A delícia de um picadeiro é entender que entrar num picadeiro, e também
sair do picadeiro, já é todo o segredo da coisa. É justamente nesse
espaço de trânsito - o quase lá, e o por fim já não estou mais aqui -,
que inaugura uma confusão poética de solução impossível: é o ator que
vem, ou a personagem que corre para chegar a tempo de sua cena? Quem vai
embora quando tudo termina: o intérprete, ou aquele quem ele fingia ser
e já não é mais (ou é ainda)? Ao contrário do palco italiano,
parece-me, no picadeiro a personagem e o ator dão-se as mãos em um
proposital revezamento de 'agora é sua vez / agora assuma você'. E está
aí, precisamente nesse intervalo de mistério insolúvel, a fronteira de
toda uma linguagem. As entradas e saídas são códigos que permanecem
ainda debaixo das luzes dos refletores, e, talvez, não fossem por elas, o
jogo não seria tão saboroso quanto o mostra ser. No picadeiro,
resolve-se um enigma fundamental de todo o ofício do ator da cena - seja
ele ator de picadeiro ou de qualquer outro espaço -, e que por vezes é
solapado debaixo dessa valorização de uma psicologia barata em que o
ator deve se escorar para rasgar-se em sensibilidade emotiva a fim de
'incorporar' a personagem. E o curioso é que a despeito do tanto que
possa vir a se esforçar, inevitavelmente acaba por não incorporar nada,
muito ao contrário, mostrando a si mesmo o tempo todo, e só a si mesmo,
num exercício egoísta de autorreferência sem tamanho, sem qualquer
contorno de poesia dramática. E a questão fundamental é esclarecida por
uma equação simples, e aqui vai o traço de saldo total do enigma: o que
sobra em evidência é sempre a máscara, que não é outra coisa senão a
mistura bem dosada entre quem finge ser o que não é, e aquele que sem
quem o finja ser jamais seria o que quer que fosse. E, se nada é
solucionado com essa conclusão, é porque, no picadeiro e em qualquer
outro terreno de arte dramática, quem governa é a dúvida. E tão somente a
dúvida! Uma máscara chora, a outra ri. Extremos que inauguram um
infindável e nebuloso caminho do meio...
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