domingo, 23 de agosto de 2015

Por que nós, atores, não nos deixamos abalar com a crise? Por que esse circo atual envolvendo a palavra crise pouco ou quase nada nos afeta, não nos tira o sono, não embrulha o estômago, não faz a cabeça doer de preocupações? Porque para nós, atores, a palavra crise já é tão habitual. Porque equilibrar-se em cima de um palco iluminado na iminência de esborrachar o nariz ao chão já nos parece crise suficiente e de proporções exponenciais, e da qual padecemos tantas e repetidas vezes. E quando dela nos afastam, atrás dela corremos novamente. Mas tudo isso, dizem, é muito bonito. Coisa de gente sensível e graciosa que vive no mundo da lua. Querem, então, colocar-nos a saber que é de uma outra espécie de crise de que falam, dessa crise de perder o emprego e olhar para o futuro com a ansiedade de quem não sabe o que está por vir. Pois nós, atores, também dessa crise estamos vacinados. Nós, atores, perdemos o emprego sempre. Faz parte do nosso ofício perder o emprego. É quase sagrado que percamos o emprego. E não o perdemos porque queremos perdê-lo, ao contrário! Desejamos manter o nosso emprego como qualquer pobre diabo, ator ou não ator, também desejaria. Mas é da qualidade do nosso emprego que ele nos chute para longe depois de uma breve convivência entre nós e ele - às vezes uma convivência bastante turbulenta e nada agradável, outras vezes repleta de realizações e conquistas -, e, depois disso, voltamos ao que éramos antes de ter uma ocupação, voltamos a ser desempregados. A palavra crise para nós, atores, em nada tem a ver com essa esquizofrenia por estabilidade em algum ofício que ofereça garantias de permanência, promessas de aposentadoria, plano de saúde, benefícios mil outros. Porque a crise para nós, atores, já é tudo isso antes de pensarmos em virar esquizofrênicos. A crise precede a nós, atores, e de nós toma conta, e por ela e através dela vivemos. Sem negociação alguma. É certo que quando falam em crise remetem-nos às agruras de ter de despojar-se da segurança de um salário fixo para o sustento de uma família. Pois para nós, atores, o conceito de família não é esse conceito de família tradicional. Pouco ou quase nada nos interessa erguer legados de hereditariedade polvilhando o mundo de filhos que carreguem adiante o nosso precioso DNA. Nós, atores, aprendemos desde muito cedo a morrer sem deixar herança. O nosso império é erguido feito um castelo de cartas, ao menor sopro e o desmoronamento é certo. Desmoronamos porque é também da nossa prática, da prática dos atores, preferir o efêmero, o valor do instante ao sabor da permanência, daquilo que ficará para depois de nós. Para nós, atores, o esquecimento é uma dádiva maravilhosa e de difícil barganha. Morremos porque desejamos morrer. Tão precioso quanto aparecer é sumir. E, nessa prática de ir morrendo, também vamos nós, aos poucos, aprendendo o imenso valor que existe nessas coisas as quais pouco ou nada acostumamos atribuir valor, quais sejam: a maravilha de poder fazer funcionar uma piada para que o outro ria, ou a beleza que é emocionar com lágrimas de mentira, forjadas pela brincadeira da poesia. Para nós, atores, acostumados que somos à solidão da melancolia, crise maior seria se optássemos por uma jornada de certezas, de diplomas, cargos e carimbos. Os empregos oficiais, esses empregos ceifados pela crise, para nós, atores, são como um passaporte à condenação eterna. Se há algum emprego reservado a nós, atores, esse emprego é um emprego nada oficial. Um emprego que jamais poderia constar na listagem oficial dos empregos atingidos e ceifados pela atual crise. Fôssemos nós, atores, típicos assalariados, aí sim a tristeza seria infinita. O que faria despontar um belo de um sorriso no rosto de um trabalhador que corre atrás de um desses empregos oficiais, em nosso semblante, no semblante dos atores, faria estampar a mais cinza das máscaras. É bem verdade que nós, atores, não somos os melhores exemplares para ostentar posses e riquezas visíveis. Somos, é bem verdade, de uma pobreza palpável, mas que para nós é de essencial e urgente manutenção. Afinal, é a soma de todas essas precariedades espontâneas que nos garante poupar o que realmente atiça a faísca dessa chama que nos concede o direito a continuar respirando e vivendo: a imaginação.

Portanto, dane-se essa crise. Há muito mais em o que pensar e sentir.



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