domingo, 23 de agosto de 2015

Ainda que espiritualidade seja um termo em desuso, e que a nossa prática religiosa dos dias que seguem seja coisa mais parecida com alistar-se em pelotões do exército a serviço de generais da salvação, a experiência de entrar em contato com Shakespeare recupera uma consciência perdida a partir do instante em que apostamos um valor excessivo no papel que imaginamos interpretar nesse palco maior da vida. Deram-nos a entender que somos protagonistas iluminados por merecimento de causa, esquecidos por completo daquilo que há de misterioso, insondável, das forças ocultas do destino. E todas essas matérias inapreensíveis à nossa vontade já são atalhos para voltar a uma espiritualidade perdida, essencial, dessas que prescindem de sacerdotes e rebanhos de fiéis. A poesia do Bardo é suficiente por ela própria para desmontar a ideia cristã do livre arbítrio e da qual tiramos a conclusão de que é possível dirigir um holofote para cima do cocuruto que nos coube pendurar em cima do pescoço, e fazer-nos, assim, personagens principais do nosso pequeno mundinho. Shakespeare, por uma única qualidade de sua métrica melódica (o rito vem à frente do mito), engole o ator junto à sua pretensão de desejar imprimir ele a sua versão daquilo que vem impresso na página. Não se interpreta personagens shakespeareanos, são elas, as personagens, que nos levam. E não há aqui nenhuma alusão à metafísicas baratas, arrebatamentos sentimentais, arroubos típicos dos terreiros de pai de santo. A coisa é absolutamente concreta, e, por isso mesmo, espiritual. A dificuldade em Shakespeare é tornar-se permeável ao inevitável impulso de querer interpretar Shakespeare. E não interpretá-lo. É algo maior, sempre algo maior, que nos governa. A nós, pequenos que somos, cabe acionar essa manivela. O que já é muita coisa. O que já envolve risco suficiente. 


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