sábado, 10 de dezembro de 2016

Uma vez eu fiz um espetáculo inteirinho com uma vontade fulminante de fazer xixi. Foi uma lição de vida. Me ensinou o que considero a função mais nobre do ator:

- Diante da plateia, faça rápido o que você tem que fazer, e depois vá resolver as suas urgências íntimas longe dos outros.



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Não se estuda 'passado' nem referências 'sociais' de personagem nenhuma. Puxar a árvore genealógica da personagem também não é de grande ajuda. Imaginar o que a personagem jantou antes de existir ao olhos da plateia, me parece, é de uma estupidez ímpar. Que tal pensar, ao contrário, que a personagem acontece quando o ator também acontece? E que ambos acontecem ali, no presente imediato do abrir das cortinas? E que a personagem não dura. Acaba quando o ator acaba de representá-la? Que tal não abrir mão da coisa mais preciosa que o teatro tem a nos oferecer: É TUDO DE MEN-TI-RI-NHA?


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A perda da capacidade de narrar uma história é coisa significativa dos tempos atuais. É a perda igualmente de uma ética, de um trabalho para além do indivíduo. Hoje, governa tudo o que é dramático e esquecemos do épico, daquela atitude de estar diante de uma audiência com a tarefa de contar algo. Hoje, o bom ator é aquele que chora, que torce as tripas, que se debate no chão em dor sentimental. O ator típico da TV, enclausurado em seu Close-UP de emoções em ebulição. Queremos saber tudo dele, e ele se dá ao direito de contar tudo sobre si. A capacidade perdida de contar uma história é um outro terreno: o da razão e, sobretudo, o da imaginação. E isso também implica em um prejuízo político aos tempos atuais. Porque tudo o que é sentimental é mais fácil de ser manobrado. Perde-se a capacidade de pensar, de imaginar, de contribuir enquanto indivíduo para uma sociedade mais inteligente. Quem nasceu para o teatro hoje já nasceu para resistir.


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domingo, 4 de dezembro de 2016

Shakespeare é teatro, e, sendo teatro, basta que assim seja. Porque é de praxe incutirmos um milhão de análises sociológicas, antropológicas, pisco-fisiológicas, humanistas e umbandistas nas personagens shakespearianas. Que são só personagens de uma trama de teatro. E, sendo assim, assim está ótimo que continue sendo. E deveria ser assim também, dessa mesma forma, para o ator que representa uma personagem de Shakespeare: basta subir ao palco para representar uma personagem de Shakespeare. E as personagens de Shakespeare, maravilhosa vantagem!, já vem prontinhas, saídas direto do forno para serem representadas, sem a necessidade dos seus laboratórios pessoais, das suas sessões de terapia, dos seus mergulhos em pesquisas íntimas. Mas, então, se tudo é tão raso assim, por que raios é tão difícil representar uma personagem de Shakespeare? Talvez porque as personagens de Shakespeare já tenham nascido assim, com essa natural dificuldade em serem representadas. Porque, definitivamente, não será a sua tentativa de decifrar as personagens de Shakespeare o que as tornará interessantes à plateia. Por incrível que possa parecer, Shakespeare ainda é mais interessante do que eu e você, e o nosso esforço hercúleo de fazê-lo mais visível do que ele já é, e sempre foi, e muito antes que eu e você, juntos e somados, imaginássemos ser alguma coisa nesse mundo.



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sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Eu comecei gostando de teatro imaginando o que é que o ator estaria fazendo na coxia, longe das minhas vistas. A presença do ator no palco sempre me encantou na mesmíssima medida de seu sumiço para fora dele.



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Viva o nosso Peer Gynt!

Uma das cenas de que mais gosto de fazer é a de uma cantoria coletiva regida por um maestro. E dura pouquíssimo, segundos acho. Estamos todos do elenco na cena, e todos condicionados a uma métrica musical, perfilados, trajados com figurinos e debaixo de luzes fortes. Não há chances de interpretar nada. Não há espaço para se dar uma versão pessoal de nada. Só estamos ali, cercados por tanta coisa, emoldurados por tantas referências, que a própria ideia de personagem some, desaparece. E a canção nos orienta a seguir por ela. O maestro guiando nossas vozes. Já não somos individuais, o único destaque que existe é o do corpo coletivo que aparece com força. Somos então uma trupe. E de cara limpa fincamos os pés no chão para cantar e contar o que se canta. É só isso. Nada dramático, só épico. Daquele tempo em que teatro era de fato um exercício de olhar para a plateia e contar uma história para a plateia. E dá um prazer danado. Acho que há uma ética na estética. E essa cena traduz o que penso de teatro. Se não houver a força de uma trupe, não há terreno aberto para ninguém atravessar o palco com as próprias pernas. Em tempos de choramingos melodramáticos e crises emocionais de toda espécie, de elegia ao ator-sensação do momento, de babação de hormônios aos astros-da-imagem, do culto ao EU, o teatro sobrevive resgatando a sua origem: evento público e coletivo. O grupo sobrevive. Sortudo sou eu. Sortudo somos nós. Viva!


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terça-feira, 29 de novembro de 2016

Um jogo de futebol é como uma peça de teatro. Nenhuma das duas coisas precisa acontecer para que os eixos do planeta sejam redirecionados. Afinal, qual o sentido que há em correr atrás de uma bola tentando lançá-la num quadrado protegido por uma rede? E que razão existe em subir ao palco para fingir descaradamente que se é Hamlet, o príncipe da Dinamarca? Mais urgente seria construir viadutos, tratar de doenças, estudar o clima... Arte e esporte remam em outra direção, são departamentos da inutilidade. E, por isso, mesmo, são matérias essenciais da nossa íntima constituição de seres lúdicos, afeitos a tudo o que é simbólico e imprestável à fórmula do 1 + 1 = 2. Artistas e esportistas são faces da mesmíssima moeda. A cultura é o que nos ergue nessas duas pernas que temos; é ela, a cultura, que levanta a nossa cabeça para o alto, para o infinito, para tudo o que não é tangível. Caso contrário, ainda estaríamos dentro de cavernas catando pulgas uns nos lombos dos outros.


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segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Diz o Velho-Stan: "Existem pensamentos e emoções que vocês podem expressar com suas próprias palavras. A coisa toda está aí, e não nas palavras. A linha do papel flui através do subtexto, não do texto. Mas, os atores tem preguiça de escavar até as camadas profundas do subtexto, e por isso preferem deslizar pela palavra externa e formal, que pode ser pronunciada mecanicamente e sem gastar a energia necessária par atingir a essência interior"...

Eu digo aqui, no auge da minha empáfia: tudo bobagem! Trilha essa anunciada para um ensimesmamento pretensioso que nada resulta em matéria de expressão. Elegia ao abstrato, ao eu-mesmo, a reclusão do artista na sua redoma íntima de sentimentos (quem se importa com os sentimentos alheios quando a tarefa é contar uma história? Eu prefiro chupar uma cebola a ver alguém se debulhar em melancolia afetada na minha frente). O que sobra de tamanho esforço - sob o pretexto de encontrar a verdade da tal da personagem - é tudo, menos a tal da personagem. O que aparece é o ator. Só ele. E isso já é vaidade o suficiente para fechar as cortinas dois minutos depois de haver erguido o pano. A palavra é potente quando ela, a palavra, já contém o que precisa significar, não havendo qualquer necessidade de encontrar o que ela esconde. A boa palavra não esconde nada, só revela. E os mistérios que existem - porque há mistério em tudo! - é saber pronunciá-la, não senti-la. E essa tarefa é mecânica sim, exige altas doses de esforço e de sensibilidade. E é tudo mecânico e artificial por essência e princípio, porque é preciso compreender que arte é, sobretudo e antes de tudo, um conjunto maravilhoso de artificialismos encomendados, engenhocas colocadas em movimento. Se o ator é ruim e recebe por isso a qualificação de 'ser mecânico', é menos pelo fato de haver mecanicidade nas suas ações do que pela simples razão de que ele é ruim mesmo, por natureza, prática e origem.

Uma obra viva não tem nada a ver com a verdade. A verdade esbofeteia nossos rostos a cada esquina. Isso sim é que é preguiça: copiar as escalas naturais da vida e botá-las no terreno da metáfora, como se fosse preciso convencer quem quer que seja de que nós somos esse quem somos, que sentimos isso o que sentimos. Tudo ao contrário: MAIS MENTIRAS PROCLAMADAS! MAIS DISFARCES EXPLÍCITOS, MAIS BRINCADEIRA E MENOS IMERSÃO EM SABE-SE LÁ QUAL SERIEDADE DO SENTIMENTO!



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domingo, 27 de novembro de 2016

Teatro é essa combinação precária entre o imediato e o ensaiado. É um teste para ver se o que foi pensado e praticado dá certo diante da plateia. E ponto. Ás vezes dá certo, outras vezes dá errado. E é assim é que é. Ocorre que em muitos casos se advoga uma erudição exacerbada ao teatro, como se o personagem escrito pelo autor fosse quase um monumento saído de uma tese acadêmica, como se o ator fosse um cientista da alma e necessitasse chafurdar em seu interior em busca de alguma criatividade escondida entre as tripas abstratas do espírito... Não me parece que teatro seja isso. É mais simples que isso, e nem por isso é coisa fácil fazer teatro. Me parece que subir ao palco exige muito mais uma irresponsabilidade-consciente do que um trabalho antropológico de conhecimento de quem nós somos, de onde viemos e para onde vamos. Teatro não é uma ciência social ou filosofia, é uma arte de fazer coisas, como também é arte de fazer coisas o ofício de fabricar bancos de madeira, costurar roupas, tocar um instrumento musical. Há que se reconhecer que há mistérios suficientes nesses ofícios em que, num primeiro olhar, tudo parece bastante raso, óbvio e transparente. Shakespeare é genial porque é popular, contava histórias para o povo que ia ao teatro ansioso por ouvir histórias. Se as histórias fossem boas, o povo prestava atenção; se as histórias fossem ruins, tomates eram arremessados. É preciso que alguém calcule a tremenda perda de senso democrático na relação entre espectador e ator com o sumiço dos tomates nas salas de espetáculo... E o ator shakespeariano, lá atrás, quando subia ao palco, o fazia com a tarefa de dizer uma série de palavras que não eram as suas palavras. E ponto. Se fosse bom, era porque era bom. Se fosse péssimo, é porque, de fato, ele era péssimo. E só. Não precisava-se fazer laboratórios prévios, imersões prufundas na gênese da personagem, ou, enfim, participar de alguma vivência em sabe-se lá qual praia distante para entender os fluxos da maré em noite de lua cheia... Não! O ator só precisava reunir um tanto de coragem para subir ao palco e dar sua cara à tapa diante daqueles que lá estavam para avaliar a sua performance. Mas aí veio o século da psicologia, o tempo do eu-comigo-mesmo, do estudo das motivações que explicam as razões de sermos quem somos. E o teatro entrou nessa onda. E o prazer da brincadeira irresponsável ficou em segundo plano. A personagem virou uma entidade a ser idolatrada, revirada de cabeça para baixo, rasgada, destruída, desmontada e colada novamente. Antes a máscara já era a personagem. A artificialidade da mascara sustentava o sentido que havia na brincadeira de representar uma personagem, e a expressão vinha em primeiro lugar. Hoje é o sentimento. E a necessidade de sentir-se a si mesmo para ser verdadeiro parece que trouxe o próprio ator à frente do seu ofício. É o ator o que importa, a sua verdade de ator, o seu despudoramento de mostrar-se ator diante da plateia. O teatro, nessas bases, quase virou um divã. Às vezes o teatro de agora é só isso mesmo: um belo de um divã insuportavelmente enfadonho e carregado de crises que em nada contribuem para uma simples comunicação direta com a plateia. Porque não há comunicação possível em um evento em que a vontade primordial, ainda que inconsciente, é exibir-se. E parece que também a nossa plateia de hoje é mais afeita a deixar-se deprimir e recostar a cabeça num divã. Sumiram os tomates das mãos dos espectadores, sumiu também o riso largo, a reação espontânea. Mas, o teatro popular parece resistir. O teatro popular com o seu grande apelo ao fato concreto de se estar em cena para entreter o público livra-se dessa enxurrada de métodos, compêndios dramáticos, laudas investigativas. No teatro popular a equação é simples: a coisa é porque é assim que tem que ser. A coisa começa porque a cortina se abriu, e tudo acaba quando apagam-se as luzes. A mentira é revelada e é parte constituinte e essencial do ato poético. É mais simples. É mais generoso. É menos pedante e pretensioso. O teatro popular nos salva da nossa tendência contemporânea ao ensimesmamento, a mimação dramática. Ainda bem! Um viva ao teatro popular!


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sexta-feira, 25 de novembro de 2016

A gente que sobe sistematicamente às ribaltas para contar uma história desenvolve um certo ceticismo melancólico, nada que nos torne obtusos e rarefeitos às brisas imponderáveis da vida, assim espero. Mas algo como que semelhante a sensação de tranqüilidade frente à esquizofrenia do mundo, a velocidade dos acontecimentos do mundo, ao sorriso largo de quem imagina uma solução possível à nossa miséria, à certeza da tristeza de outros que não conseguem enxergar que o estar triste é um momento igualmente passageiro, assim como o é o sucesso de quem pensa segurar o cetro das atenções. As cortinas que abrem e fecham a despeito do nosso estado de espírito daquele preciso instante em que tudo começa - porque é imperativo que comece quando chega a hora de começar -, dá a nós, atores, uma estranha calma, calma de sermos nós somente uma parte da coisa, não a totalidade dela, de que estar vivo é menos engalfinhar-nos uns aos outros por um lugar ao sol do que achar tranquilamente um pedaço à sombra para ver o que acontece diante dos nossos olhos. É um jeito de agir pela metade, e ser atingido pela dimensão misteriosa e assustadora da plateia. Mas é esse assustar-se que dá a chance de também relaxarmos na confiança de que é assim mesmo, de que será assim mesmo queiramos ou não. Nós, atores da ribalta, carregamos um sentimento machadiano dentro do coração, um fel ácido e irônico, triste e alegre, esperançoso e resignado. Enfim, é mais fácil ser humano - porque ser humano é ser invariavelmente contraditório - quando se é ator de teatro.



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sexta-feira, 11 de novembro de 2016

As boas personagens só são personagens boas porque são molduras. Cheios de si somos nós. E somos chatos pacas...


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segunda-feira, 31 de outubro de 2016

O segredo é virar uma personagem de si mesmo. Falar não o que se sente ao sentir, mas o que se vê no instante em que se sente, e mesmo depois de haver sentido. É um duplo sentir, um de perto e outro de longe. É no intervalo desses extremos que é necessário firmar terreno. É ser quem se é, já não sendo. É sempre ser pela metade, de um lado de um jeito, dou outro lado de outro jeito. É nunca ser completo. Uma coisa e outra, ao mesmo tempo, e o tempo inteiro. Um recheio sem conteúdo. Ou um conteúdo repleto de vazios. O segredo é só esse: saber ser ator.



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sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Ser plateia de teatro também requer prática, insistência, aprimoramento da sensibilidade. Não é só quem pisa no palco que precisa de tempo de trabalho, dedicação e esforço.


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quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Se o mundo é um palco, é porque antes de tudo o palco é o próprio mundo reconstruído e redimensionado. Entendo melhor o que acontece diante de mim e para além de mim porque experimento em meu ofício a materialização artificial daquilo que não consigo tocar. Devo minha formação ética e política ao teatro, somente ao teatro. É no contato com o microcosmo que se pode entender o infinito das coisas inatingíveis, ou, ao menos, compreender e respeitar o tamanho impossível das coisas misteriosas. É por isso que o ensino das artes é coisa fundamental, porque sente-se na pele as duas funções primordiais para qualquer tipo de experiência coletiva e comunitária: a de autor do discurso que se produz, e a de espectador de si mesmo. É como se experimentássemos a certeza absoluta de sermos quem somos ao mesmo tempo em que duvidamos redondamente desse a quem imaginávamos que éramos. É essa dialética que nos torna atentos para a vida. O resto é silêncio.


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quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Estamos chegando ao vigésimo Peer Gynt em quase um mês de temporada. São 5 Peer Gynts por semana. Amanhã, domingo, haverá mais um Peer Gynt. A lição e a experiência são duras, ferem direto na carne, porque é a prova de que teatro deveria ser sempre assim, quase que diário, e que quase sempre, nesse nosso tempo atual de idolatria do ator como um garoto propaganda de coisa nenhuma, mimado e afetado ao paroxismo, desacostumamos a pensar o teatro como um ofício, um ter que fazer, uma necessidade constante e sistemática de subir ao palco e abrir as cortinas. E também de saber que a plateia não é a responsável pelo vazio das salas de espetáculos. Os responsáveis somos nós, artistas do teatro, donos de teatro, produtores e gente do teatro, que lidamos com nossa profissão como se ela fosse um passatempo de fim de semana, como se fôssemos nós todos parceiros de um eterno churrasco que assa as lingüiças somente quando o sol desponta no horizonte. 
Que venha mais uma centena de Peer Gynts. Que nós saibamos que o bom teatro só se faz fazendo, e fazendo sempre.


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Dentre todas as qualidades e desvantagens reunidas, o teatro talvez desponte como o único refúgio em que é impossível fugir da seguinte transparência: se tu fores uma anta na vida, uma anta serás no palco. A mentira do teatro é absolutamente reveladora, nada afeita a esconder as hipocrisias da ordem da ética e do caráter de quem possivelmente resolve subir às tábuas.
Não é interessante pensar isso? As cortinas são abertas para o faz-de-conta. Mas o que sobra da fabulação é sempre a mais crua das verdades.


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É inacreditável que numa cidade como São Paulo não exista uma Cia Estável de Teatro financiada pelo governo. Cia de dança está aí, orquestra sinfônica municipal também, coral da cidade até.... e nada do teatro fugir da sua habitual miséria clandestina de sempre.


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Quando alguém convida-me dizendo "venha me ver no teatro", eu sei que a peça é ruim... E se o sujeito emendar com um "acho que você vai gostar", aí, então, eu tenho certeza de que a peça é péssima.


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Teatro é uma batalha franca. No instante exato em que começa, nem a plateia sabe o que vai encontrar pela frente e tampouco os atores tem a real dimensão de como cada palavra dita irá reverberar nessa massa igualmente misteriosa que é a audiência. Teatro é perigoso. E o perigo é esse mesmo: a sensação concreta de enfrentar pela frente um oponente real e desconhecido. A diferença é que aqui a guerra é simbólica, e tanto melhor será ela travada quanto, ao final, ambos os lados saírem empatados. Teatro é um desses raros campos de batalha em que a imposição de um lado sobre o outro implica em derrota imediata justamente para esse a quem a força prevaleceu.



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sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Ator inteligente não se coloca 'no lugar' de personagem nenhuma. Ator inteligente não faz qualquer esforço para alcançar o estado de presença e emoção da personagem. Ator inteligente sabe perfeitamente que a personagem é sempre maior do que ele, bastando a ele o papel de dar abertura para que a personagem passe. O ator inteligente abre passagem. O resto já não é mais com ele.


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Todo personagem ruim abre espaço para essa bobagem contemporânea que batizaram com o nome de 'gênese'. Todo personagem ruim tem um antes, um agora e um depois. Os personagens bons são o inverso disso, são atemporais, infinitos, e morrem de rir quando o ator quer encontrá-los para uma breve vivência dessas que servem somente para você comprovar a sua completa ausência de auto-estima. Personagem bom não tem tempo para sentar com você no café da manhã e ler em voz alta o horóscopo do dia.


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segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Uma peça de teatro deve ter o mesmo charme que há nessas fanfarras que tocam nos coretos das praças do interior. Esse charme é essa mistura de uma certa desafinação com a dignidade de juntar os instrumentos antigos para soprá-los como se fossem instrumentos da mais nobre orquestra sinfônica que habita a face da Terra. Esse charme é a maravilha da imagem que vemos do soprador de corneta que com sua pança quase faz estourar o único botão da casaca puída que veste. E, indiferente a isso, o corneteiro é mais elegante que o mais bem apessoado dos trompetistas já surgidos pelos palcos do mundo. Uma peça de teatro deve ter o charme próprio do coreto da praça. Um lugar meio descascado pelo uso tempo. Um lugar aparentemente aposentado das suas funções, coagulado no espaço, quase triste e melancólico. Mas lotado de vida, e justamente por parecer morto. É um 'quase lá' que faz toda a diferença. Uma peça de teatro deve ter a energia concentrada do próprio teatro, do próprio palco que pisa. É ela - a peça de teatro -, uma mistura desses opostos todos, do macro com o micro, do grandioso com o detalhe, da tragédia com a comédia. É rir com um olho e chorar com outro, e ao mesmo tempo. Uma peça de teatro deve lembrar-se sempre da função mais importante que está a cargo do ator: a de tratar com absoluta seriedade a aventura insignificante da vida.



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quinta-feira, 13 de outubro de 2016

No teatro, uma das funções mais nobres está com aquele sujeito que abre e fecha a cortina do palco. Sem demagogia nenhuma, considero ele, o cortineiro, uma figura tão importante quanto o ator. Aliás, acho ele, o cortineiro, mais importante que o ator. Abrir e fechar uma cortina é o mesmo que abrir e fechar uma caixinha de música. Há que se ter técnica e sensibilidade para isso. E o ator é refém desse procedimento. Como a bailarina que está dentro da caixinha de música, nada há o que fazer se não houver quem dê visibilidade ao que habita o silêncio das sombras. E ainda por cima, o cortineiro tem a deslumbrante vantagem de ser invisível por completo, esforço pelo qual o ator também reúne esforços, mas nem sempre alcança sucesso. Um ator visível é sempre um péssimo ator. Antes de começar o espetáculo, observo admirado e com admiração esse sujeito que se esconde nos bastidores, pronto para acionar um botão que fará a cortina se abrir e me expor à arena dos leões, e sem reservar qualquer piedade por mim.
Penso ser um crime um teatro eliminar o uso da cortina, dispensar o serviço valiosíssimo do cortineiro. Se entro numa sala de espetáculos na condição de espectador e vejo o palco sem a proteção da cortina, então sinto uma dor no peito duas vezes: a primeira por quebrarem-me o mistério de descobrir o que há por trás da cortina, e depois por saber que não há cortineiro algum que me faça imaginar o instante exato em que ele acionará o mecanismo que tanto me ilumina de encanto os olhos e a alma.


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segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Leio no jornal que um certo ator se interessou pelo 'mocinho' da vez - o mesmo papel de sempre da teledramaturgia - porque o personagem 'é real', como nós o somos também. Pois comigo é o inverso: papel bom é aquele que só existe para figurar debaixo da moldura do impossível, que veste roupas impossíveis, que fala coisas impossíveis de serem ouvidas nas esquinas da vida, que é grande demais para caber nas ruas, que pesa toneladas e mais toneladas ao ser carregado. Essa é a diferença essencial entre o teatro e a TV: o primeiro gosta de poesia, o segundo adora o Ibope.


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sábado, 1 de outubro de 2016

Eu sou ator. Ator de teatro. Minha vaidade está concentrada toda nisto: que os outros me vejam! Eu me contento perfeitamente em ser invisível a mim mesmo.


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Quem é revolucionário a ponto de dar-se ao luxo de poder sonhar jamais deixa-se ser manipulado, jamais vira massa de manobra, jamais vira gado de pasto, jamais cai nas graças da multidão virando um número dentre tantos. Peer Gynt estreia hoje. É um texto do século XIX que não foi entendido como teatro em sua época. O texto de Ibsen era um texto à frente de seu tempo. Era uma personagem à frente de seu tempo. Hoje continua assim. Hoje, em pleno período de elegia à Idade Média - não àquilo que a Idade Média tinha de bom, o que já me parece muito mais do que nós temos hoje, mas em referência à tudo o que nos amarra em raízes conservadoras - Peer Gynt continua sendo um acontecimento estranho, de rompimento de valores, de questionamento de tudo o que nos acostumamos a chamar de 'civilização'. É uma homenagem sobretudo ao teatro, que sempre - em todas as épocas - só existiu e existe porque jamais esteve distante de sua natureza transgressora. Nós, os bufões, os malucos, os sátyros, os palhaços, os atores que subimos diariamente ao palco temos o dever de sermos radicais na metáfora, e torcemos para que a poesia ganhe sentido de realidade na intimidade de cada um que vá até o teatro. O mundo se modifica de dentro para fora. Toda promessa que subtraia essa única verdade é mentirosa. 
Viva o teatro!



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A personagem sempre é mais bonita que o ator que a representa. Quando isso não ocorre é porque o ator é ruim. Ou porque a personagem é ruim. Ou, então, porque ambos - ator e personagem - são péssimos e merecem um ao outro.


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Quando me perguntam como é que eu faço para decorar tanto texto, eu me coço para não responder: 'e tu, que fala um tantão sem parar e sem se dar conta do que fala, normalmente falando coisa nenhuma, exigindo um esforço dez vezes maior do que o meu, que falo o que tenho que falar na hora que falo, e ainda tenho a sorte de emprestar a minha voz à voz de um autor infinitamente mais sábio que nós dois juntos?'... 
Minha tarefa é muito mais fácil, convenhamos.


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Eu tenho a melhor profissão do mundo. Finjo por ofício. E você, que finge tanto quanto eu só que à paisana, mentindo que diz sempre a verdade?



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Acho que se deveria medir um ator pela unha do dedinho mindinho da mão esquerda. Se ela parecer natural, então é porque todo o resto está errado.


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segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Todo bom ator é elegante. Daquela elegância que não compreende uma gravata amarrada no pescoço e tampouco um rabo de fraque esvoaçando aos olhos alheios. Todo bom ator é elegante naquela elegância mínima, que não chama publicidade alguma para o charme que proclama sem esforço outro senão o de ser só isso mesmo: elegante e ponto final.


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Eu diria com 100% de certeza que um ator se faz com 99% de pulmões e 0,9% de cinismo... O 0,1% restante é uma incógnita.


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Quando um ator morre a gente sente a morte duas vezes.


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Há um milhão de desvantagens em ser ator. A única vantagem é que ela sozinha supre todo o milhão de desventuras somadas.


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O ator está sempre no tempo épico. A rigor, é ele, o ator, tão somente um contador de histórias. Não importa se a peça é dramática, melodramática, com quarta parede, se do bule sai fumaça ou o que seja, o ator é sempre o mesmo: munido de uma completa indiferença para com o teor emotivo do que a personagem sente, ele apenas conta para a plateia quem aquela determinada personagem é. O ator está comprometido com a ação de contar, nunca com a adjetivação emocional. O verbo é o guia do ator. O resto é silêncio.


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domingo, 4 de setembro de 2016

Hoje substituí uma das atrizes numa peça cujo texto eu escrevi e também dirigi para a cena. E como é difícil ser ator! Como tudo é sempre mais fácil visto de longe, na proteção da sala escura, na distância da palavra escrita, no cuidado de quem diz aos outros o que fazer quando não é você quem tem que fazer. E como é maravilhoso subir ao palco para sentir a dificuldade que é ser ator, saber-se ridículo, interpretar o ridículo, organizar um força tremenda para inventar possibilidades no absurdo para depois vê-lo desmoronar, e tudo diante do espectador. Como é cruel colocar-se debaixo dos refletores! E por que então o fazemos? Talvez para evitar catástrofes quando a proteção do simbólico não nos suaviza o tombo. É isso: tombamos porque é seguro tombar, e para evitar que se machuque de verdade no chão duro da realidade! 

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Acredito que todos deveriam ter um projeto íntimo de solidão. Um canto reservado, por menor que seja, para a manutenção desse desespero de sentir-se absolutamente só e desamparado. Acredito que é a convivência com esse terreno o que nos torna alertas e conscientes para tudo o que está para além de nós. E o inverso também é verdadeiro: quanto mais multiplicamos companhias, atenções, tarefas, mais cegos nos tornamos para o perímetro que foge das pequenezas que habitamos. Quanta gente rodeada de filhos, parentes, bichos de estimação, samambaias, gente que arma um cenário de conforto e segurança sem desconfiar da enorme burrice que cultiva e prega como sentido maior de suas diminutas existências.

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segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Sou ator porque o único jeito de ser honesto nessa vida é mentindo.



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Não entendo ator que gasta energia fazendo lobby... Seja em benefício de quem quer que seja, ou do que quer que seja. Há aqueles que fazem festa para promoverem a si próprios, como se fosse necessário ser 'aceito' no hall da vizinhança para que se encontre um direito de expressão. Esses são os bonitinhos aspirantes à fama, ou os já famosos, esses que não medem esforços para vender sabão em pó em troca da lembrança de que ainda existem por aí, com aquele mesmo timbre de voz, com aquele mesmo cabelo arrepiado para cima e o mesmo olha cândido de quem deseja tudo de bom a você e a sua vovózinha. Ainda pior é ator que faz campanha beneficente. Mas em benefício de quê? De um mundo melhor? Acho bastante justo que se preocupem com a crise humanitária lá no Turguenistão-do-Norte, tomara Deus que não haja mais injustiças na Criméia ou em Botsuana, mas..., ora, não é papel do ator ser ele mesmo um apátrida, um excomungado, desterrado, alguém desinteressando pelo imediato das demandas para que possa ele ter o precioso direito a fazer vibrar o que é essencial para além do que é contingente às coisas? Não deveria ser o ator a própria encarnação da crise, daquilo que não queremos ver, das violências concentradas e que camuflamos por razões várias? O ator deveria ser respeitado não por sua vocação ao concreto das esquinas da vida, e sim pelo seu poder de inoculação simbólica, atemporal, daquilo que por não ser tangível consegue tocar fundo em nossa consciência de sermos quem somos.


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Imagine se as igrejas esvaziassem e os teatros lotassem? Que perigo seria para o poder estabelecido trocar o mito pelo rito?


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domingo, 21 de agosto de 2016

Todo bom personagem tem uma ganância de engolir o mundo. Tudo que aí existe, para o bom personagem, está fora dos eixos. E é ele, o bom personagem, a válvula motriz daquilo que deveria ser mas não é. É a imagem do que nós, personagens mixurucas, não podemos ser por força desse mesmo mundo que é engolido pelo bom personagem. O bom personagem é o próprio teatro como contraponto às regras estabelecidas, é a experiência concreta de uma força sempre represada em nós. Porque existe em algum canto de cada um de nós esse grito revolucionário, ganancioso, egocêntrico, de botar tudo e a todos aos nossos pés, sem concessões... E se o bom personagem naufraga é só porque é da sua natureza naufragar. O naufrágio é coisa reservada somente aos bons personagens. A grande maioria das personagens - que não são boas personagens - termina na mesma monotonia como começou, boiando na calmaria de uma existência que não produz na água qualquer ondulação digna de nota, sempre padecendo de uma vida de gabinete, sem grandes questões maiores do que escolher entre o chá de camomila e o de erva cidreira.


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sábado, 20 de agosto de 2016

O preço maior que se paga por ser ator é o reconhecimento de que tudo é teatro. Que há teatro na esquina de sua rua. Que o padeiro da padaria não é um padeiro de fato, mas alguém que vestiu a personagem do padeiro. E assim ele segue sendo padeiro sem desconfiar de que não é padeiro coisa nenhuma. E assim ocorre com todo mundo, com tudo, com todos os cenários e situações. Há teatro em tudo. A regra é haver teatro. Não conhecemos outra maneira de viver senão fingir que vivemos sem suspeitar de que fingimos. Mas o ator de ofício - esse sim -, compreende tudo isso. Ele mente e sabe que mente. E a única chance que há de ser sincero consigo mesmo é a de dizer a verdade no palco maior da mentira: o próprio teatro. E o fardo é justamente esse: reunir energias suficientes para quando as cortinas se abrirem a farsa da vida não interferir na sua vocação particular de dizer que tudo, absolutamente tudo - do começo ao fim -, é uma grandessíssima ilusão.
Paga-se um preço grande pela escolha de ser ator. Ou alguém duvida de que a vida do padeiro que não é padeiro mas acha que é padeiro é infinitamente mais tranquila e desejável?



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Odeio atores que tratam a personagem na terceira pessoa. Odeio igualmente aqueles atores que elegem a primeira pessoa para se referirem à personagem. Na verdade, odeio atores.



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quinta-feira, 11 de agosto de 2016

A melhor invenção do teatro foi a máscara. A pior invenção do teatro foi a personagem. Sem a máscara, o ator passou a acreditar que pode ser mais importante do que a sua completa e declarada desimportância...


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O ator é o negativo. O que ele imprime não são as cores da paisagem, muito menos é ele, o ator, a paisagem em si. O ator é aquilo que se esconde, os cantos escuros, as sombras..., tudo aquilo que, por não conseguirmos enxergar, dá direito de existência àquilo que enxergamos.


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segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Gasta-se tanta energia dizendo coisas para, ao final da empreitada, chegar-se à conclusão de que nada precisa ser dito. Teatro é fundamental por isso: ensina-nos a elaborar os silêncios, as sombras, os cantos de intimidades não-reveladas. É como se, quanto mais iluminados pelos refletores, mais rapidamente sentimos necessidade de correr para a surdina da penumbra dos bastidores.



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Não é curioso que tenhamos por ofício ser tantos quanto sabemos que jamais poderíamos ser? Mas, ainda mais surpreendente que isso é entender que por trás dessa aventura de personalidades múltiplas nunca nos despedimos daquele um que somos, desse um que desde o início fomos, e que escondemos em benefício dos disfarces que vestimos. Porque, a bem da verdade, só podemos ser tantos justamente porque é impossível ser tantos, porque mentimos que os somos todos, mas mentimos tão bem que enganamos, a nós e aos outros, e sem deixar de preservar esse riso contido de quem sabe que está sendo visto, e de que é preciso levar adiante a farsa toda, que é, no saldo final dos enredos, muito mais interessante do que a própria vida.
Se somos todos atores, é igualmente verdadeiro dizer que só aos atores de ofício cabe o direito de desfrutar dessa maravilhosa arte de enganar e de saber que se engana.



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Tenho dislexias severas para perímetros vizinhos e faro aguçadíssimo para lonjuras transcontinentais. Se me perguntam na rua como é que faz para chegar na rua onde eu mesmo deito residência eu enrolo-me todo e acabo por desculpar-me dizendo que sou novo na cidade. Agora, sou capaz de molhar o dedo indicador com uma lambida minha, oferecê-lo feito radar ao sabor do vento sudoeste, e apontar para que lado fica a Islândia.


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Quando o povo quiser lágrimas faça-o sorrir, quando o desejo for o de dar risadas, então, surpreenda-os com um silêncio desses de dar nó na garganta. Não dê nada de mão beijada para o público. Ao contrário. Promova expectativas e cumpra-as com ausências. Deixe que o espectador trabalhe. De preguiças já estamos mais do que saturados.


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sábado, 30 de julho de 2016

Fiz hoje o melhor espetáculo de minha vida. Um gato felpudo subiu ao palco, entrou em cena e lá permaneceu debaixo dos refletores, olhando-nos com aqueles bigodes mudos e descrentes de quem zomba de Dionísio sem medo das consequências. Não houve qualquer interrupção da apresentação. O gato flanava pelo cenário, estacionava num canto, bocejava em nossa direção com as pestanas semicerradas. A cada pico dramático que insistíamos em galgar, o gato respondia com o dobro de tédio. Quanto mais fazíamos esforço para existir, o gato economizava forças na sua pose de esfinge do Egito. Seu pensamento de gato era traduzido em tempo real por cada um de nós, atores, e também pela plateia que lá estava: 'meow, que bando de gente estupidamente ridícula!'. O gato desmoronou sem dó todo e qualquer esforço que fazíamos. Nem Lawrence Olivier daria conta de competir com o bichano. Eis a lição mais valiosa que os atores podem ter a sorte de um dia receber: o quão somos incrivelmente patéticos, equilibristas na corda bamba, bastando um lufar de vento para o nosso castelo de cartas vir abaixo. Na dúvida, deixe os atores de lado e ouça o que o gato tem a dizer. Ouça sempre o gato em primeiríssimo lugar!
Jogue fora todos os seus Stanislavskis e adquira já um gato. Vai te ensinar mais do que todo o repertório reunido de pensadores do teatro ocidental.


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A graça maior de ser ator de teatro não é representar personagem alguma... O prazer está justamente nesse intervalo invisível para a plateia em que o ator entorta o nariz porque engasgou no texto que acabou de proferir, ou quando, num lapso de segundo, o ator se dá conta de que está no teatro naquele exato instante, vestindo roupas esquisitíssimas, e percebe o quão patético é ser quem se é: um contador de lorotas cujo fardo é chegar até o ponto final da história. A graça maior de ser ator de teatro é equilibrar-se na certeza e na dúvida de que o que fazemos no palco serve para alguma coisa nessa vida. Há credulidade e ceticismos igualmente envolvidos no âmago silencioso de cada ator. A graça de ser ator de teatro é viver com um pé lá, e outro cá. É nunca ser inteiro. É ser Hamlet. É ser sem recheio.


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Eu só adoro teatro porque não faz a menor falta não haver teatro. Fosse de outra maneira e eu me tornaria médico obstetra, para ser super útil e imprescindível ao futuro da humanidade.


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Todo bom personagem de teatro ensina ao ator que tudo é de brincadeirinha, que fazer Édipo Rei não implica em remoer emoções para alcançar as emoções do Rei de Tebas, que Hamlet só é Hamlet para quem assiste à montagem de Hamlet, que Mephistópheles não irá endiabrar e condenar ao fogo do inferno o seu intérprete. O bom personagem de teatro ensina ao ator a considerar que ele e a sua intimidade são coisas nada importantes frente à engenharia que é o próprio teatro, e da qual é dever dele, do ator, dar movimento. O bom personagem de teatro não exige do ator um posicionamento, uma assinatura, um timbre de individualidade. Isso são meras contingências naturais, sem que se demande qualquer esforço para alcançá-las. O bom personagem de teatro exige do ator coisas mais simples e concretas: um par de pulmões saudáveis, coordenação física e motora, um certo brilho no olhar e, quem sabe, um par de sobrancelhas conscientes. Evidentemente que o talento do ator não é medido em equações matemáticas de soma de fatores. A isso devemos convocar o mistério para que dê explicações. Mas, o que quero dizer é que o ator de teatro é um artista privilegiado frente aos outros atores das mídias tecnológicas - esses sim sempre convocados a emitir emoções, discursos, a explicar suas experiências sentimentais, a fazer girar o mundo ao redor de seus egos besuntados de purpurina -, porque ele, o ator de teatro, vive na pele a certeza e a consciência de que há entornos, cenários, maquinarias, outros tantos atores e artistas que, como ele, compõem algo do qual ele é resultado e não autor imediato. Não existe close-up em teatro. Não existe o 'meu melhor ângulo'. Não existe 'minha personagem', 'minha chance de acontecer', 'meu momento de dizer o que penso ou sinto'. A ética do teatro é uma ética da amplitude do palco. O palco é o mundo. Ou o mundo é um palco, como já diria o maior poeta de todos os tempos. Nossa miséria atual de valores é também produto de uma burrice egocêntrica em que padecemos da angústia constante por sermos vistos, reconhecidos, aplaudidos, reverenciados. O teatro nos ensina o inverso: a desaparecer, a dar passagem, a silenciar para que algo que sobreponha nossa diminuta estatura tenha direito de existência. Fôssemos menos televisivos e mais teatrais e a nossa vida ganharia contornos mais humanitários, se é que esse termo ainda hoje reverbera algum sentido.


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domingo, 17 de julho de 2016

A morte de Sábato Magaldi é também uma despedida do entendimento da arte como cultura, muito além daquele desejo louco e apaixonado de se expressar publicamente para receber aplausos e confetes. Homens do porte do Sábato Magaldi deram a entender aos atores de teatro e a gente de teatro que fazer teatro é coisa perigosa, que defender uma ideia debaixo do refletor pressupõe ousadia e responsabilidade que vão além do ímpeto tresloucado da afirmação do ego. Há consequências em querer ser artista. E, uma vez artista (quem hoje botará a cabeça a prêmio para definir o que é ser artista?), o preço que se paga é acostumar-se com a corda bamba das incertezas, do risco de remar contra correntezas do politicamente aceitável, de estampar a cara para revelar sem medo as hipocrisias de um mundo sempre rarefeito à própria consciência, de conviver com a sensação de nunca chegar a lugar algum, de nunca saber o suficiente para poder comunicar o que se sabe. Enfim, homens do porte do Sábato Magaldi deixam um legado muito maior do que a simples paixão pela arte do teatro. Apaixonar-se é fácil. O complicado é imprimir inteligência, cultura, senso ético e moral numa atividade tão devastada pelos bonequinhos da fama, do topete penteado e do charme das lentes de televisão. O teatro deveria ser um patrimônio de uma sociedade que valoriza o pensamento, que celebra o amor pelas suas tradições, que reitera um imaginário comum de histórias coletivas. Nossa miséria social de hoje não é só uma miséria de estômago. É também, e principalmente, uma miséria de metáforas, de palavras bonitas, de poesias afiadas, de paisagens que se dão ao direito de serem contempladas silenciosamente.


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O teatro é que deveria chamar o público para o teatro, não os atores.
Vivemos ainda nos estertores do século XIX, quando saía-se de casa para ver Xisto Bahia, Brandão Filho, João Caetano... Com a diferença de que Xisto Bahia, Brandão Filho e João Caetano eram grandes atores de teatro. O girar da ampulheta do tempo fez-nos mais tapados. Hoje, um pouco de purpurina da fama, um topete penteado, um timbre de voz sexy, uma certa composição ética e moral de bom-mocismo preocupado com os destinos do mundo são atributos suficientes para mexer com os hormônios alheios e chamar público ao teatro. Enquanto ao teatro pouco se dá atenção ou importância.
Penso na Rússia, um país com tantos problemas quanto o nosso, onde as peças de Tchekhov mofam em cartaz por anos a fio com plateias lotadas. Para além do ator que sobe ao palco para fazer Tchekhov, é Tchekhov ele próprio o que interessa. É a peça de teatro, é a história contada, é o desejo comum de partilhar de uma história contada. Penso nos nossos vizinhos argentinos, com teatros em funcionamento de segunda feira à segunda feira, igualmente lotados, e longe de serem subsidiados pela burrice de uma indústria televisiva que torna a tudo e a todos bonequinhos de comércio. 

O teatro deveria ser mais importante do que os atores.


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sexta-feira, 15 de julho de 2016

Inspiração é coisa de diafragma. Artista inspirado é um sujeito metido a besta estufado de ar. Vá estudar, vá? Mas nada de workshop, vivência, laboratório, imersão, oficina, colônia de férias... Vá se matricular num curso de formação, desses que forçam você a desistir de 'acontecer' no mercado, a compreender que o seu brilho é na verdade uma faísca fosca, mixuruca, e que o vosso talento anunciado não faz falta a palco dramático nenhum, no máximo encaixando-se nos requisitos duma vaga de vendedor de peixe na barraca da feira..., e vê se desembola o bendito meio de campo, sim?

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