas às vezes em que, prestes a entrar em cena, a única certeza de que se tem é que não é possível saber como interpretá-la. Exatamente o desafio do homem frente à vida: quem de nós haveria de saber dizer quem somos, e o jeito mais adequado de como viver?
O mundo é um palco, mas não sem antes o palco já ser o próprio mundo!


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domingo, 23 de agosto de 2015

A delícia de um picadeiro é entender que entrar num picadeiro, e também sair do picadeiro, já é todo o segredo da coisa. É justamente nesse espaço de trânsito - o quase lá, e o por fim já não estou mais aqui -, que inaugura uma confusão poética de solução impossível: é o ator que vem, ou a personagem que corre para chegar a tempo de sua cena? Quem vai embora quando tudo termina: o intérprete, ou aquele quem ele fingia ser e já não é mais (ou é ainda)? Ao contrário do palco italiano, parece-me, no picadeiro a personagem e o ator dão-se as mãos em um proposital revezamento de 'agora é sua vez / agora assuma você'. E está aí, precisamente nesse intervalo de mistério insolúvel, a fronteira de toda uma linguagem. As entradas e saídas são códigos que permanecem ainda debaixo das luzes dos refletores, e, talvez, não fossem por elas, o jogo não seria tão saboroso quanto o mostra ser. No picadeiro, resolve-se um enigma fundamental de todo o ofício do ator da cena - seja ele ator de picadeiro ou de qualquer outro espaço -, e que por vezes é solapado debaixo dessa valorização de uma psicologia barata em que o ator deve se escorar para rasgar-se em sensibilidade emotiva a fim de 'incorporar' a personagem. E o curioso é que a despeito do tanto que possa vir a se esforçar, inevitavelmente acaba por não incorporar nada, muito ao contrário, mostrando a si mesmo o tempo todo, e só a si mesmo, num exercício egoísta de autorreferência sem tamanho, sem qualquer contorno de poesia dramática. E a questão fundamental é esclarecida por uma equação simples, e aqui vai o traço de saldo total do enigma: o que sobra em evidência é sempre a máscara, que não é outra coisa senão a mistura bem dosada entre quem finge ser o que não é, e aquele que sem quem o finja ser jamais seria o que quer que fosse. E, se nada é solucionado com essa conclusão, é porque, no picadeiro e em qualquer outro terreno de arte dramática, quem governa é a dúvida. E tão somente a dúvida! Uma máscara chora, a outra ri. Extremos que inauguram um infindável e nebuloso caminho do meio...


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Ainda que espiritualidade seja um termo em desuso, e que a nossa prática religiosa dos dias que seguem seja coisa mais parecida com alistar-se em pelotões do exército a serviço de generais da salvação, a experiência de entrar em contato com Shakespeare recupera uma consciência perdida a partir do instante em que apostamos um valor excessivo no papel que imaginamos interpretar nesse palco maior da vida. Deram-nos a entender que somos protagonistas iluminados por merecimento de causa, esquecidos por completo daquilo que há de misterioso, insondável, das forças ocultas do destino. E todas essas matérias inapreensíveis à nossa vontade já são atalhos para voltar a uma espiritualidade perdida, essencial, dessas que prescindem de sacerdotes e rebanhos de fiéis. A poesia do Bardo é suficiente por ela própria para desmontar a ideia cristã do livre arbítrio e da qual tiramos a conclusão de que é possível dirigir um holofote para cima do cocuruto que nos coube pendurar em cima do pescoço, e fazer-nos, assim, personagens principais do nosso pequeno mundinho. Shakespeare, por uma única qualidade de sua métrica melódica (o rito vem à frente do mito), engole o ator junto à sua pretensão de desejar imprimir ele a sua versão daquilo que vem impresso na página. Não se interpreta personagens shakespeareanos, são elas, as personagens, que nos levam. E não há aqui nenhuma alusão à metafísicas baratas, arrebatamentos sentimentais, arroubos típicos dos terreiros de pai de santo. A coisa é absolutamente concreta, e, por isso mesmo, espiritual. A dificuldade em Shakespeare é tornar-se permeável ao inevitável impulso de querer interpretar Shakespeare. E não interpretá-lo. É algo maior, sempre algo maior, que nos governa. A nós, pequenos que somos, cabe acionar essa manivela. O que já é muita coisa. O que já envolve risco suficiente. 


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Essa língua que tanto ocupo-me em falar - e que tanto gosto de falar porque é uma bela língua - é, ao mesmo tempo, uma paixão e um enclausuramento. Porque se eu gosto imensamente dessa minha língua, odeio em exata proporção o onde me foi dado o direito de falá-la. Esse aqui onde estou me é sempre insuportável. Pudesse eu levar a minha língua na bagagem e ir-me embora, é o que prontamente eu faria. Mas deixando a minha língua aqui fico eu também aqui. Sair daqui sem a minha língua é como partir sem ter partido, é ficar mesmo estando longe. E assim já não vale a pena ir. Esforço inútil. O exílio seria uma maravilha caso pudesse colonizar com minha língua cada pedaço de terra estrangeira onde eu pisasse. Mas também sou prisioneiro pelas fronteiras que a minha língua me impõe. Melhor não seria ter língua nenhuma para que pudesse não carregar nada de mim para qualquer lugar onde resolvesse ir. E por isso fico. Em prostrada resignação, minhas bagagens sempre prontas nunca saem do lugar. Habitado por dentro aqui estou eu. Completamente oco por fora, permaneço.


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Por que nós, atores, não nos deixamos abalar com a crise? Por que esse circo atual envolvendo a palavra crise pouco ou quase nada nos afeta, não nos tira o sono, não embrulha o estômago, não faz a cabeça doer de preocupações? Porque para nós, atores, a palavra crise já é tão habitual. Porque equilibrar-se em cima de um palco iluminado na iminência de esborrachar o nariz ao chão já nos parece crise suficiente e de proporções exponenciais, e da qual padecemos tantas e repetidas vezes. E quando dela nos afastam, atrás dela corremos novamente. Mas tudo isso, dizem, é muito bonito. Coisa de gente sensível e graciosa que vive no mundo da lua. Querem, então, colocar-nos a saber que é de uma outra espécie de crise de que falam, dessa crise de perder o emprego e olhar para o futuro com a ansiedade de quem não sabe o que está por vir. Pois nós, atores, também dessa crise estamos vacinados. Nós, atores, perdemos o emprego sempre. Faz parte do nosso ofício perder o emprego. É quase sagrado que percamos o emprego. E não o perdemos porque queremos perdê-lo, ao contrário! Desejamos manter o nosso emprego como qualquer pobre diabo, ator ou não ator, também desejaria. Mas é da qualidade do nosso emprego que ele nos chute para longe depois de uma breve convivência entre nós e ele - às vezes uma convivência bastante turbulenta e nada agradável, outras vezes repleta de realizações e conquistas -, e, depois disso, voltamos ao que éramos antes de ter uma ocupação, voltamos a ser desempregados. A palavra crise para nós, atores, em nada tem a ver com essa esquizofrenia por estabilidade em algum ofício que ofereça garantias de permanência, promessas de aposentadoria, plano de saúde, benefícios mil outros. Porque a crise para nós, atores, já é tudo isso antes de pensarmos em virar esquizofrênicos. A crise precede a nós, atores, e de nós toma conta, e por ela e através dela vivemos. Sem negociação alguma. É certo que quando falam em crise remetem-nos às agruras de ter de despojar-se da segurança de um salário fixo para o sustento de uma família. Pois para nós, atores, o conceito de família não é esse conceito de família tradicional. Pouco ou quase nada nos interessa erguer legados de hereditariedade polvilhando o mundo de filhos que carreguem adiante o nosso precioso DNA. Nós, atores, aprendemos desde muito cedo a morrer sem deixar herança. O nosso império é erguido feito um castelo de cartas, ao menor sopro e o desmoronamento é certo. Desmoronamos porque é também da nossa prática, da prática dos atores, preferir o efêmero, o valor do instante ao sabor da permanência, daquilo que ficará para depois de nós. Para nós, atores, o esquecimento é uma dádiva maravilhosa e de difícil barganha. Morremos porque desejamos morrer. Tão precioso quanto aparecer é sumir. E, nessa prática de ir morrendo, também vamos nós, aos poucos, aprendendo o imenso valor que existe nessas coisas as quais pouco ou nada acostumamos atribuir valor, quais sejam: a maravilha de poder fazer funcionar uma piada para que o outro ria, ou a beleza que é emocionar com lágrimas de mentira, forjadas pela brincadeira da poesia. Para nós, atores, acostumados que somos à solidão da melancolia, crise maior seria se optássemos por uma jornada de certezas, de diplomas, cargos e carimbos. Os empregos oficiais, esses empregos ceifados pela crise, para nós, atores, são como um passaporte à condenação eterna. Se há algum emprego reservado a nós, atores, esse emprego é um emprego nada oficial. Um emprego que jamais poderia constar na listagem oficial dos empregos atingidos e ceifados pela atual crise. Fôssemos nós, atores, típicos assalariados, aí sim a tristeza seria infinita. O que faria despontar um belo de um sorriso no rosto de um trabalhador que corre atrás de um desses empregos oficiais, em nosso semblante, no semblante dos atores, faria estampar a mais cinza das máscaras. É bem verdade que nós, atores, não somos os melhores exemplares para ostentar posses e riquezas visíveis. Somos, é bem verdade, de uma pobreza palpável, mas que para nós é de essencial e urgente manutenção. Afinal, é a soma de todas essas precariedades espontâneas que nos garante poupar o que realmente atiça a faísca dessa chama que nos concede o direito a continuar respirando e vivendo: a imaginação.

Portanto, dane-se essa crise. Há muito mais em o que pensar e sentir.



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quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Às vezes, quem é protagonista é a plateia. E é preciso deixá-la exercer o protagonismo. Às vezes, a plateia não quer nem mesmo ocupar-se do cargo de figurante. E é preciso deixar que a plateia suma no seu desejo de sumir. Às vezes, o ator é quem segura o leme, às vezes é ele quem é levado. Fazer teatro é como subir num barco. Ora os ventos sopram a favor, ora é preciso fazer ventar com os próprios pulmões. Tanto num caso como no outro, a metáfora é a mesma da vida.
Viva A Tempestade!


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O ator é o corrupto do bem. Finge quem não é com condescendência de causa. O ator é esse pilantra explícito que se pilantra não fosse seria acusado de honestidade criminosa. O ator é a reunião máxima desses ingredientes vexatórios que fora das tábuas do teatro renderia a quem quer que fosse um ingresso vitalício no hospício. Mas no teatro a loucura é matéria prima, a falta de vergonha na cara é premissa básica. O ator é essa espécie de mártir que sacia os desejos inconfessos de sermos verdadeiros na nossa primeira e única essência natural: a de seres mascarados, inconstantes, sensíveis ao barulho da ordem e da disciplina, saudosos do tempo em que podíamos ser ninguém e muitos, e tudo ao mesmo tempo. O ator é esse eterno réu da Lava-Jato agraciado com a delação premiada, sempre acusado de sinceridade na sua mais deslavada ausência de escrúpulos...
Um viva a todos os atores nesse dia do ator!


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quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Shakespeare é igualzinho a uma fanfarra - suas personagens são a cópia bem acabada desses instrumentos que, juntos e dentro do coreto da praça, fazem todos da rua parar para ouví-los. A sinfonia shakespeareana é feita de tambores, pífanos, reco-recos e companhia...


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A profissão de ator (sim, lá nos idos tempos foi uma profissão) é a mais insignificante das profissões. E, por isso mesmo, a mais essencial dentre todas as demais profissões. Ninguém precisa ser ator. Ninguém precisa do ator. Sumindo o ator, ninguém dará por sua falta. É por essa exata razão que toda vez em que vejo um ator (?) reivindicando a importância da sua profissão - justamente aquele quem deveria não só reconhecer como festejar a sua permanente insignificância -, me bate um sono atroz, desses sonos despertos, que pouco sonham.


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O melhor cansaço é esse cansaço que nos acomete por inteiro depois de haver ensaiado horas a fio, depois de ter feito um espetáculo de lamber as tábuas do palco... O teatro tem dessas coisas: exige torcer até a última tripa dos intestinos, ao mesmo tempo em que lava a alma do fio do cabelo até a unha encravada do dedão direito do pé...

Viva o teatro!


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sábado, 1 de agosto de 2015

Acabo de ver um desses atores da nova geração da TV concedendo uma entrevista a um programa de entrevistas no mesmo canal de TV cujo ator em questão exercita o seu jeito bastante pessoal de ser-ator. E esse tal jeito bastante pessoal de ser-ator é algo tão importante para o tal ator, parece-me, que o jeito do ator conceder a tal da entrevista é exatamente a cópia fiel do jeito com que o tal ator é ator quando exerce a sua função de ator dentro das obras de dramaturgia da mesma emissora. A melodia da voz, o tônus dos movimentos do corpo, o foco do olhar, o topete penteado para o lado direito, os risinhos de canto de lábio... Tudo igual. O jeito é o mesmo. O jeito bastante pessoal de ser-ator. Imagino eu que ser-ator, hoje, em nada tenha a ver com ser-ator de fato, senão em descobrir um jeito bastante pessoal de ser-ator, um jeito bastante agradável que seja possível transferir para as diversas instâncias da vida, seja para conceder entrevistas, comprar pão na padaria, coçar as frieiras do pé esquerdo, ou, quem sabe e de vez em quando, aproveitar o tal jeito de ser-ator para ser-ator quando necessário for. O importante, parece-me, é emplacar uma certa manutenção de equilíbrio estável entre essas ferramentas de construção do jeito de ser-ator para que o ator possa sustentar a sua empatia perante o mundo, e fazer do ator cujo jeito de ser-ator é o que lhe garante o status de ser-ator, um maravilhoso exemplar de alguém parecido com outros muitos alguéns, também jeitosos em seus bastante particulares jeitos de ser...


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