sábado, 7 de janeiro de 2017

Os melhores atores flanam, não mergulham de cabeça em nada. São antes dançarinos que escavadores da alma.


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O teatro ensina-me o grandessíssimo valor que paira na inconstância. Na não manutenção do que aí está. E que a prática maior do ator não é a de resistir ao desmonte inevitável, mas a de saber dobrar-se a ele. E depois reerguer-se. Mas um reerguimento para ser uma outra coisa, alguém diferente, um pouco ou mesmo quase nada parecido com aquele outro de ontem. Porque existe aí na vida uma mensagem radicalmente contrária à essa, a de que é necessário erigir fundações fixas, consolidar uma ideia de caráter, formar uma família e dela não poder fugir mais, manter-se no emprego, batalhar pelo nome que se tem, ajoelhar e rezar para a metafísica de sabe-se lá o que, e tudo sendo fruto de anos se suores exaustivos. É sempre um esforço para o lá adiante, uma reza para evangelhos de esperanças nunca colhidas, nada que seja pequeno, tangível. E gasta-se tanta energia nessas abstrações todas. Tanto cansaço acumulado, rugas somadas, crises sobrepostas umas sobre as outras para que um dia, inevitavelmente, o edifício todo venha abaixo. Porque é do princípio das coisas um dia virem abaixo. E o ator convive com essas mesmíssimas coisas só que numa outra dimensão, mais imediata e prática, e desmorona junto com a falta de equilíbrio delas. É um viver para o perto, para projetos palpáveis, tarefas também grandiosas mas que sustentam-se através de ações simples, ainda que não sejam fáceis de serem executadas. O ator não é Hamlet, ele brinca de ser Hamlet. E é essa brincadeira levada à consciência da sua execução que vacina o ator para que ele evite os rodopios infinitos das crises humanas. A crise do ator é uma crise do fazer, do estar ali para que algo seja feito, e não uma crise invisível dos projetos e sentimentos que os olhos não conseguem equalizar em seu campo de visão. O ator é um fazedor, não um filósofo sentimental-depressivo.

O teatro ensina-me isso: que o desmonte é material concreto da existência, e se a vida no palco já é a própria vida, concentrada, fazer força para mirar algo fora do meu alcance é certeza de caminhar para tornar-me um péssimo artista, daqueles que prometem e nunca cumprem, e igualmente agir como essa gente afetada que sabe se empolar de discursos e sentimentos, mas que, na prática dos dias, pouco conseguem respirar o ar do momento, dialogar com as vozes que lhe chegam, enfim, ser alguém pleno de presença e de espírito vivo. O teatro ensina-me que mandar tudo às favas é fundamental para que eu continue atento ao mundo e a mim mesmo.




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Acho Raskolnikóv um personagem maravilhoso da literatura, mas pouco teatral. O que não lhe atribui problema algum, uma vez que é das páginas que advém sua origem. Em verdade, ele é o Hamlet da literatura, mas sem a capacidade de o ser nos palcos. Há alguma coisa no personagem de teatro, forjado para o teatro, que não pertence à grandiosidade de outras figuras que não conhecem a precariedade das tábuas. Talvez Hamlet seja Hamlet porque ele não é nunca Hamlet por inteiro, sempre segmentado pela consciência do ator que o interpreta. É isso! A inteireza de Raskolnikóv é coisa demais para botá-lo debaixo dos refletores e diante do público. Por mais esplendorosamente humano que seja Raskolnikóv, é impensável vê-lo ao vivo, diante dos olhos, levado à cena por um ator. Assim como é reduzir Hamlet se restringirmos sua presença à leitura das páginas de Shakespeare, também é menosprezar Dostóievski querendo dele a imagem física e encarnada das suas criações.


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A questão é que nós, atores, nos tornamos sérios demais, e no pior sentido que há nessa palavra. Porque a criança nasce brincando. E brinca para aprender a viver. E ser ator é tão unicamente fazer a manutenção desse estado irresponsável, e nem por isso ausente de seriedade - uma outra seriedade, benigna -, que está intimamente associada ao ato inútil de brincar. E é inútil porque brinca-se com a única necessidade que há na ação de brincar. A seriedade benigna de que digo está nisso: brincar é uma necessidade, não um direito ao divertimento. Quem se diverte são os outros, alvos da brincadeira. Nós não. Brincamos porque é preciso que se brinque, porque brincar é coisa atada ao nosso ofício. A única responsabilidade que há é a de sermos completamente irresponsáveis a tudo o que margeia as brincadeiras de que tomamos parte. Se a criança brinca para aprender a viver, nós, atores, brincamos porque é nossa matéria prima o brincar. Ponto final. E sobre isso não há justificativas que expliquem o porquê de fazermos o que fazemos. É misterioso mesmo. Somos misteriosos e esquisitos. E essas duas palavras: mistério e esquisitisse basta para encerrarmos o assunto. Agora, essa seriedade não pode ser confundida com um mergulho na alma, com escavações íntimas e internas, com empreitadas quase que metafísicas de autorreconhecimento e de compreensão do espírito. Isso tudo é demais. É sair do rito e ir para o mito. A religião trata de fé. A arte é negócio tangível. E se a arte alcança o espiritual é menos por decisão própria do que por consequência. E das consequências cada um que se encarregue com o que fazer com elas. Não pode nos interessar como elemento de atuação. E essa confusão começou há pouco tempo, quando descobriram a psicologia, o bendito eu que há para dentro. Aí desistiu-se do brincar trocando-o pelo escarafunchar. A personagem, que antes era apenas um argumento para dirigir a brincadeira, hoje tornou-se uma cátedra de assuntos infinitos e impalpáveis. Gasta-se uma enormidade de tempo tentando decifrar quem é Hamlet. Como se Hamlet existisse, tivesse carne e osso e pensamento como nós. E como se descobrir quem é Hamlet fosse solução para brincar de ser Hamlet. Não é. A graça maior da brincadeira é não ter compromisso com o que somos longe dela. E nessa distância acharmos alguma possibilidade de conexão, que também já é uma outra consequência da atitude de botar-se a brincar. Estuda-se muito, brinca-se pouco. E se não há brincadeira, tampouco há comunicação. Porque o espectador também está ali - torcemos para que isso seja verdade! - igualmente para tomar parte na brincadeira. O problema é que atribuímos a nós, atores, importância demais. Atribuímos ao papel que iremos representar importância demais. Um dos pré-requisitos para sermos ativos na brincadeira, penso eu, é não SE levar a sério. Não levar a humanidade a sério. Só assim a brincadeira pode ser brincada com seriedade, essa seriedade outra, de quem lá está para dar conta de algo, cumprir algo, servir de comunicação para que algo aconteça.


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