segunda-feira, 27 de junho de 2016

Acredito piamente que o bom ator, a cada passo que dá, deve nutrir a mais firme convicção de que para continuar sendo um bom artista faz-se necessário eliminar as inúmeras habilidades periféricas que lhe impõem de fora como promessa de talentos variados. Acredito que o bom artista vive sempre na angústia de saber fazer cada vez menos coisas. E de ter consciência das suas incapacidades até o ponto de compreender que é impossível representar papel algum. É como o iceberg. O bom artista só aparece alguns metros acima da superfície. O que paira submerso é um contingente inteiro de escuridão não revelada. Mas é só por haver essa massa invisível que é possível existir alguma coisa acessível ao mundo externo. 

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sábado, 25 de junho de 2016

O ator é um sádico inato. Porque ele, o ator, pula de paraquedas sem saber se o paraquedas irá se abrir. O diretor carrega consigo esse mesmo sadismo inato, só que ao quadrado... porque o diretor empurra o ator para fora do avião e reza lá de cima para que o paraquedas, que nem ele - tampouco o ator -, sabem se irá abrir, se abra. O dramaturgo reúne esses sadismos todos, o do ator e o do diretor, só que elevados a enésima potência multiplicada por X + Y... porque é dele - do dramaturgo -, a propriedade e patente do bendito avião.

quinta-feira, 23 de junho de 2016

Todo grande personagem é amoral... Reúne em si a transgressão que é típica das nobres almas que pouco ou quase nada são regidas pelos trilhos da adequação. Todo grande personagem é trágico. E cômico também. Cômico porque é distraído em sua natural inconsequência. Trágico porque é consciente de que em nada adianta preservar-se, e que a única solução para qualquer problema é seguir adiante, ainda que isso signifique a sua ruína. Todo grande personagem é em si mesmo um teatro inteiro. É ele a própria humanidade resumida e condensada.



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terça-feira, 21 de junho de 2016

Ser ator é conviver com a urgência e necessidade de lidar com um milhão de vozes exteriores, e, ao mesmo tempo, padecer de uma solidão infinita. É sentir-se um sozinho-acompanhado. Viver numa multidão que ecoa em um silêncio ensurdecedor.


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Teatro para ser excelente tem que ser esquisito. Se for um esquisito-ruim, ainda assim, é melhor que um 'natural-bom'.


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segunda-feira, 20 de junho de 2016

Se o ator não deve se ocupar com nada ao entrar em cena, com nenhum tipo de frescura do tipo 'e-se-eu-fosse-o-Fulano-de-Tal' para dar conta da personagem, é porque acredito que o ator deve estar absolutamente ocupado ao entrar em cena, mas ocupado com a consciência de que ele É O ATOR que acabou de entrar em cena, e que a sua preciosa função não é imaginar-se outra pessoa que não ele, mas fazer com que os outros, os espectadores, imaginem que ele que está ali em cena, e que É UM ATOR que acabou de entrar em cena, não é um ator, mas outra pessoa. Fingir ser outra pessoa não é fingir-se outra pessoa, é fingí-los que se é uma outra pessoa (existe essa forma verbal?). Fingir para o outro exige que você seja rigorosamente verdadeiro consigo mesmo. É como se o mentiroso tivesse como regra obrigatória a verdade de que ele mente. Um milímetro de contaminação - ou de desejo de contágio -, para com a própria mentira contada e já é suficiente para que a imaginação do outro, do alvo da mentira, interrompa o seu fluxo de fabulices. O bom ator mente e sabe que mente. É disso que o bom ator se contamina: do prazer em mentir, em ver-se mentindo, e, sobretudo, em testemunhar que a sua mentira é capar de enganar quem está lá só para isso: para ser enganado. E esse é precisamente o papel do público: dar-se ao engano de ser enganado. O bom público sabe que está sendo enganado e engana-se porque o ator não escorrega na tentação de ser ele também contaminado pela mentira que conta. Um espectador que só quer a verdade é tão resistente ao bom teatro quanto o ator que entra em cena ocupado com a sua personagem.




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domingo, 19 de junho de 2016

Alguém bateu na porta. Alguém já não bate mais na porta. Não é fantástico que alguém bata na porta e depois deixe de bater na porta? Se é verdade que as coisas têm um início e uma duração orientada para um fim, também é verdade que algumas coisas têm um fim mais breve que outras, uma duração mais breve que outras. Gosto dessas coisas fadadas à extinção iminente. São quase sempre coisas pequenas, condenadas à nossa desatenção. Preferimos quase sempre aquelas coisas condenadas a uma eternidade mentirosa, sem dimensão exata. Eu não. Eu gosto de saber que logo logo tudo irá silenciar. Um telefone que toca logo irá parar de tocar. Um aceno de mão dura pouquíssimo. Por isso que gosto do ator de teatro. Ele entra em cena para dar início a uma contagem regressiva. O ator de teatro só entra em cena porque sabe que logo logo tudo irá acabar. Ele próprio irá despedir-se daquilo que faz. Faz por breves instantes o que tem que fazer e pronto, acabou. O teatro só é teatro porque dura pouco, pouquíssimo. Quanta diferença para o ator de televisão, ou o ator da imagem. Eternamente condenado a existir tantas e quantas vezes quiserem que ele exista. O que dura pouco e morre rápido concentra em si um potencial vital desconhecido por tudo aquilo que teima em durar demais. Um pedaço de sinfonia é mais revelador da poesia da vida do que a própria vida em suas poesias intermináveis e naturais. O riscar de um fósforo tem mais energia acumulada que a lava que escorre do vulcão sem prazo para parar de escorrer. 
É isso. Pronto. Fim.


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Uma das maiores bênçãos que o teatro oferece é que caso você não queira ir ao teatro nada vai acontecer... No máximo o teatro vai acontecer e você não terá ido ao teatro. Imagine o crime de excomunhão que uma beata-carola sofreria caso faltasse na missa dominical? Ou as consequências funestas de deixar de ir na consulta médica, no dentista, na assinatura da escritura no cartório? 
Teatro é uma delícia porque ele vive perfeitamente sem você, e você também não sente grandes remorsos quando manda uma banana para ele.


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Se nós que fazemos teatro somos os primeiros a reconhecer que teatro só se faz refazendo, por que aceitamos fazer uma peça aqui e outra acolá, separadas por um século de tempo morto, sob a alcunha de que estamos trabalhando? Isso não é trabalho não. É bico de fim de semana. Uma peça de teatro só é uma peça de teatro quando a peça de teatro carrega consigo a experiência do fazer e refazer, e continuamente, sem tréguas.


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terça-feira, 14 de junho de 2016

Gosto de teatro que fala assim pro espectador: Ei, seu paspalhão, isso daqui é teatro! E quer apostar que é interessante? 1, 2, 3...!

Tenho pavor de teatro 'de verdade', desses em que atores, diretores e espectadores mais parece que nunca brincaram de esconde-esconde na infância.

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Entrei no elevador e encontrei um sujeito elegantíssimo, trajado na base do terno dos negócios financeiros, tamborilando um celular mais ultra-power que o meu, exalando uma fragrância agridoce do sucesso na vida social. Devia malhar o físico também o tal do sujeito. Devia ter família, um cachorro e programas para as próximas férias. Um belo exemplo do que deu certo nesse mundão recheado por homo sapiens que querem dar certo. Já eu, entrei no elevador com a mesma roupa de ontem, meio descabelado e meio careca, com marca de pasta de dente na calça (nunca entendi quem consegue escovar os dentes sem babar a bendita espuma branca), e, ao desejar um tímido 'bom dia' ao meu companheiro de cabine elevatória, soltei um ligeiro e quase inaudível arroto matinal, fruto dos sucos gástricos récem exigidos pela labuta do desjejum. Devíamos ter a mesmíssima idade, eu e o sujeito do topete alisado (ele tinha gel no topete!), e pensei...:

Jesus, Todo Poderoso que lá de cima nos alumia, como é bom ser ator.


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Quem rege quem? É a música que rege o ator, ou é o ator o regente da música? A melodia é o que? Fruto do ritmo dos passos, ou só se anda depois que houver melodia para se poder andar? 

Ser ou não ser, eis a questão. (?)

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sexta-feira, 10 de junho de 2016

Eu que apreendi a mentir como ofício digo mais verdades que você que finge ser verdadeiro debaixo das mentiras que conta.

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quarta-feira, 8 de junho de 2016

Tenho tanta vontade de ser tantos outros que sei que nunca hei de sê-los. Mas que maravilha que é ser esse alguém carente de identidades impossíveis. Se fosse eu todas elas não poderia amá-las tanto quanto as amo sabendo que estão distantes de mim. Sou ator não pela vocação de viver outras vidas. Isso não é ser ator. É exatamente o contrário disso. Sou ator para preservar a consciência e a certeza de que sou eu só comigo, eternamente vazio das substâncias que anseio por preencher-me. 

Ser ator é viajar para longe e sentir saudades do lugar de onde se partiu. E ao retornar, desejar nunca ter retornado. É viver em lugar nenhum, vivendo à distância o tempo em que foi permitido que vivêssemos em algum lugar.


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segunda-feira, 6 de junho de 2016

Concentro em mim um pavor misturado com raiva mortal por quem diz que é no teatro que o ator 'se alimenta'. Como se o teatro fosse um refeitório, um lugar de idílio, de bonanças apetitosas e sedutoras, espécie de trampolim para sabe-se lá quais ares rarefeitos. Normalmente são turistas do teatro os que dizem isso, que relação nenhuma tem com o teatro, que pouco ou quase nada se interessam por teatro, que mentem descaradamente quando dizem que o teatro é o lugar deles, ou, ainda, que usam a grife de 'arte' que o teatro naturalmente estampa para uma autopromoção travestida de dedicação e suor ao ofício. Tudo balela. Teatro é outro departamento, nada afeito às idiossincrasias de quem é afetado pela ideia do que é ser ator de teatro sem sequer ter consciência do que é ser ator de teatro, ou mesmo saber o que é o teatro. Teatro é muito mais um lugar de esgotamento, de cansaço completo e total, lugar onde a energia é drenada feito sangria. Teatro não é pretexto para fazer brilhar os olhinhos de gente deslumbrada e maquiada pelo fino pó da fama e da imagem. Teatro é terreno de suicídios diários, voluntários e milimetricamente calculados.

Uma dica: vão todos lavar a louça da pia, e depois conversamos.



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Uma das baboseiras mais recorrentes é essa de que a arte espanta a timidez. É verdade que arremessar um pobre sujeito diante de uma plateia lotada o obrigará inevitavelmente a sambar com as ancas travadas. Mas isso é um choque de realidade, não um serviço que a arte presta ao pobre diabo que é tímido e tem vergonha de enturmar o seu nariz com os narizes alheios. Quanto a isso não é necessário arregimentar qualquer esforço extra, uma vez que é do espetáculo da vida tocar um samba e exigir que os passistas da avenida da existência rebolem até ajustarem-se à música. A arte presta outro serviço diametralmente oposto à esse: ela cultiva a incapacidade que temos de nos expressar normalmente, e, desse caldo de inadaptações, canaliza uma força impossível de se conter. A expressão é antes o resultado de um grito reprimido, impossível de ser gritado nas ruas, do que o fruto da espontaneidade do artista. O artista, o artista verdadeiro, é sempre alguém que faz a manutenção de uma certa obtusidade, alguém rarefeito aos paparicos efusivos e desinibidos das esquinas, abertamente recluso e ensimesmado. A expressão poética é a imagem e semelhança da lava incandescente que eclode de um vulcão. E essa lava só é potencialmente destruidora - como toda poesia deve ser - porque foi mantida no escuro, no silêncio, até o exato momento de dar às caras. 

Arte nenhuma se presta a desinibir ninguém. Muito ao inverso disso. O que desinibe é monitor de festinha infantil brincando de siga-o-mestre com a patota de pimpolhos histéricos..., fora isso, tudo bobagem e das grossas!


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sexta-feira, 3 de junho de 2016

O ator não é a personagem. Mas tem que haver personagem para que haja ator. Tudo é uma questão de perceber as realidades. A ideia do que é invisível é só isso: uma ideia, não tem realidade. O ator é a coisa real, e que só é real porque contém uma ideia que o faça ser real. Não existe um rosto sem máscara. E as máscaras não fazem sentido algum sem um rosto em que possam vestir. O desejo de querer interpretar uma personagem é coisa tão absurda quanto imaginar que as personagens necessitam de atores para serem vividas. Uma coisa já pertence a outra. Uma coisa nunca deixou de ser a outra.



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