domingo, 23 de agosto de 2015

A delícia de um picadeiro é entender que entrar num picadeiro, e também sair do picadeiro, já é todo o segredo da coisa. É justamente nesse espaço de trânsito - o quase lá, e o por fim já não estou mais aqui -, que inaugura uma confusão poética de solução impossível: é o ator que vem, ou a personagem que corre para chegar a tempo de sua cena? Quem vai embora quando tudo termina: o intérprete, ou aquele quem ele fingia ser e já não é mais (ou é ainda)? Ao contrário do palco italiano, parece-me, no picadeiro a personagem e o ator dão-se as mãos em um proposital revezamento de 'agora é sua vez / agora assuma você'. E está aí, precisamente nesse intervalo de mistério insolúvel, a fronteira de toda uma linguagem. As entradas e saídas são códigos que permanecem ainda debaixo das luzes dos refletores, e, talvez, não fossem por elas, o jogo não seria tão saboroso quanto o mostra ser. No picadeiro, resolve-se um enigma fundamental de todo o ofício do ator da cena - seja ele ator de picadeiro ou de qualquer outro espaço -, e que por vezes é solapado debaixo dessa valorização de uma psicologia barata em que o ator deve se escorar para rasgar-se em sensibilidade emotiva a fim de 'incorporar' a personagem. E o curioso é que a despeito do tanto que possa vir a se esforçar, inevitavelmente acaba por não incorporar nada, muito ao contrário, mostrando a si mesmo o tempo todo, e só a si mesmo, num exercício egoísta de autorreferência sem tamanho, sem qualquer contorno de poesia dramática. E a questão fundamental é esclarecida por uma equação simples, e aqui vai o traço de saldo total do enigma: o que sobra em evidência é sempre a máscara, que não é outra coisa senão a mistura bem dosada entre quem finge ser o que não é, e aquele que sem quem o finja ser jamais seria o que quer que fosse. E, se nada é solucionado com essa conclusão, é porque, no picadeiro e em qualquer outro terreno de arte dramática, quem governa é a dúvida. E tão somente a dúvida! Uma máscara chora, a outra ri. Extremos que inauguram um infindável e nebuloso caminho do meio...


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