Ainda que espiritualidade seja um termo em desuso, e que a nossa prática
religiosa dos dias que seguem seja coisa mais parecida com alistar-se
em pelotões do exército a serviço de generais da salvação, a experiência
de entrar em contato com Shakespeare recupera uma consciência perdida a
partir do instante em que apostamos um valor excessivo no papel que
imaginamos interpretar nesse palco maior da vida. Deram-nos a entender
que somos protagonistas iluminados por merecimento de
causa, esquecidos por completo daquilo que há de misterioso,
insondável, das forças ocultas do destino. E todas essas matérias
inapreensíveis à nossa vontade já são atalhos para voltar a uma
espiritualidade perdida, essencial, dessas que prescindem de sacerdotes e
rebanhos de fiéis. A poesia do Bardo é suficiente por ela própria para
desmontar a ideia cristã do livre arbítrio e da qual tiramos a conclusão
de que é possível dirigir um holofote para cima do cocuruto que nos
coube pendurar em cima do pescoço, e fazer-nos, assim, personagens
principais do nosso pequeno mundinho. Shakespeare, por uma única
qualidade de sua métrica melódica (o rito vem à frente do mito), engole o
ator junto à sua pretensão de desejar imprimir ele a sua versão daquilo
que vem impresso na página. Não se interpreta personagens
shakespeareanos, são elas, as personagens, que nos levam. E não há aqui
nenhuma alusão à metafísicas baratas, arrebatamentos sentimentais,
arroubos típicos dos terreiros de pai de santo. A coisa é absolutamente
concreta, e, por isso mesmo, espiritual. A dificuldade em Shakespeare é
tornar-se permeável ao inevitável impulso de querer interpretar
Shakespeare. E não interpretá-lo. É algo maior, sempre algo maior, que
nos governa. A nós, pequenos que somos, cabe acionar essa manivela. O
que já é muita coisa. O que já envolve risco suficiente.
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