Por que nós, atores, não nos deixamos abalar com a crise? Por que
esse circo atual envolvendo a palavra crise pouco ou quase nada nos
afeta, não nos tira o sono, não embrulha o estômago, não faz a cabeça
doer de preocupações? Porque para nós, atores, a palavra crise já é tão
habitual. Porque equilibrar-se em cima de um palco iluminado na
iminência de esborrachar o nariz ao chão já nos parece crise suficiente e
de proporções exponenciais, e da qual padecemos tantas e repetidas
vezes. E quando dela nos afastam, atrás dela corremos novamente. Mas
tudo isso, dizem, é muito bonito. Coisa de gente sensível e graciosa que
vive no mundo da lua. Querem, então, colocar-nos a saber que é de uma
outra espécie de crise de que falam, dessa crise de perder o emprego e
olhar para o futuro com a ansiedade de quem não sabe o que está por vir.
Pois nós, atores, também dessa crise estamos vacinados. Nós, atores,
perdemos o emprego sempre. Faz parte do nosso ofício perder o emprego. É
quase sagrado que percamos o emprego. E não o perdemos porque queremos
perdê-lo, ao contrário! Desejamos manter o nosso emprego como qualquer
pobre diabo, ator ou não ator, também desejaria. Mas é da qualidade do
nosso emprego que ele nos chute para longe depois de uma breve
convivência entre nós e ele - às vezes uma convivência bastante
turbulenta e nada agradável, outras vezes repleta de realizações e
conquistas -, e, depois disso, voltamos ao que éramos antes de ter uma
ocupação, voltamos a ser desempregados. A palavra crise para nós,
atores, em nada tem a ver com essa esquizofrenia por estabilidade em
algum ofício que ofereça garantias de permanência, promessas de
aposentadoria, plano de saúde, benefícios mil outros. Porque a crise
para nós, atores, já é tudo isso antes de pensarmos em virar
esquizofrênicos. A crise precede a nós, atores, e de nós toma conta, e
por ela e através dela vivemos. Sem negociação alguma. É certo que
quando falam em crise remetem-nos às agruras de ter de despojar-se da
segurança de um salário fixo para o sustento de uma família. Pois para
nós, atores, o conceito de família não é esse conceito de família
tradicional. Pouco ou quase nada nos interessa erguer legados de
hereditariedade polvilhando o mundo de filhos que carreguem adiante o
nosso precioso DNA. Nós, atores, aprendemos desde muito cedo a morrer
sem deixar herança. O nosso império é erguido feito um castelo de
cartas, ao menor sopro e o desmoronamento é certo. Desmoronamos porque é
também da nossa prática, da prática dos atores, preferir o efêmero, o
valor do instante ao sabor da permanência, daquilo que ficará para
depois de nós. Para nós, atores, o esquecimento é uma dádiva maravilhosa
e de difícil barganha. Morremos porque desejamos morrer. Tão precioso
quanto aparecer é sumir. E, nessa prática de ir morrendo, também vamos
nós, aos poucos, aprendendo o imenso valor que existe nessas coisas as
quais pouco ou nada acostumamos atribuir valor, quais sejam: a maravilha
de poder fazer funcionar uma piada para que o outro ria, ou a beleza
que é emocionar com lágrimas de mentira, forjadas pela brincadeira da
poesia. Para nós, atores, acostumados que somos à solidão da melancolia,
crise maior seria se optássemos por uma jornada de certezas, de
diplomas, cargos e carimbos. Os empregos oficiais, esses empregos
ceifados pela crise, para nós, atores, são como um passaporte à
condenação eterna. Se há algum emprego reservado a nós, atores, esse
emprego é um emprego nada oficial. Um emprego que jamais poderia constar
na listagem oficial dos empregos atingidos e ceifados pela atual crise.
Fôssemos nós, atores, típicos assalariados, aí sim a tristeza seria
infinita. O que faria despontar um belo de um sorriso no rosto de um
trabalhador que corre atrás de um desses empregos oficiais, em nosso
semblante, no semblante dos atores, faria estampar a mais cinza das
máscaras. É bem verdade que nós, atores, não somos os melhores
exemplares para ostentar posses e riquezas visíveis. Somos, é bem
verdade, de uma pobreza palpável, mas que para nós é de essencial e
urgente manutenção. Afinal, é a soma de todas essas precariedades
espontâneas que nos garante poupar o que realmente atiça a faísca dessa
chama que nos concede o direito a continuar respirando e vivendo: a
imaginação.
Portanto, dane-se essa crise. Há muito mais em o que pensar e sentir.
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